Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 13)

23/11/2018

 

“Uno de los más patéticos -y peligrosos- signos de nuestros tiempos es el creciente número de individuos y grupos que creen que nadie puede estar en desacuerdo con ellos por una razón honesta.” Thomas Sowell

 

 

  1. Uma concepção “naturalista” acerca do Direito: conceito, natureza e função

Os primeiros hominídeos apareceram como símios africanos em um entorno que já foi bem identificado tanto no vale do Rift como em sul da África como próprio do bosque tropical [36-37]. Com a bipedia como traço distintivo, milhões de anos depois nossos antecessores se converteram em colonizadores das savanas abertas africanas em um processo que coincide com o aparecimento das primeiras indústrias líticas e os primeiros exemplares do gênero humano, quer dizer, Homo habilis e sua cultura olduvaiense [38]. Um panorama assim indica que as primeiras transformações evolutivas fixadas pela seleção natural tiveram lugar em umas circunstâncias ecológicas e culturais muito distintas das que vemos agora. Mas foi então quando começou a formar-se uma mente dotada de “módulos” que processam todo o conteúdo cognitivo e emocional pertinentes para a adaptação em grupo.

O direito é, desde qualquer ponto de vista, um fenômeno essencialmente humano, uma dimensão da vida cujo sentido e função surgem exclusivamente da interação ou do intercâmbio social (comportamento grupal), o qual, por sua vez, requer mais de um cérebro-mente. Resulta impossível fixar uma origem do direito, nem mesmo se o entendemos da maneira mais ampla e flexível imaginável. Mas tenho sustentado que essa origem tem que ver com um desafio adaptativo que os seres humanos tiveram que afrontar: um desafio que nasceu da necessidade humana de entender e valorar o comportamento de seus congêneres, de responder a ele, de predizê-lo e de manipulá-lo e, a partir disso, de estabelecer e regular as mais complexas relações da vida em grupo. Outras espécies como as dos chimpanzés têm pressões seletivas muito similares e, ainda assim, não desenvolveram nossos sistemas de normas estabelecidos através de códigos explícitos.

Cabem poucas dúvidas, pois, acerca do caráter do direito como instrumento ou técnica destinada à solução pacífica de conflitos individuais e grupais e para manter vivo um limite, ainda que mínimo, de altruísmo e cooperação, de ordem e segurança, entre os membros de nossa espécie. Esse caráter distintivo, contudo, não significa que o direito (assim como a moral) se veja livre de qualquer tipo de fator ou influência que provém das circunstâncias específicas em que se produziu a evolução coordenada do cérebro humano, dos grupos de hominídeos e de suas soluções culturais.

Pelo que se sabe, os humanos somos os únicos seres alocados na terra capazes de produzir uma estratégica ferramenta adaptativa, cultural e institucional  como o direito, que permite a geração, a articulação e o desenvolvimento dos vínculos sociais relacionais com mais rapidez, segurança, previsibilidade e eficácia; quer dizer, com um sentido de garantia de previsibilidade e segurança no tráfego das relações sociais fixadas no contexto dos grupos e dos indivíduos, como destinatários naturais das normas de conduta que a si mesmos se põem e  pelas quais iluminam e fundamentam a solidariedade de sua convivência ética na sociedade – que outra coisa não é, nem outro objetivo se propõe o direito.

 Os sentimentos morais e nossa capacidade ética derivam de nossa arquitetura cognitiva inata e os códigos éticos e jurídicos, por sua vez, surgiram como produtos da interação entre a biologia e a cultura. A moral e a justiça, a despeito das influências culturais, têm uma base orgânica no cérebro humano ao que vai dirigido e que somente ele é capaz de produzir, compreender e aplicar. Somente os seres humanos individuais têm normas jurídicas e sentido de justiça, e os têm precisamente em seu cérebro, na forma de representações plasmadas em suas conexões neuronais. Somos seres éticos por natureza e o cérebro humano, base da linguagem, da moral e do direito, é o único meio através do qual os valores chegam ao mundo [39].

E uma vez que não podem ser considerados como totalmente independentes da constituição e do funcionamento deste órgão adquirido na história evolutiva própria de nossa espécie, a ética, a justiça e o direito não se tornam inteligíveis se não os colocamos em relação sistemática com os componentes e predisposições inatas da constituição biológica humana. Como sustenta Antonio Damasio [40], as convenções sociais e a ética constituem estratégias adquiridas para a sobrevivência dos indivíduos de nossa espécie, mas tais habilidades adquiridas encontram um suporte neurofisiológico nos sistemas neuronais de base que executam os comportamentos instintivos. De tal modo, ignorar ou rechaçar as justificações naturalistas e neurobiológicas dos mesmos é, sem mais, um risco que não podemos permitir-nos, para não dizer um disparate.

Nada obstante, é importante entender que se trata de um processo de influências mutuas, de tal forma que as primeiras expressões normativas produzidas pelo cérebro-mente humano deveram cambiar o próprio entorno de desenvolvimento da inteligência social, a qual permitiu que outras normas mais complexas encontrassem uma alocação na existência essencialmente social da humanidade.

De ser assim, nos encontramos com um papel importantíssimo da convivência social: o de dirigir o componente inato humano até certos domínios particulares. Cabe imaginar numerosos guiões evolutivos nos quais um esquema assim, de interação entre a natureza individual de seres que vivem em grupos e a presença de valores culturais coletivos, proporciona vantagens adaptativas ingentes. Mas dentro dessa multitude de hipóteses há uma que estamos obrigados a considerar de imediato: a do direito como parte do entorno cultural e como resultado dos esforços coletivos de cérebros humanos ao longo de muitas gerações.

 

Imagem Ilustrativa do Post: O Espelho // Foto de: Ana Patícia Almeida // Sem alterações

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