Entrevista com Airto Chaves Junior, autor de Além das Grades: A paralaxe da violência nas prisões brasileiras - #entrevistadodia

03/01/2020

1 - Dr. Airto, qual a proposta do livro "Além das Grades"?

Muitos são os estudos no âmbito das ciências sociais que procuram compreender os fatores que permeiam os contínuos ciclos de Violência relacionados ao cárcere, tanto no Brasil quanto em outros países. No entanto, quase que sempre, esses estudos tratam das formas explícitas da violência, ou seja, da violência tratada como “oposição a uma determinada ordem”.

A primeira proposta dessa obra foi a recusa em tratar o fenômeno da violência na sua superficialidade, ou seja, a partir do ilegítimo (violência decorrente, por exemplo, de práticas criminosas). O que eu procuro fazer é empreender reflexões laterais sobre a violência, especialmente, a praticada nas (e oriunda das) prisões brasileiras. Não faz parte da pesquisa, portanto, a violência relacionada à criminalidade ou a “transgressão da lei”. A Violência aqui investigada possui configuração velada e é, precisamente, sustentada no “funcionamento regular”, porém catastrófico, do processo de encarceramento no Brasil.   É quase não percebida e por isso, em termos gerais, não nos imaginamos expostos a ela (embora suportemos os seus reflexos a todo o tempo).  Por consequência, seu “combate” é quase nunca reivindicado.

O estudo é construído numa perspectiva brechtiniana (Bertholt Brecht) e pode ser, mais ou menos, explicado pela seguinte frase do dramaturgo alemão: “Do rio que tudo arrasta se diz violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”.

 

2 - Quais as motivações para publicar uma obra sobre este tema?

A obra é produto de pesquisa realizada entre os anos de 2013 e 2017 no âmbito do Curso de Doutorado em Ciência Jurídica da UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ, vinculada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica – PPCJ, e pela UNIVERSIDADE DE ALICANTE - UA/ESPANHA, em nível de Dupla Titulação.

O título da tese é “A construção de sentidos em torno das Violências nas Prisões: a Violência Sistêmica do Universo Intramuros e o seu (violento) reflexo no mundo externo”. Diante da complexidade do estudo, fiz algumas alterações para o livro, considerando-se algumas breves modificações que se mostraram convenientes entre o tempo da defesa do trabalho (março de 2017) e a publicação da obra (setembro de 2018).

A violência nas prisões figura como meu objeto de pesquisa desde o Mestrado (2008-2010). Porém, o que motivou a fechar esse tema foram os acontecimentos relacionados ao Sistema Prisional Catarinense de outubro de 2012. Conforme levantamento divulgado pela Secretaria de Segurança Pública do Estado, agentes de uma facção criminosa teriam ordenado mais de 50 ataques contra ônibus e forças de segurança em 16 cidades naquela semana.

O curioso é que, tão logo tiveram início, as manifestações causaram grande “espanto” à população e até mesmo às agências que cuidam dos setores prisionais e de segurança pública (polícias, por exemplo), sobretudo, porque antes das rebeliões, o Sistema Prisional aparentava “em perfeita ordem”. Então, com o início das manifestações orquestradas simultaneamente em vários locais do Estado, a impressão que se teve é a de que esses atos de violência surgiram “do nada”.

Após investigações, verificou-se que, dentre as diversas razões que desencadearam essas manifestações, figuraram-se práticas de tortura de agentes prisionais contra detentos em um presídio do interior do Estado.

Esse é o foco de reflexão apresentado nesse livro: há uma flagrante interdependência entre uma violência (como causa) e outra violência (como sintoma), de maneira que a violência mais brutal talvez esteja onde, aparentemente, ela não exista. Quando eu trato dessas manifestações atribuídas à determinada facção, chamo a atenção para aquilo que essas manifestações deixam nu, aquilo que elas fazem mostrar. Ou seja, da manifestação se pode dizer violenta (e realmente o são), mas mais violenta do que esse comportamento reativo é a afirmação de que no nosso Sistema Prisional, naquelas circunstâncias, prevalecia uma perfeita ordem.

 

3 - De que maneira a temática que você aborda contribui com a área jurídica e social?

É importante o diagnóstico de que a Violência tem se transformado numa questão estratégica fundamental de governo: não há campo institucional (legislativo, executivo e judiciário) que, ao menos no plano discursivo, ignore ações destinadas a evitar práticas de violência. O Problema é que a reação dessas instituições é sempre protecionista e, quase que sempre, busca confrontar a Violência Subjetiva pela via das mais variadas práticas de Violência, mas invisíveis, alinhadas ao estado “normal” das coisas.

Apresento três exemplos que permeiam todo o processo de criminalização (primário, secundário e terciário) para confirmar essa tese. No primeiro, trato da Violência Legítima e da criminalização de comportamentos pela via do Direito Penal (criminalização primária). Neste espaço, resta bastante claro que a opção de manutenção de uma estrutura de Violência no campo penal legislativo (David Garland; Jonathan Simon) fulmina qualquer chance de desconstrução da Violência Estrutural. Essa preferência faz reproduzir a violência a si mesma num programa de circularidade e na melhor forma daquilo que Michel Foucault denominou de “isomorfismo reformista”: apesar de sua idealidade, as reformas legais servem para que as coisas se mantenham exatamente como estão. No segundo exemplo, proponho a abordagem da Violência Legítima e a Jurisprudência do Crime (criminalização secundária). Constato neste ponto que, apesar de o Poder Judiciário ter como principal função o controle da legalidade e a máxima realização dos Direitos Fundamentais constitucionalmente previstos, é justamente este campo do Poder que sinaliza e leva à imposição da Violência sobre as pessoas (Robert Cover). A interpretação da norma é usada para legitimar a Violência do Estado num sistema de manutenção de forças para garantir o Controle Social de uns sobre outros, pois é justamente nas estruturas sociais que o Direito se mostra como imprescindível instrumento de dominação. Neste turno, são bastante comuns as violações legais por aqueles que são encarregados constitucionalmente de garantir as regras do jogo processual numa clara manifestação de Violência Objetiva que acaba por gerar consequências diretas e indiretas em todo o Sistema Prisional e naquilo que se compreende pelo seu produto. O terceiro exemplo utilizado recai sobre a Violência Legítima no Cárcere (criminalização terciária), a partir do que verifiquei que, apesar dos seus efeitos muito raramente coincidirem com aquilo que fora projetado no discurso (fins declarados), a legitimidade do cárcere no plano social é bastante manifesta, bem como toda a gama de Violências que decorre de sua prática.

 

4 - Quais as principais conclusões adquiridas com a obra?

Ao final do estudo, reafirmo quatro pontos a título de esclarecimento a respeito das violências no cárcere ali abordadas:

O primeiro ponto diz respeito ao reducionismo daquilo que se compreende, normalmente, por Violência. Não se pode estigmatizar toda e qualquer forma de Violência como algo “negativo”. A pesquisa mostra que é exatamente essa estigmatização da Violência em nome da ordem que colabora com o processo de tornar invisíveis as formas fundamentais de Violência Objetiva deflagradas pelo Estado e que se perpetuam, secularmente, no interior do Sistema Prisional Brasileiro. Ou seja, o desafio é avaliar o fenômeno das Violências que fica à margem do discurso (por isso, lateralmente, em paralaxe).

O grande problema não é enxergar aquela Violência nua e crua praticadas nas rebeliões e em manifestações aliadas ao Sistema Prisional, das quais, talvez, não haja qualquer mediação possível. Mas a mistificação dessa Violência Subjetiva colabora no processo de tornar invisíveis as formas fundamentais de Violência Sistêmica, notadamente oriunda das próprias instituições que operam no encarceramento e que das quais, em grande parte das vezes, essas reações violentas orquestradas por facções criminosas é apenas o seu sintoma.

O segundo ponto diz respeito à relação intrincada entre a Violência Subjetiva e a Violência Sistêmica. A Violência não é uma propriedade exclusiva de atos determinados. O mesmo ato pode parecer como violento ou não, a depender do contexto em que ele é inserido e o ponto de vista a partir do qual ele é observado (paralaxe). Tome-se, por exemplo, os cuidados que o Estado deve dispensar à saúde das pessoas. Caso se observe alguém que precisa de providência médica urgente, é bastante natural que exista uma reação popular frente à inoperância dos órgãos de saúde, uma reação diante da omissão do Estado neste aspecto (isso ocorre muito frequentemente até mesmo com animais em situações de abandono, por exemplo). Porém, se fechar essa mesma cena na consciência do observador com significantes que indiquem que a pessoa que necessita de auxílio médico é um preso que lá se encontra pela prática de um crime que chocou a população, parece que a omissão dos serviços de saúde neste caso adere razoável legitimidade, pois existe um mandato social para tanto. Exemplo concreto disso pode ser extraído do seguinte episódio: em recente caso onde foram assassinados 56 presos no interior do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), na cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas (Brasil), o Governador daquele Estado minimizou o massacre dizendo que, dentre as vítimas “não tinha nenhum santo”. Ou seja, amortece-se o horror e acolchoa-se o impacto que a realidade, em circunstâncias outras, poderia provocar.

O terceiro ponto conclusivo se refere à autotutela, juridicamente legítima em casos de agressões privadas pelas vítimas da violência, se preenchidos os requisitos do estado de necessidade e/ou da legítima defesa. No entanto, contra a Violência Objetiva consubstanciada em casos de violação a direitos legalmente instituídos praticados no ambiente intramuros pelos poderes instituídos, as possibilidades de reação legítima são ineptas em decorrência da concepção normativista que pressupõe eficácia dos instrumentos processuais tradicionais (no Brasil, Salo de Carvalho trabalha muito bem essa questão). Por via reflexa, a única possibilidade de manifestação da massa carcerária contra os constantes “ataques” de Violência é por meio de rebeliões. Neste passo, a Violência Legítima citada por Max Weber e utilizada na contenção dessas manifestações ganha contornos de Violência Sacralizada, já que a Violência Simbólica serve também para que se eleja o bode expiatório (René Girard) passível de sacrifício em nome do “bem comum”. O ocultamento da Violência Objetiva através dos Aparelhos Ideológicos do Estado opera o direcionamento da contenção a essas manifestações (apenas a elas) numa brutal rotinização e naturalização de práticas de Violência Sistêmica. Essas rebeliões, os estudos mostram bem, são apenas o reflexo de outras profundas causas e formas de Violência que restam fora do âmbito de visibilidade do público em geral, mas que fazem parte da brutal Violência Objetiva operada em sua cotidianidade das prisões brasileiras.

No quarto e último ponto, concluo pela necessidade de rompimento com essa circularidade de violências. Veja que, se ao incluir o suposto criminoso no Sistema Prisional, depara-se ele com violações de direitos que ultrapassam em muito a sua liberdade de ir e vir, o Estado acaba por produzir e reproduzir a Violência que deveria estancar. Assim, todo esse ritual, não raro, alcança fins latentes que se identificam pelo seu oposto. Se esse Direito potencializa a Violência Objetiva (que, conforme demonstro na pesquisa, não é menos danosa por ser quase que imperceptível aos Sentidos) e, a partir dela, todas as demais formas de Violência aqui estudadas, cumpre a ele a responsabilidade pela sua magnitude negativa.

Numa concepção dialética de matriz hegeliana, a lógica é a seguinte: ao aplicar a pena pela via do Direito Penal, num primeiro momento, nega-se o crime praticado pelo agente (denominemos isso de “etapa A”). Porém, ao negar os Direitos mais Fundamentais num carcerário repleto de Violência de toda ordem, nega-se (o próprio Estado) a pena (identifiquemos isso de “etapa B”), consolidando um Direito Penal que vive da realização incompleta de seu próprio projeto. Esta falha fatal enraizada precisamente no ambiente prisional estabelece o processo de passagem da etapa “A” para a etapa “B” que, como resultado, estimula a criminalidade, já que essa negação da negação (ou negatividade, conforme Hegel) é a própria matriz lógica do fracasso do projeto do Estado para estancar a Violência.

Embora seja evidente a negação que opera na etapa “B”, os limites simbólicos desta fase relacionada ao cárcere permanecem, aguardando-se um verdadeiro “milagre” na redução/estancamento de comportamentos alinhados à etapa “A”. Ignora-se, neste caso, a baixíssima eficiência congênita do aparelho penal de cumprir suas promessas oficiais, consolidando-se um limite às próprias forças de contenção da Violência que ele mesmo desencadeia a partir de corriqueiras práticas de outras violências no cárcere.

Romper essa circularidade de Violência é o nosso desafio hoje. Apresento, assim, uma ideia (nada original, é verdade) que, no Brasil, não fora, ainda, experimentada: imagine o Estado conceber a si mesmo a oportunidade de exercitar a etapa “B” e optar por cumprir a legislação que regulamenta as prisões no Brasil, bem como os Direitos e Garantias Fundamentais previstas Constitucionalmente relacionadas ao cárcere. Seria, certamente, uma hipótese a partir da qual não se negaria a etapa “A” e, por consequência, poder-se-ia afirmar, sem hipocrisia, reduzir o impacto causado pelas Violências de toda ordem, inclusive aquelas deflagradas pela atuação regular das instituições do Estado, ideologicamente naturalizáveis imperceptíveis como espécies de violência que são.

5 - Poderia me falar um pouco sobre o prêmio Capes de Tese 2018 que você recebeu?

Foi uma grande surpresa. A Menção Honrosa do Prêmio CAPES de teses é um dos prêmios mais importantes do campo da pesquisa no Brasil. Eu já havia ficado muitíssimo feliz com a indicação da Tese ao prêmio pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade (UNIVALI). Ser agraciado com ele confirma a qualidade e importância do estudo desenvolvido nesse período de doutoramento. No entanto, um prêmio desse gabarito não se ganha sozinho. Há toda uma estrutura de apoio científico e financeiro que pouco aparece. Foi fundamental, por exemplo, as orientações que recebi no Brasil pelo Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa e na Espanha, pelo Prof. Dr. Bernardo Del Rosal Blasco. Não menos importante foi o apoio ofertado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da Univali, na pessoa do Prof. Dr. Paulo Márcio Cruz, bem como os financiamentos para a pesquisa no Brasil (FUMDES - art. 171, C.E/SC) e no exterior (CAPES).

 

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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