Entrevista com Dieter Axt, autor de O Juiz e o Regente

27/03/2020

A entrevista de hoje é com o autor Dieter Axt, que lançou recentemente a obra O Juiz e o Regente, com a nossa editora Tirant Lo Blanch. A obra já está disponível para compra. 

 

1. Dieter, poderia falar um pouco sobre o tema o livro?

Ao aproximar conceitos da filosofia bakhtiniana ao Direito, a obra pretende lançar as bases para aquilo que denominei Justiça Polifônica, caracterizada, como na música, pelo contraponto e representada na metáfora da fuga. De fato, a pesquisa evidenciou que as condições procedimentais e substanciais para a Justiça Polifônica revelam-se acordes com a estrutura e o funcionamento das instituições jurídicas brasileiras e que os seus pressupostos ontológicos encontram abrigo em nosso ordenamento jurídico.

No seio da Justiça Polifônica, consagra-se o modelo de Juiz-regente, como coroamento do processo judicial polifônico, reservando-se também papéis especiais a serem desempenhados pelas partes, pela teoria jurídica, pela sociedade civil e pelos movimentos sociais, tendo como desfecho a construção de paradigma jurídico ético-estético.

Mas, afinal, por que a polifonia? A relação entre polifonia e Direito é muito mais antiga do que se pode imaginar, à primeira vista, remontando à Grécia Antiga. Julgar e reger também são palavras que possuem raiz etimológica comum. A obra procura, portanto, realizar esse resgate, essa reaproximação que de há muito parece ter sido esquecida, reconduzindo o Direito à sua derradeira vocação humanista e humanizadora, para citar as honrosas palavras que me foram confiadas pela Profª. Drª. Joana Aguiar e Silva. A polifonia pode ser compreendida como uma demanda democrática, aberta ao contraditório, plenamente adequada ao paradigma da intersubjetividade, resguardando espaço à diversidade, à pluralidade e à diferença, em conformidade com os objetivos constitucionais. Conforme nos ensina M. Bakhtin, essa noção pressupõe que as diversas vozes de nossa comunidade sejam ouvidas e que, a elas, seja assegurado o espaço para manifestação em pé de igualdade, o que dependerá da existência de regramento favorável e de uma entidade garantidora para que este regramento seja fielmente cumprido. E, se esse é um pilar sem o qual a democracia política não se constrói, no âmbito jurisdicional não pode ser diferente.

Pode-se afirmar, assim, que o objetivo principal da obra é o de investigar a contribuição do conceito de polifonia desenvolvido por M. Bakhtin para se (re)pensar democraticamente o Direito brasileiro e a decisão judicial, sobretudo em tempos de concretização dos propósitos de diversidade, pluralidade e igualdade do Estado Democrático de Direito e de reforço dos laços da intersubjetividade. E isso se dá através do auxílio imprescindível da Filosofia, da Literatura, das Artes e da Música!

 

2. Qual a importância o livro tem para o meio jurídico?

Mikhail Bakhtin, filósofo da linguagem e teórico literário russo, notabilizou-se por seus estudos sobre Dostoiévski, de onde extraiu, entre outros, o construto de romance polifônico – apropriando-se, metaforicamente, da polifonia musical –, e pelos estudos sobre François Rabelais e a cultura popular da Idade Média e da Renascença, de onde extraiu o conceito de carnavalização e onde encontrou elementos para evidenciar a ambivalência da linguagem na produção de sentido.

No Direito brasileiro, salvo artigos esparsos examinando um ou outro conceito da obra bakhtiniana – dentre eles, o de polifonia –, o único livro inteiramente dedicado a Mikhail Bakhtin e o Direito, até o presente momento, era Bakhtin e o Direito: uma visão transdisciplinar, de Eduardo Luiz Cabette[1]. Ocorre que nessa obra não há sequer uma única citação direta do autor referenciado no título. Dessa forma, a questão se torna ainda mais relevante por se tratar de terreno pouco explorado para o Direito. Afinal, como um autor tão expressivo para o pensamento ocidental do século XX, pode ter sido tão pouco estudado pelos juristas brasileiros? Por que essa temática permaneceu adormecida até aqui?

Além disso, trata-se de repensar a conformação do Direito brasileiro a partir da noção de Justiça Polifônica, reavaliando o papel do Juiz(-regente), das partes, da teoria jurídica, da sociedade civil e dos movimentos sociais, além de se promover, sempre autorizado pelo constructo de polifonia, a aproximação entre as correntes procedimentalista e substancialista, no seio do debate da teoria do direito, em vista daquilo que elas têm em comum: o fortalecimento da força normativa da Constituição, a defesa da Democracia e a concretização dos direitos fundamentais.

Esses, portanto, são aspectos que também me incentivaram a desenvolver a obra e que me permitem intuir a contribuição que ela poderá entregar ao debate teórico no país.

 

3. Como foi o processo de criação do livro?

A obra é fruto de meu Mestrado em Direito Público no PPGDireito da Unisinos, onde fui orientado pela Profª. Drª. Maria Eugênia Bunchaft, e é o resultado de anos de pesquisa que desenvolvi com minha mãe, Profª. Drª. Margarete Axt, a respeito da aproximação dos conceitos bakhtinianos (sobretudo, o de polifonia) ao Direito. Sem a contribuição de minha mãe, esse livro, definitivamente, não teria sido possível. O tema sempre me encantou e eu ensaiei trabalhá-lo já em meu trabalho de conclusão de curso na graduação (2013/2014), mas, por motivos que não recordo, terminei postergando o seu desenvolvimento, ainda que jamais tenha deixado de estudá-lo. Ao ingressar no Mestrado, o meu anteprojeto de pesquisa versava a respeito da mitologia jurídica e, somente em meio ao curso, é que, enfim, decidi concretizar aquele antigo desejo.

Minha hipótese, durante esses anos de pesquisa a respeito da obra de Bakhtin, sempre foi a de verificar a possibilidade de conjugá-la com a linha hermenêutica jurídico-filosófica desenvolvida pelo Prof. Dr. Lenio Luiz Streck na sua Crítica Hermenêutica do Direito. A intuição me dizia que haveria grandes contribuições em executar esse movimento e penso que fiz bem em lhe dar ouvidos. O Professor Lenio se tornou referência primordial em meus estudos jurídicos, desde muito cedo, quando trabalhamos juntos em seu gabinete no Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Foi ele quem me fez confiar em novos caminhos para o Direito e a quem devo o fato de ter encontrado a minha própria trajetória na área. Aquele, aliás, foi um gabinete especial, dedicado a debater o fenômeno jurídico em toda a sua ampla gama de complexidade e do qual participaram, na minha época, grandes amigos como André Karam Trindade, Antonio Fregapane e Pedro Gil Weyne. Lá, iniciei-me também no projeto chamado Direito & Literatura, que atualmente compreende, dentre outros, o programa televisivo (TV Unisinos e TV Justiça), a Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL), o Colóquio Internacional de Direito e Literatura (CIDIL) e a Revista Internacional Anamorphosis (Qualis A2), e ao qual permaneci vinculado ao longo dos últimos dez anos. Integrar essa linha de pesquisa, onde fui introduzido a grandes professores e profissionais, como André Karam Trindade, Henriete Karam, Alexandre Morais da Rosa, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Joana Aguiar e Silva, Jeanne Gaakeer, François Ost, Greta Olson, Fábio D’Ávila, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, foi fundamental para que eu pudesse, de forma bastante ideal, alinhar os incentivos educacionais que recebi de meus pais com a minha produção intelectual.

Portanto, a obra que agora vem a público é, ela própria, fruto de um grande diálogo, de uma grande polifonia de vozes, as quais tentei, à maneira do regente, ordenar e fazer ressoar conjuntamente. Trata-se da tentativa de estabelecer um diálogo harmônico, considerando um propósito comum. Mas há outro diálogo ainda maior aí envolvido. Um diálogo que envolve a minha vida inteira, desde que meus pais e avós me incentivavam, ainda pequeno, a ler obras literárias e a ouvir sinfonias em discos de vinil.

 

4. Qual aprendizado você teve ao estudar, escrever e analisar o tema da obra?

De fato, foram muitos aprendizados, desde os pessoais até os teóricos. Devo dizer que foi um grande prazer trabalhar tal temática e me aprofundar na obra de tantos grandes pensadores. Penso que o livro é bastante abrangente, neste aspecto, procurando dialogar com diversos temas, épocas, histórias e matrizes filosóficas, a fim de investigar e de resgatar aquilo que elas possuem em comum. Encontrar o que nos une, mais do que aquilo que nos separa: eis um autêntico desafio polifônico e, possivelmente, o maior de todos os aprendizados.

 

Notas e Referências

[1] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Bakhtin e o Direito: uma visão transdisciplinar. Porto Alegre: Núria Fabris, 2014.

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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