Entrevista com Maria Lucia Karam sobre a reforma do Código Penal

19/08/2017

Por Redação - 19/08/2017

Já falamos aqui no Empório sobre a reforma do Código Penal que está desde 2012 em tramitação no Senado. Com isso, o Empório fez uma entrevista com a Juíza de Direito aposentada, Dra. Maria Lucia Karam.

Confira:

Para você, a reforma é necessária. Por quê?

Certamente, é preciso reformar o Código Penal. Há muitas atualizações a serem feitas, de modo que, enquanto ainda subsistentes o poder punitivo e as intervenções do sistema penal, se possa ter um Código Penal que obedeça aos princípios e regras garantidores inscritos nas declarações internacionais de direitos humanos e em nossa Constituição Federal e assim funcione como instrumento de contenção do poder punitivo.

Se sim, quais pontos você acredita que devem ser atualizados?

Na Parte Geral é preciso modificar diversas definições e suprimir alguns institutos, na linha de antiga proposta elaborada no ano 2000 pelo Instituto Carioca de Criminologia, com a participação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, tendo em vista fundamentalmente a intervenção mínima, a limitação da criminalização a condutas que produzam dano socialmente relevante ou perigo concreto a bens jurídicos determinados e individualizáveis, e a estrita observância do princípio da culpabilidade. Pode-se mencionar como exemplo de modificação o fim da centralidade da pena privativa de liberdade, estabelecendo-se a autonomia e prevalência de penas restritivas de direitos e penas pecuniárias. Exemplos de institutos que necessariamente devem ser suprimidos são as medidas de segurança impostas a inimputáveis, nitidamente violadoras do princípio da culpabilidade, e a reincidência, nitidamente violadora, dentre outros princípios, da vedação de dupla punição pelo mesmo fato.

Na Parte Especial, as modificações devem ser ainda mais amplas. É preciso pôr fim à proliferação de leis extravagantes, procedendo-se a uma recodificação de modo a reunir todas as condutas criminalizadas no Código Penal. Naturalmente, esta recodificação deverá obedecer à intervenção mínima, resgatando-se a ideia da ultima ratio, mantendo-se a criminalização apenas de condutas que produzam graves danos ou perigo concreto de danos a bens jurídicos determinados, individualizáveis e especialmente relevantes para a convivência social, isto sempre vale repetir enquanto ainda temos de conviver com a existência do sempre violento, danoso e doloroso poder punitivo. Na mesma linha, em conformidade com a proposta de fim da centralidade da pena privativa de liberdade, a Parte Especial deverá prever, na grande maioria dos dispositivos criminalizadores, penas restritivas de direitos e penas pecuniárias comináveis exclusiva ou alternativamente.

De que modo as mudanças afetariam a segurança pública do país?

Na linha de uma Parte Especial que proceda a recodificação, mantendo apenas a criminalização de condutas que produzam graves danos ou perigo concreto de danos a bens jurídicos determinados, individualizáveis e especialmente relevantes para a convivência social, cabe destacar que tal reforma deveria contemplar, antes de tudo, o fim da criminalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas. Afastando assim a principal causa de violência, de mortes, de encarceramento massivo e de desvios na atuação das forças repressivas, só isso já seria suficiente para assegurar uma grande melhoria na segurança pública do país.

E o Judiciário?

Certamente, manejando um novo Código Penal que, obediente aos princípios e regras garantidores inscritos nas declarações internacionais de direitos humanos e em nossa Constituição Federal, funcione como instrumento de contenção do poder punitivo, o Poder Judiciário estará mais apto a cumprir sua função primordial de garantir os direitos humanos fundamentais de todos os indivíduos.

A reforma está em tramitação desde 2012. O que caracteriza essa demora?

É positivo que o projeto em tramitação no Congresso Nacional desde 2012 não tenha avançado de modo a se tornar lei. Como muitos já apontaram, não há como salvar tal projeto. É preciso sim abandoná-lo definitivamente, seja por sua opção ampliadora do poder punitivo, seja pelas graves imperfeições técnicas que carrega.

Mais alguma coisa que queira acrescentar?

Talvez apenas enfatizar que toda a discussão sobre reforma do Código Penal há de ter em vista que tal reforma é apenas um necessário e urgente meio de elaborar um diploma que possa servir como instrumento de contenção do poder punitivo, sendo assim não um objetivo final, mas apenas um passo no caminho que se há de seguir para pôr fim a tal violento, danoso e doloroso poder do Estado, um passo no caminho de uma futura (não importa quão distante) abolição do sistema penal. Da mesma forma que, no passado, a escravidão foi abolida, o sistema penal, que tanto quanto a escravidão promove violência, desigualdade, exclusão, opressão e privação da liberdade, um dia também será abolido.


Leia também os artigos publicados pela entrevistada aqui no Empório do Direito.


Maria Lúcia Karam. Maria Lúcia Karam é juíza de direito aposentada do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro, ex-juíza auditora da Justiça Militar Federal e ex-defensora pública no estado do Rio de Janeiro. . .


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