Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 17)  

21/12/2018

 

 “Todo lo hacemos con el cerebro, desde respirar a resolver los problemas filosóficos más complejos”. F. Manes

  1. Bases do comportamento social e o objeto do Direito

Se damos por boa a afirmação anterior, chegamos a uma cadeia causal que justifica parte do processo de surgimento do direito. Tem que ver com a circunstância da evolução filogenética, fixada já em nossos antecessores do gênero Homo, de uns cérebros o bastante grande e complexo como para sustentar a arquitetura cognitiva que nos permite realizar juízos valorativos a respeito do comportamento humano.

Mas a obtenção durante a filogênese humana de uns cérebros maiores e complexos levanta desde logo um enigma. Dado que o tecido neuronal é o mais “custoso” em termos de necessidades biológicas e energéticas [46], não se pode pensar que se conseguira de forma acidental. Devem existir benefícios importantes derivados da disposição de maiores cérebros. Mas, quais são estes benefícios? Em que consistem?

A resposta pode intentar buscar-se mediante a comparação das condutas filogeneticamente fixadas. Outras espécies de certa complexidade social resolvem suas necessidades adaptativas por outras vias. Durante a evolução dos seres vivos em nosso planeta apareceram ao menos quatro vezes os comportamentos altruístas extremos nas chamadas “espécies eusociales”: os himenópteros (formigas, vespas, abelhas, térmitas), os camarões parasitários das anêmonas dos mares coralinos (Synalpheus regalis, Duffy, 1996), as ratas-topo peladas (Heterocephalus glaber, O'Riain, Jarvis, Faulkes, 1996) e os primatas (com os humanos como melhor exemplo). Pois bem, nem os insetos sociais, nem as ratas-topo e nem os camarões parasitários dispõem de uma linguagem como a nossa.

Seus meios de comunicação podem ser muito complexos. As abelhas, por exemplo, efetuam um exercício de dança específico para transmitir informações sobre a localização e qualidade dos alimentos. Inclusive os animais da espécie mais próxima à humana, os chimpanzés, dispõem de uma variada gama de gestos, gritos e outras condutas para manifestar ou dissimular o medo e a agressividade, da mesma maneira com que manifestam certo sentido de justiça, mostram desejos de congraçar-se e mantêm relações sexuais complexas [47]. Mas jamais fazem uso de uma linguagem de dupla articulação com estrutura sintática. A linguagem, pois, pode ser considerada como a chave para rastrear benefícios adaptativos capazes de supor uma pressão adaptativa no sentido dos grandes cérebros dos seres humanos.

A capacidade linguística própria de nossa espécie, que é a ferramenta mais importante para a transmissão da cultura, aporta-nos certas vantagens claras na estratégia de sobrevivência social que os sistemas de comunicação mais simples não poderiam sustentar. Não obstante, seguimos sem conhecer por que a vantagem adaptativa é tão grande como para chegar ao ponto de permitir-nos conhecer “quem fez o que a quem”. Podemos predizer em termos de conduta bem definidas as consequências das ações de nossos congêneres mas, por outro lado, não somos capazes de acudir a uma definição mais precisa de justiça ou de delimitar em que aspecto, por exemplo, a teoria do direito natural é preferível a de um positivismo mais sossegado.

Para intentar entender e superar a obscuridade tradicional das discussões teóricas na análise do direito quiçá a perspectiva mais fecunda seja a funcional, quer dizer, aquela que não parte de uma suposta (e por vezes reducionista e/ou eclética) perspectiva axiológica, sociológica ou estrutural do mesmo, senão que intenta dilucidar para que serve o direito no âmbito da existência humana. O ponto de partida funcional não obriga a recorrer ao expediente retórico (relativista ou tradicional) de condicionar o conhecimento jurídico aos limites obscuros da revelação de umas teorias que transcendem a compreensão e a própria experiência humana. Não é necessário propor a existência de verdades jurídicas independentes que nossa inteligência não é capaz de processar e entender, nem há que dar por inabordáveis as razões que justificam a existência do direito como um dos aspectos essenciais da vida em grupo.

Dito de outro modo, situada a análise sobre o fenômeno jurídico em uma dimensão propriamente evolucionista e funcional, parece razoável partir da hipótese (empiricamente rica) de que este fenômeno se encontre nas teorias que relacionam o tamanho do cérebro com a inteligência social, isto é, de que o direito aparece e se justifica pela necessidade de competir com êxito em uma vida social complexa. Ao enfrentar-se nossos ancestrais hominídeos com problemas adaptativos associados aos múltiplos e incessantes relacionamentos derivados de uma vida substancialmente grupal, apareceram as pressões seletivas em favor de órgãos de processamento cognitivo capazes de manejar o universo de normas e valores.

Trata-se, insisto, de uma hipótese. Mas é ao menos a mesma que justifica o tipo de comportamento social e as capacidades cognitivas de outros primatas [48]. Apareceria assim a otimização funcional e adaptativa do mecanismo de interação de certas formas elementares de sociabilidade que parecem estar arraigadas na estrutura de nossa arquitetura mental.

 

Imagem Ilustrativa do Post: O Espelho // Foto de: Ana Patícia Almeida // Sem alterações

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