“Qué tiempos serán los que vivimos, que hay que defender lo obvio.” Bertolt Brecht
Por certo que ir mais além do modelo teórico sustentado com um forte aparato matemático por Lumsden e Wilson [35] não é fácil. Como se poderia comprovar o efeito empírico da presença de relações sociais na fertilidade de um grupo de Australopithecus, por exemplo? Mas ainda que se trate de uma hipótese especulativa, tem sentido o guião evolutivo de uns seres que, a partir de pequenas bandas de entre 70 e 150 caçadores-coletores alocados na savana e cuja sobrevivência dependia de forma inevitável e estrita da manutenção da coesão social, chegaram a multiplicar-se e concentrar-se progressivamente: primeiro em pequenas cidades e, mais tarde, em grandes nações até tender a transformar-se em uma “sociedade global”. É esse, de fato, salvando as distâncias, o mesmo esquema que conduziu ao grande ideal de “cidadania universal” próprio dos ilustrados Kant e Goethe - que por certo, dito seja de passo, dista em muito do filisteu processo de “globalização” neoliberal de nossa época.
Em qualquer caso, o fenômeno vem acompanhado de um aumento acelerado tanto do conhecimento como da complexidade dos vínculos e das estruturas sociais – em particular no que diz respeito aos sistemas de informação e de comunicação entre os membros de nossa espécie –, coisa que permite uma interação muito mais intensa, ampla e rápida dentro dos grupos sociais e, em igual medida, exige um incremento substancial das normas integradoras da ação comum. Afinal, como já esclarecido anteriormente, o progressivo aumento da complexidade do intercâmbio recíproco exigiu (e continua exigindo) uma estratégia adaptativa baseada em uma capacidade para predizer as condutas cada vez mais sofisticadas, isto é, em uma consistente padronização das ações e das consequências do complicado atuar humano.
Assim chegamos às leis humanas, essa ferramenta cultural e institucional “cega”, virtualmente neutra e com potencial capacidade vinculante para predizer e regular o comportamento humano, qualquer que seja sua natureza ou grau de imperatividade. Parece razoável supor que, igual que sucede agora, em todas as sociedades humanas existiram de contínuo normas para o exercício de direitos (ainda que estes fossem em ocasiões muito precários) por parte dos membros do grupo. Normas capazes de sentar as regras de convivência com relação ao poder, a distribuição e o uso da propriedade, a estrutura da família ou de alguma outra entidade comunitária, a distribuição do trabalho e a regulação das trocas em geral. Normas que, destinadas a resolver determinados problemas adaptativos, plasmam no entorno coletivo e historicamente condicionado nossa capacidade e necessidade inatas de predizer o comportamento dos demais, de controlá-lo e de justificar mutuamente nossas ações.
Tal como parece haver ocorrido com a própria evolução biológica, o processo de evolução das normas não tem lugar de maneira linear, senão por meio de ensaios e erros. Os humanos se caracterizam por ensaiar distintas soluções normativas e adotar as que lhes parece mais eficaz em um determinado momento, até que seja possível substituí-las por outras que se revelam mais adaptadas aos seus propósitos evolutivos. Na medida em que a flexibilidade da conduta humana e a diversidade das representações culturais são, ainda que limitadas, amplas e, por outro lado, dado que as alterações culturais se podem transmitir com grande rapidez e eficácia, o processo da evolução normativa se encontra sujeito a profundos sobressaltos e equívocos e inclusive, às vezes, a retrocessos significativos. É essa, talvez, a melhor explicação evolucionista das chamadas leis injustas.
Nossos vínculos sociais relacionais são, como resulta difícil negar, deficientes e nossa capacidade de predição e de antecipação das consequências das ações dista muito de ser perfeita, mas é em qualquer caso melhor que nada. Dispomos do direito e, com ele, promovemos em uns grupos tão complexos como são os humanos aqueles meios necessários para controlar e predizer as más e as boas ações, para justificar os comportamentos coletivos e, o que é mais importante, para articular, combinar e estabelecer limites, com vistas à efetiva proteção do indivíduo, sobre os vínculos sociais relacionais que entabulamos ao longo de nossa secular existência. Sem normas, não haveríamos evolucionado; não ao menos na forma em que o fizemos. Graças ao universo jurídico, plasmado em último termo em normas e valores “explícitos”, os seres humanos conseguiram na interação própria da estrutura social um reparto (ao que caberia chamar, com as cautelas necessárias acerca do conceito, “consensuado”) dos direitos e deveres que surgem na vida comunitária.
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