ERA DIA DE ESTREIA*  

05/04/2019

 

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

Era dia de estreia. Dia de desafios, de viver outras vidas. Terrível para os racionais. Ia representar dois papéis. Uma menina descalça e um homem de sapatos. O papel de Glorinha, muito meigo e triste. O de Stiveie, angustiante e misterioso. A realidade do ser. Durante os ensaios sempre estive descalça. O figurino eu vestiria apenas na estreia. Nos cinco dias antes da peça experimentei a roupa, os sapatos, mas não caminhei. Texto aqui, lá, acolá. Era a única preocupação. A menina fazia um monólogo com voz mansa e levava nos pés alguns ramos de mato. Stiveie bem trajado e com sapatos impecáveis batia os pés no chão como protesto pela sua vida. Amarrava todas as cadeiras do cenário. Sentava-se de cabeça pra baixo. Pés firmes para cima em movimento. Braços alternados. Música de fundo, luzes acesas, voz forte: "_ A vida ao avesso é assim. Vemos os que os outros não vêem. Enxergamos a crueldade, a maldade, a violência. Mas sabemos sorrir de verdade, olhar para dentro dos outros e de nós mesmos. Sabemos contemplar o amanhecer e o anoitecer."

Nunca tinha errado uma só fala nos ensaios... Noite. Estreia. Plateia numerosa. Cortinas abrindo. Pés descalços. Liberdade. Mensagem enviada. Bastidores. Troca de figurino. Sapato pequeno. Não era do meu número. Pensamentos distantes. Desconcentração. Fugiu o texto, a fala, as marcações. Foi o fim. Não aguentava mais. Entrei no palco arrastada, reprimida, sob tropeços. Pés doloridos. Palavras dormentes. Inventei o texto e sussurrei:"_Mexam-se vocês que nunca estiveram descalços! Esperam mais? Escolheram suas profissões, seus companheiros? Deixem de comportar como personagens da Cinderela que machucam, ferem, encolhem os próprios pés para caberem num calçado que não lhes pertence! Pés descalços, vida liberta! Chão firme. Vivem? Morrem? Sentem? Pensam? Tirem os sapatos e façam seus planos!" Retirei os sapatos e continuei: "_ Por que colocamos nas nossas cabeças que devemos calçar os sapatos que não são nossos? Todos nós sabemos que é muito difícil passar o tempo todo no palco da vida com um sapato que  não é do nosso número, não?" . Olhei para a plateia. Lágrimas. Assobios. Palmas.

No mesmo instante tudo interrompeu. Ficou aquela sensação do inacabado, pois inacabado de fato foi. "A menina, o homem. O sonho!" E tudo apagou. Os spots caíram da gambiarra. Escureceu. A rotunda e toda a cenografia desapareceram no atro do momento. Ouviam-se apenas a minha voz: "Ao homem dei a minha alma. À menina, os pés no chão. Pena? Não se vê mais as flores, nem o som dos pássaros. Não se vê o homem como homem e sim como máquina que não sente dor, não pensa, não chora". Naquele momento, a luz caíra. De propósito. Mas não me abalou, não calei. Ainda descalça caminhei na escuridão do palco. Eu estava enxergando o que eu não enxergava, o que ninguém queria enxergar. Minhas palavras despertaram a platéia? Não sei. Mas houve tumulto: tudo foi negror. Depois um silêncio, tímido e medroso. Abissal. Desapercebidos pela plateia, os produtores se agitavam, percorriam telefones, havia capital empregado. E os telefonemas culpavam as companhias de energia pelo fracasso financeiro. E eu com os pés firmes no palco continuava falando de mim mesma. Atriz da minha personagem. O diretor sem perceber, gritou de não sei onde: "Louca! Bêbada! Ou drogada?". Eu respondi: "É fácil imputar! No escuro não se vê olhos, não se sabe de gente. As palavras revelam o interior de cada um. A menina vê a luz íntima de seu palco a iluminá-la e faz o seu papel." O diretor gritou: "Você sente a dona, não do mundo, mas de si". Respondi: "Descalça, a menina pisa na natureza e carrega a verdadeira raiz da vida. A sua voz flui na escuridão... e sente o silêncio da platéia. E descobre que o mundo está vazio, até você. Um silêncio desumano." Numa fala branda o diretor falou engasgado: "Pare! A sua voz flui como uma orquestra, ao som débil, pianíssimo. E agora, só agora descobri que você fala de amor." Foi quando a luz repentinamente voltou. Aplausos e vivas, pensando que o diretor era também ator. Eu descalça e envergonhada saí do palco e corri para o camarim. Os vivas foram reconhecidos pela crítica que enalteceu o espetáculo. E o diretor foi reconhecido. Enquanto eu, descalça chorei pelo meu despojamento, senti-me nua.

 

*Texto escrito em 2004 inspirado no tema "Ciúme" desenvolvido no módulo "Violência de Gênero e Conjugal" ministrado por Cláudia Guerra junto ao Curso de Especialização em Gestão de Movimentos Sociais e Políticas Públicas (por ela coordenado junto à UNIMINAS - Uberlândia/MG). Durante as aulas Cláudia Guerra sugeriu criação de paródia a partir da leitura de textos sobre ciúme, dentre os quais "Ciúme - o medo da perda" e  "Mulheres Invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança".Em vez da música pari o conto que foi acolhido e, a seu pedido, lido em voz alta em sala de aula. Anos depois o texto compôs material-base de projeto original de montagem do espetáculo SOL NOS OLHOS (Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2009)

 

Notas e Referências

SANTOS, E. F.Ciúme - o medo da perda. São Paulo: Ática, 1998. p.17-32; p. 201-236.

SOARES, B. M. Mulheres Invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1999. p. 23 - 61.

 

Feminismos, Artes e Direitos das Humanas

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