Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 2)  

31/08/2018

 “Cuando un hombre encuentra una conclusión agradable, la acepta sin discusión, pero cuando la encuentra desagradable usará en contra de ella todas las fuerzas de la lógica y la razón". Tucídides 

Quando os interesses do Direito não são os mesmos que os interesses dos que fazem o Direito – (II)

No contexto da fração pasmosamente pequena do Direito que nos transmitem continuamente, e a despeito de dar por assentado que vivemos em um entorno social em que se pode dizer qualquer coisa das que não temos nenhuma prova, o certo é que esses prófugos do mundo científico nos estão vendendo sistemas arbitrários de pensamento e, o que é ainda mais grave, rechaçando descaradamente a evidência de que somente através do adequado conhecimento da natureza humana podemos ter a esperança de fazer uma contribuição significativa à compreensão do ser humano e da cultura por ele produzida.

Portanto, a visão que do mundo deve ter todo jurista cientificamente cultivado exige não ignorar as áreas de investigação de outras comunidades científicas especializadas (nomeadamente as levadas a cabo pelas ciências da evolução, do comportamento e da cognição humana) com o propósito de afastar as obsoletas concepções do fenômeno jurídico que insistem em meter em quarentena às ciências da natureza humana e excluí-las do esforço por compreender a importância das explicações e implicações (realistas, factíveis e aceitáveis) da condição humana no contexto do Direito.

Não se trata, evidentemente, de recomendar o emprego deste tipo de enfoque para qualquer coisa, senão de aconselhar seu uso limitado às circunstâncias para as quais está indicado. Nada obstante, recordemos que a evolução trata das causas últimas (não somente das causas próximas dos fenômenos) e sem o programa naturalista iniciado por Charles Darwin nunca poderemos compreender por completo a conduta humana; melhor dito: se queremos entender as raízes e os motivos da moral, do direito, da justiça, da cooperação, da competição, do egoísmo, da empatia, do altruísmo e de outros valores humanos tão apreciados temos que recorrer à evolução.

Por quê? Porque com exceção dos que acreditam estar somente um pouco por debaixo dos anjos, a animalidade constitui o estrato central de nossa natureza e tudo o que seja fazer uma enganosa abstração ou deliberada ocultação da dimensão natural do ser humano, sua natureza (animal) neurobiológica e sua origem evolutiva, é uma colossal perda de tempo.

Mas antes de esgrimir uma série de argumentos “desenhados” para variar a perspectiva da experiência jurídica do presente com uma renovada e integradora abordagem epistemológica (no caso, naturalista - que também é inevitavelmente ética e jurídica - e que revela uma coerência que reforça a relevância da natureza do ser humano quando se trata de explicar os fenômenos sociais, nossa habilidade para cooperar, para estabelecer vínculos sociais relacionais, para pensar nas - ou “ler” a - mentes dos demais, para razoar em termos morais e de contrato social, para compreender/cumprir normas...[1]) devo confessar a embaraçosa realidade de que desfruto contemplando a trama argumentativa de algumas teorias e/ou discursos jurídicos degenerados por um abstracionismo extremo.

Também admiro a crescente sensação de estupor e confusão ante discursos cuja incomensurável «opinologia» me supera. Me fascina a capacidade de alguns juristas para escrever narrativas com sofisticados argumentos e palavras grandiloquentes como se fora a quintessência do profundo, do esclarecedor, do reflexivo.  Me surpreende todas as teorias que só um “jurista” pode entender e onde o «faz-de-conta» se tolera e os fatos se ignoram, e que possamos contemplar a fabulosa e insofrível carência de todo escrutínio empírico-científico minimamente sério. Me comove a notável falta de entusiasmo de determinados juristas para tratar das recentes demandas científicas do presente, porque resulta mais fácil dedicar-se apenas a exercer de forenses das ideias de outros autores, à prosaica e sossegada tarefa de glosar, explicar e traduzir repetidamente textos, discursos e teorias normativamente «corretas» em que os anelos de unanimidade acadêmica superam toda motivação para apreciar com realismo maneiras de pensar e atuar alternativas. Me enternece o comportamento daqueles juristas que fogem como da peste de toda inquietude teórica que pressuponha o conhecimento (empírico-científico) um pouco minucioso de qualquer coisa que ocorra mais além do jogo mental de ideias, das especulações e generalizações. E, acima de tudo, me intriga o processo mental e o esforço cognitivo dos implicados, que em algum momento devem pensar que os argumentos articulados, páginas e páginas dedicadas a não dizer nada, soam bem, ao menos sobre o papel.

Admito – e em certo sentido também respeito a audácia dos que assim atuam - que determinados discursos jurídicos são uma forma deveras eficaz para ganhar prestígio acadêmico, vender livros “de ocasião”, receber aplausos entusiastas dos mais crédulos, e, desde logo, inúmeros convites para proferir palestras. Mas, claro, por diversos motivos alguns discursos, ideias e/ou teorias, além de não servirem para fazer avançar discussões originais e significativas ou superar a (enorme) brecha entre ciência e direito, se convertem em autênticos buracos negros de consequências não previstas, muitas delas negativas e/ou tendenciosas, pontos de vista que são fáceis de justificar, mas não necessariamente melhores. Isto sem mencionar que a estupidez gerada pela natureza dogmática de algumas teorias, ideias e/ou discursos também se multiplica.

Resumindo, a dominante e quase histérica cultura da “pureza jurídica”, mais ideológica que científica, não somente fomenta um tipo de discurso em que a incredulidade recalcitrante resulta imune à evidência, senão que também promove a desfaçatez de negar o fato de que há umas quantas coisas que temos que entender bem acerca da evidência empírica se queremos preservar a superioridade intelectual e moral de nossos argumentos.

Dito tudo isso, comecemos.

 

Notas e Referências

[1] Nota bene: O texto deste artigo, dividido em partes, corresponde a um extrato, ligeiramente modificado, do Livro FERNANDEZ, Atahualpa: Direito & Natureza Humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico. Curitiba: Editora Juruá, 2006.   

 

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