ERGUER A VOZ: UM PROJETO ANCESTRAL DE (RE)EXISTÊNCIA

28/11/2023

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Inicialmente, considero importante pontuar que a abordagem a seguir está longe de ser imparcial e descompromissada, muito pelo contrário, ao lado de Abdias Nascimento (2016) e tantos/as outros/as, entendo pela impossibilidade de separação entre as vivências e o fazer-se intelectual. Portanto, é a partir das escrevivências de Conceição Evaristo (2006) que me insiro neste trabalho enquanto mulher, cis, negra e bissexual, marcadores que, direta e indiretamente, farão parte da análise. Quanto ao tradicional leitor/a (acadêmico) do Direito: sinto decepcioná-lo!

Novembro é o mês no qual o debate acerca das relações raciais aparecem no cenário social de maneira mais acentuada. Apesar de ser compreendido como um marco importante no processo de conscientização das estruturas raciais, um momento em que (teoricamente) a sociedade está mais aberta ao debate, ele também acaba revelando os processos de silenciamento que insistem em impor sobre o tema e sobre integrantes da comunidade não-branca, coisa que o Movimento Negro vêm tentando subverter à anos.

O racismo no Brasil, como bem desenhou Lélia Gonzalez (2020), se utiliza da denegação para manter subserviente a fala de todos/as aqueles que divergem do padrão de humanidade que fora eleito na modernidade. E quando digo subservientes, trato do lugar do silêncio, do não-lugar, ou, nas palavras da autora, da lata de lixo da sociedade. Mas acontece que “o lixo vai falar, e numa boa” (Gonzalez, 2020, p. 78). Neste sentido, apesar dos esforços em silenciar a voz da população negra, algumas opressões acabam sendo reveladas, ainda que de maneira velada e sutil. Afinal, mesmo se apresentando pelas “entrelinhas”, tais violências acabam cumprindo fielmente com o dever de silenciar corpos, vozes e identidades de (crianças, adolescentes e, posteriormente) mulheres negras, renegando-as à condição de objetos, cuja existência se resumiria à cumprir ordens, seguir estritamente o que lhes foi ensinado e, jamais, questionar sua situação social e política (hooks, 2019).

Na infância “fazer ouvir-se era um convite à punição, à palmatória, ao tapa na cara que te pegaria desavisado, ou à sensação de varetas queimando seus braços e pernas” (hooks, 2019, p. 31) e, como se não bastasse, já na fase adulta “loucura, não só abuso físico, era a punição para uma mulher que falasse muito” (hooks, 2019, p. 35). De todas as formas, tentava-se silenciar a voz que ecoa do corpo-negro-mulher, pois seu lugar “natural” seria o de subserviente.

Isto porque atribuem-se ao corpo, características “ideais” a serem cumpridas, dependendo de quem se é. Neste sentido, “o corpo é uma construção cultural, é educado” (Ferrari, De Oliveira, 2018, p. 45-46), “é provisório, é conjuntural, histórico e desnatural” (Melgar Jr., Caetano, Goulart, 2018, p. 133). À ele são atribuídas características construídas e moldadas historicamente a partir do padrão eurocentrado, ou seja, cria-se a mulher ideal, a criança ideal, o homem ideal, e, certamente, nenhum deles perpassa o corpo negro, quem dirá o corpo negro que fala/denuncia.

Daí é que surge a necessidade de fazer calar a voz de grupos oprimidos, tais como o de mulheres negras que, como já dizia Gonzalez (2020), foram e são silenciadas tanto no movimento tradicional de mulheres (pelo caráter liberal-racista e pela diferença no que seriam as pautas prioritárias), quanto no movimento negro (por conta do sexismo). Assim, encontrar voz e não deixar com que sentimentos como o desespero, a fúria e a angústia sejam sempre reprimidos, significa muito mais do que “erguer a voz”, mas resistir e re-existir. O poder de falar provoca a transformação daquilo que era objeto, ou melhor, do corpo-objeto pelo qual se pode usufruir, para o/a sujeito/a (hooks, 2019, p. 45).

Para que isto aconteça, é necessário muito mais do que a fala em si, mas a compreensão do que é ser um corpo político que fala, a necessidade de entender seu ponto de partida e, principalmente, quem são aqueles/as a quem nossa fala se direciona. hooks (2019, p. 73), assim como outros/as autores/as já citados neste texto, relembra que “a linguagem também é um lugar de luta” e é a maneira como lidamos com ela que vai determinar se estamos conseguindo cumprir com o objetivo ancestral.

Mas isto se dificulta quando, ao fazer o “teste de pescoço”[1] em locais privilegiados, dificilmente encontram-se pessoas negras. Nas universidades, por exemplo, estes pouquíssimos corpos, geralmente são fruto de políticas de ações afirmativas, as quais só foram implementadas graças à luta constante do Movimento Negro que após uma série de pressões, fez-se implementar leis como a 10.639/03 e a 11.645/08, obrigando o ensino da história e cultura africana, afrobrasileira e indígena nestas instituições. Daí também a necessidade de entender o M.N. enquanto um movimento educador (Gomes, 2019), afinal a “educação é uma questão política para pessoas exploradas e oprimidas” (hooks, 2019, p. 207).

Além disso, a mera entrada às universidades (assim como em outros locais de poder) não garante que a voz de intelectuais negros/as seja ouvida, muito menos credibilizada. Os mecanismos fundamentados no racismo atuam de maneira individual, institucional e estrutural para que estes corpos sejam silenciados ou embranquecidos, reservando-se o direito de nomear quem é intelectual e quem não é, a partir de critérios que o beneficiem (Almeida, 2019). Assim, levando-se em consideração a fala do Prof. Antônio Bispo dos Santos (2023), de que “quem nomina, domina”, verificamos a necessidade de nomear a si, identificando-se na luta e rompendo com os silêncios.

Ele (o silêncio), nada mais é do que o reflexo de alguém que foi desumanizado e objetificado, por outrem (indivíduo) e por um sistema racista-exploratório que enxerga pessoas negras como a antítese do homem universal e, portanto, o “atraso da sociedade”. Acontece que “o colonizador, ao habituar-se a ver no outro a besta, ao exercitar-se em tratá-lo como besta, para acalmar sua consciência, tende objetivamente em transformar-se ele próprio em besta” (Césaire, 2020, p. 25).

Portanto, “a Europa é indefensável” (Césaire, 2020, p. 12) não apenas por conta dos séculos de violência e opressão a que submeteu os povos originários, africanos e afrodiaspóricos, mas também pelo fato desta frase não estar escrita com o verbo no passado. As chagas coloniais continuam abertas, silenciando a fala dos corpos que outrora foram colonizados. Mas, como diria Audre Lorde:

[...]e quando falamos temos medo

de nossas palavras não serem ouvidas

nem bem vindas

mas quando estamos em silêncio

ainda assim temos medo

é melhor falar então

lembrando

sobreviver nunca foi nosso destino (Lorde, 1984, p. 05)

O mês de novembro, enquanto marco simbólico na luta contra as estruturas raciais no Brasil, é fundamental para a construção de caminhos outros, mas este debate não pode se limitar à um período determinado (Gomes, 2019). Em pouco adianta ceder espaços de diálogo durante este mês, e silenciar sistematicamente a mesma fala durante os outros meses do ano. Assim, concluindo o inconcluível, precisa-se afirmar que para além de toda a violência imposta, também existe um legado de (re)existência, luta e ressignificação que foi, e vêm sendo enfrentado pelo Movimento Negro, e de diversos atores sociais organizados. Se sobrevivemos até agora, porque teriam eles a audácia de nos silenciar? Ubuntu!

 

Notas e referências

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

CÉSAIRE, Aime. Discurso sobre o colonialismo. 2ª ed. Florianópolis, 2020.

EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

FERRARI, Anderson; DE OLIVEIRA, Danilo Araujo. O caso do aluno gay expulso da escola: moral, verdade e ética nas construções das homossexualidades masculinas no contexto escolar. In RODRIGUES, Alexsandro. Crianças em Dissidências: narrativas desobedientes da infância. Salvador: Editora Devires, 2018.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Editora Vozes Limitada, 2019.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro latino americano: ensaios, intervenções e diálogos. Zahar, 1 ed., org. Flávia Rios e Márcia Lima, 2020.

hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Editora Elefante, 2019.

LORDE, Audre. Sister Outsider. Trumansburg: Crossing, 1984.

MELGAR JR, Eduardo Garralaga; CAETANO, Marcio; GOULART, Treyce Ellen. A criança, o cabelo e as goiabas: interdições e acolhidas com a escola. In RODRIGUES, Alexsandro. Crianças em Dissidências: narrativas desobedientes da infância. Salvador: Editora Devires, 2018.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3ª ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.

[1] Expressão utilizada pela Prof. Fernanda da Silva Lima, ao abordar a naturalização destinada à ocupação de corpos específicos em locais determinados. O “teste de pescoço”, neste sentido, seria o ato de entrar em espaços de poder e perceber quais corpos estão sendo ocupados por pessoas pertencentes a grupos subalternizados (e vice-versa), analisando os possíveis motivos para tanto.

 

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