Entre o consumo e o trabalho: a participação do consumidor no processo produtivo

22/12/2017

Coordenador Marcos Catalan

Foucault aponta que na origem do século XVII havia um consenso sobre os atributos naturais do soldado ideal, o qual, conforme a escrita do referido autor, seria reconhecido de longe através dos traços ínsitos de bravura, força e destreza adquiridos entre a concepção e o nascimento. Mais tarde, ainda na trilha da mesma reflexão, foi descoberto que as características ideais da máquina biológica de guerra poderiam ser catalogadas e ensinadas, transformando-se, através da disciplina, corpos crus em verdadeiros mananciais de aptidão para o exercício do combate [1].

Com esse movimento, a história rompe com a ficção de que apenas os naturalmente aptos são dados à determinada atividade, mostrando que qualquer corpo, quando bem disciplinado, torna-se hábil à obediência e ao aprendizado. A disciplina, desvelada por Foucault, tem por desígnio reduzir o corpo à condição de máquina, retirando-lhe a autonomia sobre a forma de emprego de suas forças através de incessantes períodos de vigilância e controle. Mas não é só. O estudo mecânico do corpo humano dá azo ao matrimônio estabelecido entre obediência e utilidade, possibilitando a existência de indivíduos economicamente produtivos e socialmente irreflexivos.

Em 1916, em plena efervescência do fordismo, a disciplina lançada sobre o dia de 8 (oito) horas e 5 (cinco) dólares esculpia os desejos dos trabalhadores Ford, os quais recebiam, nos recônditos do ambiente familiar, visitas de assistentes sociais interessados em instrui-los sobre as necessidades corretas de consumo, isto é, a forma apropriada, aos olhos do emergente mundo industrial, de gastar dinheiro [2]. Neste contexto, o incessante e ao mesmo tempo sutil sistema de coerção e vigilância social educava os indivíduos, melhorando-os enquanto engrenagens do sistema de produção e consumo de mercadorias e afastando-os de qualquer consciência a respeito das contradições sociais.

Mostra-se claro, neste cenário, que a educação dos corpos supera o objetivo industrial da máxima produtividade no exercício da produção, ramificando-se para forja e captura dos desejos íntimos das massas. Como ferramentas do processo de construção dos sonhos coletivos de consumo surgem o marketing e a publicidade, potencializando a sede duma sociedade que, confortavelmente acomodada num resort ou à deriva num pequeno bote ao sul do Oceano Atlântico, ingere litros e mais litros d’água salgada sem nunca aplacar a sequidão [3]. As falsas necessidades [4], produto do sucesso/excesso da produção capitalista, atingem, portanto, tanto aqueles que satisfizeram necessidades irredutíveis quanto aqueles que não as satisfizeram, ou seja, ninguém, ocupe o local social que ocupar, será ignorado pelo capitalismo de consumo.

Em afirmativa ao argumento, emergem os objetos que desempenham a mesma finalidade, no entanto, quando consumidos, entregam maior ou menor parcela de distinção social a seus usuários, por exemplo, os consumidores dos carros sedans compacto e médio; os frequentadores da praça de alimentação do shopping center e os frequentadores dos restaurantes da alta gastronomia instalados em áreas diferenciadas dos mesmos locais de sacralização do consumo. Em idêntico status de agressão pelos mantras consumeristas estão as zonas urbanas e rurais ocupadas pelas camadas populares destituídas de recursos para ingresso

A verdade, em linhas gerais, mostra que antes de consumir o consumidor deve ser consumido, demostrando ao mercado que detém os recursos necessários para as práticas postas. Portanto, de forma paradoxal, as mercadorias são o objeto de consumo dos consumidores, enquanto os próprios consumidores são o objeto de consumo das mercadorias. Sob este prisma, os indivíduos, a exemplo dos bens, passam a povoar os espaços de consumo, sendo atraídos a adquirir objetos que lhes agreguem valor enquanto mercadorias humanas [5].

Em assim sendo, a coerção destinada ao consumo cria o ambiente necessário para que os indivíduos sejam compelidos a buscar suas melhores versões através das “atualizações” disponibilizadas no mercado.

Por outro lado, a chegada da fábrica no escritório significou mais do que a homogeneização entre os setores da produção de mercadorias e prestação de serviços. A invenção do novo paradigma incutiu o conceito de produtividade entre todos os tipos de trabalhadores, possibilitando, assim, a internalização da forma de produção moderna em todos os campos da ação individual, ou seja, a propagação do chão da fábrica entregou uma nova racionalidade às massas. Reeducados através do diário exercício disciplinar inerente ao trabalho, os atores sociais se tornam “conscientes” do papel a desempenhar na cadeia de produção, optando, sem muitas ressalvas, por consumir alimentos batizados e qualificados pelos números 1 (um), 2 (dois) 3 (três) ou super 4 (quatro), formando filas organizadas e separando a quantidade de dinheiro da forma mais exata para facilitar e contribuir com a eficácia da linha de produção do serviço [6].

A contribuição do consumidor para a produção não para por aí. Com a difusão dos estudos em tecnologia voltada à produção, emerge verdadeira obrigatoriedade de participação dos consumidores na execução do serviço. À guisa de exemplo, destaca-se a atuação dos contemporâneos sistemas bancários, distribuídos entre caixas eletrônicos, internet banking e call centers. Cumpre estabelecer, em primeiro lugar, que participação do consumidor na cadeia produtiva o submete à violência coercitiva destinada à eficácia do processo de produção. Ou seja, da mesma forma que os trabalhadores são disciplinados a atender os comandos do gestor para obtenção do melhor resultado na tarefa, os consumidores são coagidos a exercer suas atividades de auxílio à produção com eficácia. Os softwares de atendimento eletrônico, representando a gestão do proprietário do meio de produção, exigem que a senha para o pagamento de um boleto junto ao caixa eletrônico tenha de ser digitada em certo e delimitado período de tempo, garantindo, com isso, o sucesso do mecanismo de prestação do serviço. Da mesma forma são realizados os atendimentos nos call centers, onde a falha do consumidor na execução das ordens impede a fruição do processo produtivo, comprovando, assim, o controle sobre a atividade do consumidor/trabalhador.

A desregulamentação do trabalho e o aumento dos índices de trabalho informal, estão a fazer, cada vez mais, com que a figura do consumidor seja integrada à figura do trabalhador, tornando-se difícil, muitas vezes, identificar os contornos entre uma posição e outra.

 

[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 125.
[2] HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992. p. 122.
[3] BARBER, Benjamin R. Consumido. Rio de Janeiro: Record. 2009. p. 19-20.
[4] DE MASI, Domenico. A sociedade pós-industrial; 4ª ed. São Paulo: Editora Senac, 2003. p. 45.
nesta fase do capitalismo, as quais, embora recebam seus apelos, são incapazes de ingressar nas fileiras do exército de consumidores.

[5] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 82-83.
[6] ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedora de cosméticos. 1ª ed. São Paulo: Boitempo: Fapesp, 2014. p. 147.

 

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