Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 10)

02/11/2018

Lo llamo ceguera inducida por la teoría. Una vez que aceptas una teoría es extraordinariamente difícil apreciar sus fallos”. Daniel Kahneman 

5. O universo natural do Direito

Como seres intencionais, qualquer ação (quer dizer, qualquer movimento, qualquer pensamento ou qualquer sentimento ou emoção que tenham propósitos intencionais) responde a uma forma específica de como a seleção natural modelou nosso cérebro dotando-lhe de uma vantagem adaptativa. Os objetivos de nossas ações se alcançam por meio de estratégias estritamente vinculadas à natureza humana, sem prejuízo – claro está – de admitir amplas variações resultantes da inserção no entorno sociocultural em que se vive. A cultura influi tanto no sentido de acentuar como de rebaixar as tendências mais profundamente enraizadas na natureza humana.

Essa dupla ação natureza-cultura produziu, durante o largo curso de nosso processo evolutivo, algumas estratégias e mecanismos desenhados com a intenção de que servissem para resolver determinados problemas adaptativos a eles associados. Se o propósito se alcança, assumimos e dizemos que tais mecanismos têm valor (que são bons) e, como tal, que são capazes de ir acumulando “tradições” que, não obstante em processo contínuo de renovação, se transmitem de geração em geração mediante atuações individuais de pessoas  influídas por esse triplo conjunto de elementos procedentes da natureza, da cultura e da história, tanto recente como remota, da humanidade.

Ante um panorama assim, de diversidade temporal e cultural tão ampla, a hipótese de que todos os humanos sem exceção significativa tendem a valorar como “boa” uma mesma coisa levaria a afirmar que não pode ser porque nos tenhamos posto todos de acordo sobre sua bondade. Tal valor compartido se assentaria na psicologia natural da espécie humana ao dar uma solução efetiva aos problemas adaptativos do momento.

Existem universais assim, já sejam positivos ou negativos?

Todos os sapiens parecem valorar, por exemplo, a cooperação intragrupal, mas desconfiam ao mesmo tempo da cooperação intergrupal quando é proposta desde fora. Valoramos a coesão de grupo, as relações de parentesco, a submissão ou obediência a um líder, a capacidade de ascender na hierarquia social, a conduta altruísta, a proteção à infância e o aprendizado dos mais pequenos, as alianças estratégicas, a amizade, o sexo, o alvoroço moderado, as relações de intercâmbio, o risco controlado; valoramos a sinceridade, mas também a reciprocidade e a segurança, e abominamos o engano, a desigualdade e a injustiça – ao menos quando nos afeta pessoalmente. Por que é assim cabe ser explicado somente de uma forma: porque a evolução por seleção natural produziu uma mente humana com os parâmetros necessários para comportar-se desse modo típico de nossa espécie.

Em realidade, parece razoável admitir que nossas valorações são, em boa medida, o resultado  de dois domínios em permanente estado de interação: (A) um conjunto de determinações genéticas e neurobiológicas que nos estimulam a manter atitudes morais, a avaliar e preferir, e que pertence ao genoma comum de nossa espécie; e (B) um conjunto de valores morais do grupo que é uma construção cultural, de tal forma que dita construção (e transmissão) dos valores tem lugar de maneira histórica em cada sociedade e em cada época. Dessa interação resulta um universo de preferências que não é livre de tomar qualquer caminho. Nossas valorações são dirigidas e estão condicionadas a grandes traços pela tendência inata ou predisposição a determinadas condutas, que pode considerar-se a verdadeira fonte dos valores humanos. E isto é importante ter em conta porque as valorações morais e jurídicas compartidas são as que têm mais probabilidades de êxito no futuro. Parece conveniente aproveitar este fato, na medida do possível, para adequar os preceitos éticos e normativos a sua sólida realidade se queremos que funcionem.

 A seleção natural desenhou e modelou nosso cérebro com o resultado de que nos importam mais umas coisas e menos outras. Nossa arquitetura cognitiva – funcionalmente integrada e de domínio-específico homogênea para todos os seres humanos – impõe constrições cognitivas fortes para a percepção, armazenamento e transmissão discriminatória de representações socioculturais. Dito de outro modo, os limites observados na diversidade dos enunciados éticos e normativos são os reflexos da estrutura e funcionamento de nossa arquitetura cognitiva. Como seres «neuroplásticos», as características biológicas de nosso cérebro estabelecem o espaço das normas de conduta que nos são possíveis aprender e seguir.  

Esse princípio, defendido na chamada “segunda sociobiologia” segue de perto outras propostas anteriores ao estilo da de Waddington das paisagens epigenéticas [33]. Implica que, se bem as soluções culturais são contingentes e têm caráter histórico, se movem dentro de uns limites estreitos de possibilidades marcadas pela natureza humana. Todos tendemos a valorar certas coisas em detrimento de outras e os valores assegurados por meio de nossas normas de conduta descrevem (em grande medida) nossas atitudes morais naturais: valoramos aquilo que admite a margem de nossa limitada capacidade para aprender a valorá-lo.

 

Imagem Ilustrativa do Post: O Espelho // Foto de: Ana Patícia Almeida // Sem alterações

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