ENY MOREIRA, UMA ADVOGADA CORAJOSA, COMBATIVA E AMOROSA

11/01/2022

Muito devemos a esta valente e combativa defensora. Foi uma atuante advogada durante a recente ditadura militar.

Estamos tristes e os democratas sentirão muito a sua falta.

Mas uma guerreira contra o arbítrio e a truculência viverá sempre em nossas memórias...

Valeu, Dra. Eny. Muito obrigado mesmo.

Vejam este terrível e comovente depoimento da saudosa advogada:

https://www.youtube.com/watch?v=pZM4-B0YAm8

Para Eny, o meu doloroso "El Adios" ... https://www.youtube.com/watch?v=pl5pF4Ai6w4

Abaixo publico dois importantes textos sobre a trajetória de vida desta que foi um exemplo para a advocacia em nossa pátria.

 

  • “A ADVOGADA ENY MOREIRA, QUE LUTOU CONTRA A DITADURA MILITAR (texto escrito pelo escritor Frei Beto). 

Imagine uma penitenciária de presos comuns, guardados em regime de segurança máxima, no interior de São Paulo. Mude agora o foco da fantasia para o bairro do Leblon, no Rio. Acredita que uma jovem advogada possa trocar a Zona Sul carioca, em plena noite de Natal, pela convivência com presos comuns?

Em 1972, eu me encontrava na Penitenciária de Presidente Venceslau (SP), em companhia de mais cinco presos políticos – os frades Ivo Lesbaupin e Fernando de Brito, o camponês Manuel Porfírio, o jornalista Maurício Politi e o advogado Wanderley Caixe – todos misturados, por arbítrio da ditadura militar, a centenas de presos comuns. O trenó da solidariedade nos levou um presente inusitado no Natal: a presença de nossa advogada, Eny Raimundo Moreira.

A direção do cárcere não conseguia entender por que ela preferiu passar ali aquele período de festas, longe de seus familiares e amigos. Por que os “terroristas” mereciam tanta atenção?

Eny era mais do que mera advogada. Destacava-se pela garra, pelo destemor frente ao aparato necrófilo da ditadura. Pequena na estatura, era grande na coragem. Mineira de Juiz de Fora, pele cor de amêndoa, tinha o raciocínio ágil e transpirava afeto.

Em 13 de junho de 1972, Paulo Vannuchi, um dos clientes da doutora Eny, compareceu à Auditoria Militar de São Paulo para depor como testemunha em um processo. Eny denunciou ao juiz Nelson da Silva Machado Guimarães a tortura que ele sofrera no DOI-CODI, a 9 de maio: apontou o hematoma no olho esquerdo e os sinais de enforcamento no pescoço. Pediu que ele abaixasse a calça e mostrasse hematomas na virilha e na perna esquerda, esfolamentos e escoriações diversas. Paulinho declarou que os torturadores, frente à sua resistência em não ingerir alimentos no decorrer da greve de fome, introduziram um tubo em seu ânus, por onde injetaram leite.

A única reação do juiz foi prometer que o prisioneiro não retornaria ao DOI-CODI.

A coragem da Eny era desproporcional ao seu tamanho. Tinha a quem puxar: trabalhou no escritório do famoso advogado Sobral Pinto, no Rio. Católico convicto, Sobral defendeu Luiz Carlos Prestes, líder comunista, sob a ditadura de Getúlio Vargas.

Graças também ao empenho de Eny, a memória nacional resgatou, na obra “Brasil Nunca Mais” (Vozes), assinada por Dom Paulo Evaristo Arns e o pastor Jaime Wright, as atrocidades cometidas pela ditadura.

Foi ela quem encontrou as vias transversas para acessar os arquivos do Superior Tribunal Militar, em Brasília, e microfilmar todos os processos de presos políticos.

Na noite de Natal de 1972, a Penitenciária de Presidente Venceslau programara missa celebrada pelo capelão, um padre espanhol mais próximo dos carcereiros que dos condenados, na contramão de Jesus. Apelamos ao diretor para que Eny pudesse participar. Seria ele tão desalmado a ponto de permitir que ela, distante do Rio, ficasse sozinha num quarto de hotel naquela noite significativa? Vencido por nossa pressão, o homem cedeu.

Armou, no pátio da penitenciária, um palanque e, dentro dele, o altar. Lá embaixo, quatrocentos presos uniformizados e enfileirados. No momento da homilia, o celebrante deu a palavra ao diretor. Pronunciou um farisaico discurso, como se todos ali não soubessem que ele era conivente com torturas, castigos abusivos em solitárias, onde presos ficavam semanas trancados nus, às escuras, suportando o frio e a água com que os guardas molhavam o chão.

Em sua ânsia demagógica, o diretor cometeu o erro de exaltar o gesto da doutora Eny Raimundo Moreira, que viera de uma cidade distante para comemorar o Natal com seus clientes. Pediu uma salva de palmas à Eny. E ainda solicitou que ela dissesse uma palavra aos “reeducandos”.

Surpresa e bastante emocionada, ela nos dirigiu a palavra. Impossível reproduzir o que disse. Um canto de amor não pode ser descrito. Como doce perfume, suas palavras contagiaram o ambiente. Seu carinho penetrou o coração de cada presidiário. Só lembro que terminou dizendo: “Beijo cada um de vocês”. Mas não se limitou à palavra. Emocionada, preferiu uma atitude:

— É noite de Natal – disse – e quero dar um abraço em cada um de vocês.

Abandonou o microfone e veio em direção aos bancos onde estávamos. Desceu do palanque-altar e, durante duas horas, sob um silêncio clamoroso, enquanto a banda de presidiários tocava as peças finais, ela caminhou lentamente entre aqueles homens uniformizados, enfileirados nos bancos, e abraçou e beijou cada um daqueles quatrocentos homens, a maioria há anos sem receber o carinho ou o toque de uma mulher. Choravam convulsivamente. Corações de pedra transmutavam-se em corações de carne, como reza a Bíblia.

Muitos companheiros não suportaram a ternura que extravasava daquele gesto. Um deles disse a ela: “É a primeira advogada que vejo advogar com amor”. Outros disseram: “Frei, por esta mulher, eu mato qualquer um” (dentro daquele mundo, isto era uma forma de elogio); “Eu não acreditava em gente boa, mas agora sou obrigado a reconhecer que estava errado”; “Não podia haver melhor presente”.

Durante muito tempo, o assunto ali foi a presença de Eny.

Na segunda-feira, 25 de dezembro, Eny voltou cedo para passar o dia conosco. Foi a única visita que nós seis recebemos. Demos a ela, de presente, desenhos feitos pelo Caixe e o Mané. O time campeão da casa ofertou medalhas e faixas, que ela recebeu feliz. Todos queriam agradecer-lhe de alguma forma.


Eny partiu na manhã seguinte. Mas sua presença perdurou.

Assim era Eny, advogada que não sabia atuar, em nível efetivo, sem o complemento do afetivo. Foi o anjo da guarda de centenas de presos políticos da ditadura e, como discípula de Sobral Pinto, defensora intransigente dos direitos humanos.

A história do Brasil a merece. E as vítimas da ditadura agradecem a vida, a coragem e a competência desta encantadora mulher, que aos 77 anos transvivenciou em São Paulo, acometida por problemas no coração e nos rins, na terça, 4 de janeiro de 2022.

Frei Betto é escritor, autor de “Batismo de Sangue” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

  • Eny Moreira: uma vida contra o autoritarismo

(texto do jornalista Marcelo Auler)

O Direito brasileiro perdeu na tarde desta terça-feira uma das mulheres que abrilhantaram a advocacia nacional, em especial a criminal: Eny Raimundo Moreira.

Ela faleceu aos 75 anos (nasceu em 05 de abril de 1946) no Instituto do Coração de São Paulo, onde se internou no final de novembro para uma cirurgia do coração. Advogada conhecida e com grandes clientes, recorreu ao hospital público por falta de plano de saúde. Mas foi muito bem tratada ali, recebendo todos os atendimentos necessários.

Lutou muito para sobreviver. Por problemas de saúde, em especial renais, a cirurgia foi adiada só se realizando no dia 17 de dezembro. Após isso, Eny ainda sofreu um infarto, logo controlado, mas o rim permaneceu com dificuldades.

Mineira de Juiz de Fora, ela ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora em 1964, um mês antes do golpe militar. No segundo ano da faculdade, ao ler uma reportagem sobre o advogado e defensor dos Direitos Humanos Sobral Pinto, Eny decidiu morar no então Estado da Guanabara. Queria trabalhar com ele. Desembarcou na cidade com a cara e a coragem e foi atrás de Sobral, um católico conservador, anticomunista, que defendia comunistas como Luis Carlos Prestes.

É dela o relato sobre a conquista do emprego, narrado no livro “Advogados em Tempos Difíceis – Ditadura Militar 1964-1985”, coordenado por Paulo Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz, editado pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, referindo-se à reportagem que mudou sua vida:

Na revista Realidade, tinha um detalhe que me chamou atenção: ele era de comunhão diária, era extremamente católico, religioso, e assistia à missa na capela do colégio que ficava na esquina da rua onde ele morava, na Pereira da Silva, em Laranjeiras. Seis horas da manhã começava a missa e ele ajudava. Eu vim para o Rio, dormi em uma pensão em Copacabana, e seis horas da manhã estava entrando na Igreja. Só que o padre era mais pontual que eu e já tinha começado a missa, Sobral estava lá no altar ajudando. Quando terminou, eu fiquei do lado esquerdo, um pouco mais à frente da metade da capela. Todo mundo foi embora e o Doutor Sobral ficou no altar, limpando os cálices, dobrando os panos, as toalhas. Depois ele desceu do altar, ajoelhou-se no primeiro banco e ficou lá, rezando, só tínhamos eu e ele na Igreja. De repente ele levantou, pegou o chapéu, pegou o guarda-chuva e saiu pela nave central. Eu corri pelo lado esquerdo e pulei na frente dele, no umbral da porta. Eu tremia feito vara verde e eu não lembro o que falei, mas em síntese, era: “Doutor Sobral Pinto, eu sou estudante de Direito e eu quero muito ser uma boa advogada e eu quero trabalhar com o senhor. Posso? Ele botou o olho no meu olho, parecia uma eternidade, me olhou profundamente e disse: “começa amanhã”.

Criou o Comitê da Anistia e o “Brasil Nunca Mais”

Assim, em 1966, pediu transferência para a Faculdade Nacional de Direito. Foi admitida no escritório de Sobral Pinto como estagiária, permanecendo lá por mais quinze anos, após se formar em 1968.

Na Faculdade foi colega do então líder estudantil Wladimir Palmeira, que depois abandonou o estudo e ingressou na resistência política, tornando-se um preso político. Na mesma turma estava Técio Lins e Silva, outro que abraçou a defesa de perseguidos da ditadura militar.

Eny permaneceu no escritório de Sobral até 1979, ano da Anistia. Aprendeu com Sobral e seus dois companheiros de escritório, Oswaldo de Mendonça e Bento Rubião, a defender presos políticos. Foi presa duas vezes, em 1969 e 1970. Trabalhou em importantes casos, como os de Paulo Vannuchi, Isis Dias de Oliveira e Theodomiro Romeiro, primeiro processo com condenação de pena de morte.

Foi presidente-fundadora do Comitê Brasileiro da Anistia. Depois, junto com dom Paulo Evaristo Arns, Rabino Henry Sobel e o Pastor presbiteriano Jaime Wright, entre outros, montou o projeto “Brasil Nunca Mais”, tendo ido à Europa conseguir a verba que financiou as cópias Xerox de todos os processos de presos políticos. Um trabalho realizado, juntamente com outros advogados, clandestinamente, entre 1979 e 1985. Gerou a mais completa documentação sobre a história da repressão política no Brasil. Já nessa época dedicava-se à advocacia voltada para as questões de Direito Autoral. Defendeu, entre outros, autores como Chico Buarque de Holanda.

Entre maio de 2013 e dezembro de 2015, Eny Moreira participou da Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro. Ao homenagear a colega, Felipe Santa Cruz, presidente do Conselho Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, escreveu no Twitter:

“Advogada combativa que resistiu ao regime militar defendendo perseguidos com coragem e heroísmo, ela nunca aceitou calar-se diante do autoritarismo”. 

MARCELO AULER (escritor e jornalista)

 

Imagem Ilustrativa do Post: woman holding sword statue // Foto de: Tingey Injury Law Firm // Sem alterações

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