Entrevista com Luiz Eduardo Cani, organizador da obra Direito, política e criminologia em tempos de pandemia

27/11/2021

A entrevista de hoje é com o organizador da obra Direito, política e criminologia em tempos de pandemia. O Dr. Luiz Eduardo Cani também é nosso colunista na Stasis!

 

 

1. Luiz, poderia falar um pouco sobre o tema do livro?

Não vejo propriamente um tema do livro, mas um fio condutor das análises: a pandemia de Covid-19. São, como tentamos expressar no título, análises que integram ou dispersam, em todo caso, que passam pelas relações entre Direito, Política e Criminologia durante a quarentena. O Eduardo e eu convidamos amigxs para pensar conosco sobre como fomos engolidos por algo inteiramente novo e como essa novidade produziu (e produz) efeitos no Direito, na Política e na Criminologia, os quais agora passam a ser organizados e integrados em função de novos fins, encetando novas práticas – não raro, punitivas.

 

2. Como foi o processo de criação da obra?

A ideia do livro partiu do Eduardo. Ele me procurou com algumas propostas que, após algumas conversas, foram se transformando no que hoje é o livro. Havia um interesse em analisar a pandemia e em transcender a disciplinaridade. Faltava apenas decidir em quais áreas a reflexão se daria. Propusemos que cada convidadx se dispusesse a abordar o fio condutor sob pelo menos uma das três perspectivas (jurídica, política e criminológica).

Nossos critérios de escolha dxs convidadxs foram dois: nossa relação de amizade e nossa admiração pelos respectivos trabalhos.

Cada autor(a) foi convidadx para compor a obra. Pedimos apenas que enfrentassem minimamente a pandemia sob uma das perspectivas propostas. A composição e organização só foi decidida após o recebimento de todos os textos. Foi aí que percebemos algumas convergências e escalas nos textos. Inicialmente, pretendíamos organizar os textos em 6 eixos, mas o recebimento de mais um texto inesperado, fruto do convite tardio de dois autores, levou-nos a reorganizar tudo – o que foi muito bom.

Acabamos optando por organizar o livro nos 5 eixos atuais, de acordo com a perspectiva escalar, por assim dizer, de cada um. O eixo 1 trata de questões mais amplas, cujos textos se situam entre Estado e Sociedade. O eixo 2 aborda articulações entre o neoliberalismo e a Covid-19. O eixo 3 enfrenta a pandemia sob perspectivas criminológicas. O eixo 4 reflete sobre o direito e o sistema penal em face da Covid-19. O eixo 5 conclui com abordagens acerca da persecução penal.

Nada obstante o recorte, não podemos deixar de notar que outros eixos seriam possíveis. Se adotássemos um recorte temático, por exemplo, os textos da Jádia Timm, do Felipe da Veiga e da Maíra Marchi poderiam estar agrupados em um eixo que trata da psique. Os textos do Jesús Sabariego, do Felipe Bertoni e da Maria Eduarda, e o do Eduardo e meu, poderiam ser agrupados em algo envolvendo novas tecnologias. Poderíamos criar um eixo para tratar do cárcere com os textos do Fernando Vechi, e do Ignácio Fernandes e da Luiza Terra. Em todo caso, pareceu-nos, e continua parecendo, que a perspectiva escalar é mais interessante para a leitura do que o agrupamento temático.

Tratamos de uma obra coletiva. Nesse sentido, sempre há surpresas, mudanças de rota, desvios etc. A obra agora publicada é, sem dúvida, muito diferente, e muito melhor, do que a obra que pretendíamos publicar. Desde o início das discussões com o Eduardo até a efetiva publicação, muitas coisas mudaram e, sobretudo, muitas coisas melhoraram. Os gestos, os truques e as astúcias de cada autor(a) foram fundamentais para tanto. Em uma palavra, o processo de criação foi divertido.

 

3. Como a obra pode contribuir para o meio jurídico?

Esperamos que a obra contribua para muito além, ou muito aquém, do meio jurídico. Comumente o chamado “mundo jurídico” é fruto do imaginário dos juristas e, como tal, repleto de deslizes – Luís Alberto Warat alertou-nos sobre isso há muito. A transdisciplinaridade das abordagens certamente contribuirá para pensar os problemas enfrentados tanto dentro quanto fora dos recortes jurídico-formais. Vale dizer, com Nietzsche e Foucault, que o conhecimento é fruto de uma generalização (abstração simplificada do mundo) e de uma especificação (duelo pela colocação da teoria “majoritária”, por assim dizer). Nesse sentido, a obra pode contribuir, inicialmente, na desnaturalização dos temas dos artigos, depois, na compreensão dos efeitos da pandemia nesses temas (emergência e proveniência de mudanças) e, por fim, na tomada de posição pelxs leitorxs. Não temos dúvida de que a leitura da obra alterará o modo como os temas eram percebidos. Nada obstante isso, nossa pretensão é que a maior contribuição para o meio jurídico seja precisamente a desnaturalização da pandemia, cujos efeitos são expressos em mantras doutrinários e jurisprudenciais, tais como “a pandemia não é panaceia para servir como alvará”.

 

4. Qual a importância de debater esse tema?

É extremamente fácil e simplório dizer que a pandemia não justifica A ou B, mormente quando A ou B não se passam conosco. A um alto funcionário público pode soar estranho ouvir de um imputado que não dispõe de R$ 1.100,00 para pagar fiança e não tem acesso a crédito suficiente para financiar esse valor, por exemplo, mas essa é a realidade da esmagadora maioria dos brasileiros. Dizer que um imputado preso provisoriamente não fez prova de doença elencada nos grupos de risco para o Covid-19 é, sem dúvida, trabalhar com a lei do menor esforço. Conhecer a estrutura e o funcionamento das instituições que compõem e retroalimentam o sistema penal é o mínimo para qualquer funcionário com poder para decidir sobre a liberdade das pessoas – poder esse que foi convertido em poder soberano de vida e de morte durante a pandemia. Ora, para cada prisão domiciliar negada a um preso brasileiro, não tenho dúvida de que seja possível objetar, no mínimo, que a doença era perigosa por si só. Mas podemos desnaturalizar e tornar tudo extremamente mais complexo, por exemplo, indagando: Por que um sistema criado supostamente para “reeducar”, “reintegrar” e “ressocializar” as pessoas enjauladas não dispõe de equipe de saúde na maioria das unidades? Por que não há laudo neste processo? A pessoa presa teve acesso a atendimento de saúde? Quais óbices foram opostos pela unidade prisional ao atendimento particular? O Estado disponibilizou recursos para que o preso custeasse o atendimento particular quando se omitiu em fornecer o atendimento público? A série de questionamentos seria interminável – ou quase. Cada resposta abre inúmeras bifurcações, permitindo outros questionamentos que, invariavelmente, nos fazem chegar à conclusão insofismável da completa ilegitimidade do sistema penal. Mas, se apenas pudermos fazer perceber como as racionalizações e os efeitos da pandemia foram reorganizados e integrados em novas finalidades do sistema penal, já estaremos satisfeitos.

  1. Qual aprendizado o Doutor teve ao estudar, escrever e analisar o tema?

Há um sentimento bastante desconfortável em toda reflexão sobre a atualidade. Frequentemente encaramos o novo com os olhos do velho (é muito interessante pensar sobre isso depois de ler o poema Parada do Velho Novo, de Bertold Brecht), o que faz com que alguns até afirmem ser uma tendência cognitiva de aparar das arestas e enquadrar as coisas nas categorias já conhecidas ao invés de criar novas. Talvez seja coisa da idade ou da arrogância que nos faz pensar que já “despertamos para” ou “concluímos algo”. Enfim, é difícil lutar contra esse sentimento de conservação, mas sempre bastante gratificante. A escrita também sempre traz surpresas, porque a opinião muda no caminho. Por exemplo, quando comecei a responder esta entrevista, não tinha pretensão de citar Brecht ou de tocar neste assunto. Falei disso porque meu texto com o Eduardo trata dos algoritmos. Só depois de organizado todo o trabalho preliminar do livro (seleção dxs convidadxs, definição dos prazos, elaboração e envio dos convites, levantamento dxs confirmadxs etc.) começamos a planejar o nosso texto – do qual quase nos esquecemos! Tínhamos em mente escrever algo sobre algoritarismos em tempos de pandemia, pois ambos discutíamos isso naquele momento. Graças ao Eduardo conheci o livro La locura del solucionismo tecnológico, do Evgeny Morozov. Foi devido a esse livro que escrevemos um artigo sobre algoritmos videntes. Estávamos bastante incomodados, já desde as aulas de Introdução aos “algoritarismos”, do Augusto Jobim (em 2019 na PUCRS), com uma concepção de salvação da humanidade por meio dos algoritmos. Há uma narrativa, bastante recorrente, segundo a qual as máquinas são melhores que os humanos em tudo – como se as máquinas não fossem, elas mesmas, produzidas por humanos. A essa concepção, Éric Sadin chamou de “tecnofilia”, cujo extremo oposto é a “tecnofobia”. Enfim, para nós era uma questão de analisar a “predição” algorítmica sem cair nos encantos e engodos da tecnofilia e nem da tecnofobia. Ou seja, uma tentativa de contribuir para a tarefa urgente, apontada por Yuk Hui, de pensar em outras relações com a tecnologia que nos permitam romper com a cultura monotecnológica. O aprendizado que tive ao escrever o nosso texto foi fruto da analogia que fizemos com os videntes. De certo modo, há uma tentativa de continuidade, ao mesmo tempo em que a predição algorítmica é completamente nova. Não esperamos dos algoritmos o mesmo que esperamos dos videntes (não se trata apenas de questões amorosas, de números da loteria etc.), tampouco nos relacionamos do mesmo modo (não passamos pelo ritual de consulta, nem pagamos por consulta), mas queremos atribuir aos algoritmos algo que está muito além ou muito aquém da capacidade de abstração a partir dos dados abstraídos da realidade selecionada. Poderia seguir mencionando as contribuições de cada autor(a) para o aprendizado, entretanto isso estenderia demais a entrevista.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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