Entrevista com Thiago Allisson Cardoso de Jesus, autor de A (Des)ordem do Discurso em Matéria de Segurança Pública no Brasil Pós-1988

13/08/2020

A entrevista de hoje é com o autor Thiago Allisson Cardoso de Jesus, escritor da obra A (Des)ordem do Discurso em Matéria de Segurança Pública no Brasil Pós-1988. A obra já está disponível para compra no nosso site.

 

1. Thiago, poderia falar um pouco sobre o tema o livro?

Indicada ao Prêmio Capes de Tese em 2018, a presente obra publiciza resultados oriundos de séria investigação científica para obtenção do Título de Doutor em um dos Mais conceituados programas de pós-graduação em políticas públicas da América Latina, que é o da Universidade Federal do Maranhão, e teve como orientadora a Professora Doutora Claudia Maria da Costa Gonçalves, professora associada do Departamento de Direito e no PGPP/Ufma. Afigura-se, aqui, uma concreta crítica científica ao descompassado, atécnico e partidário processo de formulação do paradoxal Programa de Segurança com Cidadania, demarcado por continuidades de um histórico tratamento repressivo, estigmatizante e centralizador dado pelo Estado Brasileiro à violência e criminalidade, complexas expressões da questão social.

A obra analisa o processo de formulação de um Programa que destinava-se, originariamente, a tratar a questão das violências e da criminalidade por meio de uma simbiose de ações preventivas e repressivas, voltadas a efetivação da segurança pública em determinados lugares, marcados por intensa vitimização.

Nesse sentido, sobre o tema, dois pressupostos fundamentais: a) as políticas públicas de segurança foram formuladas no contexto de diversos interesses e expectativas de distintos sujeitos e racionalidades; b) as políticas públicas de segurança no contexto do sistema de justiça criminal brasileiro contemporâneo reforçaram e reproduziram, em maior e menor grau, lógicas e racionalidades distintas.

Usando da arqueologia foucaultiana, identifica-se a desordem do discurso em matéria de segurança pública: ao eleger espaços, reforçou-se o etiquetamento em detrimento da criminalidade de colarinho branco; ao eleger como prioridades o aporte de gastos com presídios e armamentismo, reforçou-se a lógica punitivista, de contença, aprisionamento e militarizada.

Por meio de técnicas apuradas de pesquisa, revelaram-se os interditos e os ocultos nos discursos das políticas de segurança pública e, especialmente, nesse Programa tido de Segurança Pública com Cidadania.

 

2. Qual a importância de debater esse tema?

A relevância consiste na análise do processo de formulação de políticas públicas de Segurança no Brasil. Precisamente, de como o Brasil, por meio de seus poderes constituídos, trata a questão criminal. Revelaram-se os limites, as fragilidades e os descompassos técnicos em uma necessária intervenção que lida como um dos dilemas mais complexos da experiência concreta que é a violência e a criminalidade. Nesse sentido, afigura-se a análise como uma proposta daquilo que não pode ser feito em matéria de política pública, bem como sinaliza ao necessário caminho de efetivação de direitos de cidadania e afirmação dos postulados do processo civilizatório como fundamentos para a efetivação da segurança de um lugar, além de realçar a necessidade da regionalização e das conformidades constitucionais que devem possuir as intervenções estatais na atualidade.

 

3. Como a obra pode contribuir juridicamente?

Considerando a escassez de literatura nessa área, a obra é uma investigação aplicada, que articula marcos teóricos e metodológicos para a realização de uma pesquisa contextualmente situada. Investiga as lógicas, as racionalidades e os interesses dos sujeitos atuantes à época da formulação, compreendendo as ideologias conflitantes bem como revelando a construção interessada dos materiais da época da formulação, por meio de um trato apurado dado às entrevistas colhidas, às memórias sistematizadas e aos dossiês históricos sistematizados no Ministério da Justiça.

Há também na obra uma densidade teórica que permite o diálogo com os diversos referenciais das políticas públicas, a fim de permitir a compreensão do processo de formulação, implementação e avaliação das intervenções públicas, inclusive em matéria de segurança pública. Ademais, pautado em um método mais complexo, destaca-se a não linearidade de processos tão multifacetados.

Logo, pensar a segurança pública na forma como aqui analisamos é pensar na efetivação de tantos outros direitos e articular políticas públicas diversas que garantam, mediatamente, a segurança do lugar pelo enfrentamento direto das diversas vulnerabilidades.

 

4. Como foi o processo de criação do livro?

O processo de construção coincide com os 04 anos de investigação doutoral. Para tanto, a proposta metodológica considerou essencial a eleição das categorias para o tratamento dos dados. Delimitaram-se as categorias Conflito, Violências, Paz, Cidadania, e Segurança Pública. No que toca à unidade de análise temporal e espacial, a pesquisa foi contextualizada no ambiente constitucional brasileiro a partir de 1988, especificamente pós-2006, período de formulação do Programa em análise.

A priori, por meio de técnicas de pesquisa bibliográfica foram exploradas e analisadas as categorias aqui delimitadas à luz das contribuições dadas por diversos autores da literatura nacional e internacional. Dada a necessidade da pesquisa documental e coleta de dados quantitativos, realizou-se cuidadoso levantamento e tratamento às fontes primárias e secundárias dessa pesquisa, assim como a demarcação de suas relações, considerando distintas variáveis como o perfil socioeconômico do país e os indicadores nacionais e internacionais sobre violência, crime, acesso às necessidades básicas, desenvolvimento humano e efetivação de direitos, baseando-se nas publicações do Ministério da Justiça; da entidade não-governamental Fórum Nacional de Segurança Pública; e do Pnud/ONU.

Aos sujeitos atuantes no processo de formulação, aplicaram-se entrevistas estruturadas e técnicas de história oral a fim de uma melhor apreensão da participação desses, de suas concepções prévias, racionalidades e interesses. O público-alvo das entrevistas e da coleta de história oral foram, pelo rigor científico, os membros da comissão composta para a formulação do Pronasci, coordenada pelo Ministro Tarso Genro e constituída, em grande parte, por agentes políticos envolvidos com o projeto político-ideológico desenvolvidos pelo Partido dos Trabalhadores no segundo mandato do presidente Lula.

Todavia, em que pese o envio de mais de duas dezenas de e-mails no período de maio de 2015 a julho de 2016, logrou-se êxito em agendar 08 entrevistas que seriam realizadas no início do mês de julho de 2016 na cidade de Brasília, precisamente na sede do Ministério da Justiça e do Departamento Penitenciário Nacional. Quando da chegada à capital da República, outras seis foram desmarcadas por motivos não considerados plausíveis. Assim, os sujeitos entrevistados e que fizeram relato oral das experiências no processo de formulação do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania foram aqui chamados de Agente Público 1 e Agente Público 2, por questões éticas e com o fito de garantir a fidedignidade das informações colhidas sobre o objeto de estudo. Assinou-se, pois, um Termo de Confidencialidade (APÊNDICE B), no qual o pesquisador firmou o compromisso de analisar tecnicamente as falas e relatos colhidos. Para a coleta desses dados, foram realizadas três visitas, após prévio agendamento e registro como visitante na recepção principal do Ministério mediante cadastro com documento de identidade e retirada de foto digital, precisamente nos dias 06, 07 e 08 de julho de 2016 em setores diversos que compõem o Ministério da Justiça, Brasília-DF e fez-se uso de gravador, papel, caneta e câmera fotográfica, além de scanner portátil para digitalização de documentos que foram disponibilizados. O produto tratado, criteriosamente, rendeu 1 hora e 20 minutos de gravação, subdivididos em 02 arquivos digitais que, transcritos, foram transformados em 30 laudas de fontes primárias inéditas para a presente pesquisa.

Ademais, considerando o estado da arte na temática e a pífia documentação oficial acerca do Programa, fez-se uso de fontes secundárias, já tratadas em outras investigações científicas, precisamente da pesquisa encomendada pelo Ministério da Justiça junto à Fundação Getúlio Vargas em 2010 e intitulada Memórias do Pronasci, que fora desenvolvida para servir como instrumento de monitoramento e avaliação do Programa referido pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil/Fundação Getúlio Vargas (Cpdoc/FGV). Nesta, por meio de técnicas aplicadas de história oral, resgatou-se a memória do Programa a partir de relatos de distintos sujeitos[1] que da formulação do Pronasci participaram. Constituindo os dados em objetos para análise de discurso, foram tratados, laboratorialmente, nos moldes da arqueologia foucaultiana.

Ainda em percurso metodológico, também por meio de técnicas de análises de discurso foram analisados os marcos normativos, teóricos e ideológicos do Pronasci, estabelecendo suas relações com os sistemas contemporâneos de justiça criminal quanto às diversas lógicas e racionalidades, implícitas e explícitas.

 

5. Qual aprendizado você teve ao estudar, escrever e analisar o tema?

Além de analisar as concepções sobre os interesses e racionalidades na formulação das políticas públicas em estados democráticos; compreender os interesses e racionalidades, declarados e os implícitos, no processo de formulação das políticas de segurança pública no contexto do Estado Democrático de Direito, considerando as lógicas e os diversos arranjos do sistema de justiça criminal brasileiro; e investigar o processo de formulação do Pronasci à luz dos sujeitos, interesses e arranjos políticos que lhe deram sustentação, a presente tese permitiu a análise das teorias sobre a conflituosidade em ambiência de riscos e incertezas e as justificativas para as capacidades estatais assecuratórias, considerando a cultura do controle, a violência como fenômeno complexo, multifacetado e os movimentos estatais para a efetivação da multidimensionalidade do direito à paz, assim como historiografou as violências no processo de formação da sociedade brasileira, demarcando as (des)continuidades nos tempos atuais do trato político e militarizado, concreta base material para o Programa em debate.

Ademais, sistematizamos concepções sobre interesses e racionalidades na formulação de políticas públicas, notadamente em estados democráticos, a partir de marcos da teoria política contemporânea em diálogo com os referenciais teóricos e metodológicos de Foucault e Bourdieu, configurando o campo de luta do Estado Democrático de Direito Brasileiro, espaço relacional de formulação do Programa. Em continuidade, foram analisados, teórica e criticamente, os paradigmas de matrizes criminológicas diversas que, por meio de lógicas conflitantes em tempos de desassossego, influenciaram o processo de formulação de políticas públicas de segurança como expressão de uma política criminal encampada contextualmente pelo Estado Brasileiro, repercutindo, por vezes, em recrudescimento e contenção e, por outras, em (re)afirmação da multidimensionalidade dos direitos comprometidos com a pessoa. E teorizou-se sobre o modelo de segurança construído no plano internacional humanitário que, em alguma medida, parametrizou a elaboração do Programa Nacional de Segurança com Cidadania nos moldes brasileiros, discorrendo sobre seus fundamentos e demarcações relacionais, investigando experiências na América Latina que inspirariam, no Brasil, a construção de intervenções na seara.

Por fim, analisou-se a engenharia, o referencial ético e político e as diretrizes do Pronasci, assim como os sujeitos, os interesses e os arranjos políticos em coalizão no complexo – e instigante – processo de formulação do referido programa, marco empírico da presente tese, investigando discursos, explícitos e implícitos, a partir de um rigor arqueológico metodológico, considerando as informações oficiais, os relatos colhidos e o trato dado aos enunciados discursivos dos materiais da formulação e das pesquisas referentes àquele momento.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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