Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 11)

09/11/2018

 

“Cuando los hechos cambian, yo cambio de opinión. Y usted señor, ¿qué hace?”. John Maynard Keynes

Em contra do estabelecido pelo modelo do Homo oeconomicus, o que nos incita a comportar-nos moral e juridicamente não é o cálculo deliberado que duvida entre as possibilidades de obter certo beneficio ao incumprir uma norma estabelecida e o risco que se corre ao ser descobertos e castigados por nosso ato. Tampouco funcionamos mediante uma adesão consciente a normas racionalmente analisadas e aceitadas. Entram em jogo mais bem certas intuições ou sentimentos morais, e o fazem de um modo sub-reptício, espontâneo, sem dar-nos apenas conta dele: empatia, remordimento, vergonha, humildade, sentido de honra, prestígio, compaixão, companheirismo, etc... etc.

Como já manifestado anteriormente, tais intuições se assentam em predisposições inatas de nossa arquitetura cognitiva para o aprendizado e manipulação de determinadas capacidades sociais inerentes à biologia do cérebro, capacidades que foram aparecendo ao longo da evolução de nossos antepassados hominídeos para evitar ou prevenir os inevitáveis conflitos de interesses que surgem da vida em grupo. São estes traços, que poderíamos chamar tendências mais que características, o que melhor pode ilustrar as origens e a atualidade do comportamento moral e jurídico do homem.

De fato, se os homens se juntam e vivem em sociedade é porque somente por esse modo podem sobreviver. Desenvolveram-se por tal via valores sociais específicos: o sentimento de pertença e lealdade para com o grupo e os seus membros, o respeito pela vida e propriedade alheias, o altruísmo, a trapaça, a empatia, o sentido da reputação, o respeito recíproco, a antecipação das consequências das ações e um longo etcétera. Trata-se de práticas que aparecem de maneira necessária no transcurso de uma vida compartilhada dando mais tarde lugar aos conceitos de justiça, de moral, de direito, de dever, de responsabilidade, de liberdade, de dignidade, de igualdade, de fraternidade, de culpa, de segurança e de traição entre tantos outros.

Por conseguinte, e em que pese ao fato de que a tendência para a separação entre o material e o espiritual tem levado a que se absolutizem alguns desses valores – desligando-os de suas origens e das razões específicas que os há gerado e apresentando-os como entidades transcendentes que ultrapassam os próprios seres humanos –, a ética e o direito somente adquirem uma base segura quando se vinculam à nossa arquitetura cognitiva altamente diferenciada, plástica e especializada, quer dizer, a partir da natureza humana unificada e fundamentada na herança genética e desenvolvida em um entorno cultural. O sentido do direito e da justiça não é o oposto da natureza humana, senão que forma uma parte integrada da mesma. Poderia dizer-se, pois, que os códigos e enunciados normativos da espécie humana como um todo – dos valores éticos aos direitos humanos – são uma consequência peculiar de nossa própria humanidade, e que esta, por sua vez, constitui o fundamento de toda a unidade cultural [34].

O projeto axiológico e normativo de uma comunidade ética nada mais é que um artefato cultural manufaturado e utilizado para possibilitar a sobrevivência, o êxito reprodutivo e a vida em grupo dos indivíduos. Serve para expressar (e frequentemente, para controlar e/ou manipular) nossas intuições e nossas emoções morais, traduzindo e compondo em fórmulas “socioadaptativas” de ordenada convivência a instintiva e mesmo compartida aspiração de justiça que nos move no curso da história evolutiva e cultural própria de nossa espécie. Daí que as normas jurídicas, como geradoras de expectativas seguras, proíbam, obriguem ou permitam determinadas condutas, fomentem certos tipos de vínculos sociais relacionais em detrimento de outros, regulem a liberdade, a responsabilidade e a igualdade, e proíbam – em determinadas circunstâncias – a agressão e a violência.

Parece inegável aceitar o fato de que somos o resultado de dois processos diferentes, cuja confluência, se podemos dizê-lo assim, nos constitui como humanos: um processo biológico de hominização (a soma de mutações, recombinações  e seleção natural pelo qual o Homo sapiens se distingue progressivamente das espécies de que descende) e um processo histórico de humanização (pelo qual se somam outros fatores diferentes aos puramente biológicos: regras, moral, linguagem, cultura, civilização...).

Embora estes dois processos sejam com frequência contrapostos como distintos e inclusive antagônicos, é muito provável que essa tradução da oposição clássica nature/nurture proceda de um equívoco: o de que as construções culturais históricas e os acontecimentos de evolução biológica são processos independentes entre si. Uma negação interessante desse suposto isolamento entre natureza e cultura, sustentada pela segunda sociobiologia, propõe o aparecimento tanto da natureza humana como das expressões culturais dos valores de coesão do grupo por meio de um modelo co-evolutivo e coordenado de evolução entre os genes e a cultura.

 

Imagem Ilustrativa do Post: O Espelho // Foto de: Ana Patícia Almeida // Sem alterações

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