A juntada de petição em processo diverso por erro de digitação do número do processo é situação rotineiramente apreciada pelos Tribunais, que ganha especial importância quando o equívoco ocorre no peticionamento da contestação, acarretando a decretação da revelia.
Verifica-se que não há consenso absoluto a respeito da matéria no âmbito dos Tribunais locais: (a) pela desconsideração do vício, já se decidiu que “Verificado nos autos que a contestação fora apresentada tempestivamente, apesar de juntada em processo diverso face o erro de digitação do número ação, a parte não pode ser prejudica com a decretação de revelia.”;[1] (b) pela necessidade da correta indicação na petição, assentou-se que “ao advogado zelar pela correta inclusão de documentos no sistema PJE, verificando se os arquivos anexados são, de fato, relativos ao processo que se pretende peticionar”.[2]
No âmbito do TJ/SP, numerosos julgados consideram ser erro escusável o protocolo eletrônico de petição em processo distinto, por aplicação do princípio da instrumentalidade das formas e da ampla defesa.[3]
Nesse mesmo sentido, o STJ (desde a vigência do CPC/1973) compreende que o mero erro de forma consistente no equívoco na indicação do número do processo não impede o regular recebimento da petição, desde que demonstrada a ausência de má-fé na conduta, ou seja, o objetivo de obter alguma vantagem processual:
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL DA TELEMAR. CONTESTAÇÃO APRESENTADA DENTRO DO PRAZO LEGAL. EQUÍVOCO NO ENDEREÇAMENTO. AUSÊNCIA DE MÁ-FÉ. MERO ERRO MATERIAL. PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO. APROVEITAMENTO. REVELIA. NÃO CARACTERIZADA. RECURSO ESPECIAL DA ENGETEL PREJUDICADO. 1.- A ocorrência de mero equívoco no endereçamento da peça de defesa, apresentada tempestivamente, não impede o seu recebimento visto ter sido corretamente dirigida à mesma Vara por onde tinham curso os feitos, constando os nomes das partes.
2.- Caracterizada a tempestividade da peça processual, sobre ela não poderiam recair a revelia e seus graves efeitos, ainda mais quando tudo leva a concluir pela ausência de má-fé na conduta da contestante, nem intenção de obter qualquer vantagem processual. 3.- Deve ser atendido o princípio da instrumentalidade do processo, admitindo-se suprida mera irregularidade formal, visto que alcançado o objetivo desejado, abandonando-se o apego ao exagerado formalismo, para melhor atender aos comandos da lei e permitir o equilíbrio na análise do direito material em litígio.
4.- Recurso Especial da Telemar provido, afastando-se a revelia, e prejudicado o recurso da Engetel.” (STJ, 3ª Turma, REsp 1355829/RJ, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 14.05.2013, p. 01.07.2013)
“DIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. CONTESTAÇÃO PROTOCOLADA EM CARTÓRIO DIVERSO. TEMPESTIVIDADE. REVELIA NÃO CARACTERIZADA. - A garantia constitucional do amplo contraditório, a instrumentalidade do processo e o acesso à Justiça, em detrimento do apego exagerado ao formalismo, autorizam a aplicação da melhor interpretação possível dos comandos processuais, para se permitir o equilíbrio na análise do direito material em litígio.
- Não se pode confundir inatividade processual caracterizadora da revelia e autorizadora de seus consectários legais com mero equívoco no endereçamento da contestação.
- Reconhecida a tempestividade das peças processuais, sobre elas obviamente não podem recair a revelia e seus graves efeitos, notadamente quando os elementos fáticos fixados pelo acórdão levam a concluir pela ausência de má-fé na conduta.
- Sob essa ótica, a contestação oferecida dentro do prazo legal, mas em cartório diverso do qual tramitava o processo, por equívoco confesso do advogado da parte, sem, contudo, restar demonstrada má-fé ou intuito de obtenção de vantagem processual, deve ser admitida como tempestiva, afastando-se a revelia e seus efeitos. Recurso especial conhecido e provido.” (STJ, 3ª Turma, REsp 677.044/RS, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15.09.2005, p. 03.10.2005).
“PROCESSUAL CIVIL. CONTESTAÇÃO TEMPESTIVAMENTE APRESENTADA. EQUÍVOCO DE ENDEREÇAMENTO. ERRO ESCUSÁVEL. APROVEITAMENTO. A mera aposição equivocada do número do processo na contestação, que foi tempestivamente apresentada, conforme carimbo eletrônico do setor de recebimento competente, não impede o recebimento da contestação que foi corretamente dirigida à Vara por onde tinha curso o feito, com o nome certo da parte adversária. Os princípios da instrumentalidade e do acesso à justiça não compadecem com o formalismo exacerbado, por isso mesmo que o mero escusável equívoco, como se deu na espécie, não pode sacrificar a garantia do contraditório. Recurso conhecido e provido.” (STJ, 4ª Turma, REsp 152.511/MG, rel. Min. César Asfor Rocha, j. 06.04.2000, p. 29.05.2000)
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE APELAÇÃO. PROTOCOLIZAÇÃO EM VARA DIVERSA DE UM MESMO FORO. EQUÍVOCO PROCEDIMENTAL. FORMALISMO EXCESSIVO. GARANTIA CONSTITUCIONAL DO EFETIVO ACESSO À JUSTIÇA. TEMPESTIVIDADE DA APELAÇÃO. 1. Não deve ser considerada intempestiva a protocolização da Apelação, no prazo legal, em Vara diversa do mesmo Foro, inexistindo má-fé ou intuito de conseguir vantagem processual. 2. O formalismo processual excessivo é a negação do próprio Estado de Direito Democrático, uma vez que inviabiliza, por via tortuosa e insidiosa, a garantia constitucional do efetivo acesso à Justiça. Precedentes. 3. Agravo Regimental não provido.” (STJ, 2ª Turma, AgRg-Ag 775.617/RS, rel. Min. Herman Benjamin, j. 27.05.2008, p. 13.03.2009).
O CPC/2015 “prestigia o sistema que se orienta no sentido de aproveitar ao máximo os atos processuais, regularizando, sempre que possível, as nulidades sanáveis”.[4] A doutrina e a jurisprudência que se formaram e se consolidaram sob a égide do CPC/1973 são assentes no sentido de que a forma não pode querer se sobrepor ao conteúdo do ato processual, isto é, “o juiz deve desapegar-se do formalismo, procurando agir de modo a propiciar às partes o atingimento da finalidade do processo”.[5]
Ao tratar da instrumentalidade em seu aspecto negativo, Cândido Rangel Dinamarco pontua que “realizado por algum modo o objetivo de determinado ato processual e não ocorrendo prejuízo a qualquer dos litigantes ou ao correto exercício da jurisdição, nada há a anular ainda quando omitido o próprio ato ou realizado com transgressão a exigências formais”.[6]
Assim, no erro na indicação do número do processo, ganha destaque o art. 188, do CPC, que consagra o princípio da liberdade das formas, ao dispensar uma forma preestabelecida para a prática dos atos processuais.[7] A par disso, os arts. 277 e 283 do CPC[8] tratam do “princípio da instrumentalidade das formas’, ou da ‘finalidade’ ou, ainda, ‘do prejuízo’, ao estabelecerem, com segurança, que não há invalidade no plano do processo tão só pelo descumprimento da forma. O que releva é verificar se e em que medida a finalidade do ato foi ou não alcançada e, por isto mesmo, constatar que o plano da eficácia do ato mitiga ou, quando menos, tende a mitigar, de alguma forma, eventuais defeitos derivados do plano da existência ou do plano da validade”.[9]
Desse modo, o erro material na numeração do processo não impede o seu recebimento pelo juízo, desde que constatada a boa-fé da parte peticionante, o que se extrai da observância ao prazo e da correta indicação dos nomes das partes e da mesma Vara por onde têm curso os feitos.
Notas e Referências
[1] TJ/RS, 10ª Câmara Cível, AI 70068069459, rel. Des. Túlio de Oliveira Martins, j. 18.08.2016, p. 15.09.2016.
[2] TJ/MG, 15ª Câmara Cível, Apelação 10000170059653001, rel. Des. José Américo Martins da Costa, j. 06.04.2017, p. 11.04.2017.
[3] TJ/SP, 14ª Câmara de Direito Privado, Apelação 10350291920188260114, rel. Des. Melo Colombi, j. 02.07.2019, p. 02.07.2019; TJ/SP, 26ª Câmara de Direito Privado, Apelação 10112679620178260020, rel. Des. Pedro Baccarat, j. 02.07.2020, p. 02.07.2020; TJ/SP, 10ª Câmara de Direito Privado, Apelação 10028139220138260271, j. 05.04.2016, p. 06.04.2016.
[4] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 17. ed. São Paulo: RT, 2018, p. 818.
[5] Ibidem, p. 960
[6] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, v. 1, p. 40.
[7] CPC, Art. 188. “Os atos e os termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial.”
[8] CPC, Art. 277. “Quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.”. CPC, Art. 283. “O erro de forma do processo acarreta unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo ser praticados os que forem necessários a fim de se observarem as prescrições legais. Parágrafo único. Dar-se-á o aproveitamento dos atos praticados desde que não resulte prejuízo à defesa de qualquer parte.”
[9] BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, v. 1, p. 661.
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