Entre luz e sombra: mulheres e seus espaços na história

10/12/2015

Por Thayla Fernandes - 10/12/2015

“Ao longo da maior parte da História, ‘Anônimo’ era uma mulher.”

Virginia Woolf

A ideia central deste texto, que inaugura minhas contribuições para esta coluna sobre feminismos, é provocar uma breve reflexão sobre como nós mulheres temos ocupado espaços - de decisão, de criação, de expressão, de poder, dos mais diversos tipos - ao longo da história.

Mais precisamente, esta reflexão na verdade não circulará simplesmente ao entorno do “como” temos ocupado espaços, mas sim do “quanto” de luz ou sombra é permitido às mulheres nos mais diversos espaços, ou ainda, do quanto - com base na naturalização de determinadas aptidões como próprias, ou não, de um sujeito-mulher - determinados espaços são compreendidos como convenientes ou inconvenientes para nós mulheres.

Ao verificarmos exemplos “célebres” e “consagrados” de sujeitos que se perpetuaram – ou foram perpetuados - na história em função de determinados espaços que ocuparam, e de sujeitos aos quais foram renegados os mesmíssimos espaços, podemos melhor compreender o que queremos dizer com a nossa proposta e explicitar porque a ocupação de espaços (ou uma consequente ausência neles) também se se relaciona com questões de gênero.

Vejamos. É sabido que o austríaco Wolfgang Amadeus Mozart, considerado um dos maiores musicistas e compositores clássicos da história da humanidade, não fora filho único. Teve ele, em especial, uma irmã um pouco mais velha, Maria Anna Walburga Ignatia Mozart, apelidada de “Nannerl” pela família. O que pouco se lembra, ou até mesmo não se sabe, é que Maria Anna fora uma grande estudiosa de música, tendo se dedicado, sobretudo, ao piano. Antes de completar 18 anos, Nannerl recebeu, tal como Wolfgang, apoio do pai, Leopold Mozart, para se desenvolver como artista. Apresentou-se à Imperatriz austríaca e esteve em turnês por outros países da Europa, inclusive na corte de Paris.

Segundo indicam as poucas fontes a respeito de sua vida, tais como as cartas que trocou com o irmão (que muito a elogiava), Nannerl possuía um talento ímpar e chegou a compor algumas peças, que infelizmente foram perdidas. Vejamos, portanto, uma clara ilustração de que há sempre um quê de incompletude, não raro provocado, quando tratamos da história de grupos tradicionalmente oprimidos; há incompletudes, portanto, quando buscamos reconstruir uma história de mulheres, sobre mulheres ou construída com base em vidas de mulheres.

Quando alcançou seus 18 anos, Nannerl não mais pôde seguir carreira como musicista. Eram rígidos os costumes da época, e estritamente seguidos pela família Mozart (família de classe média que arriscou suas finanças com a carreira de Amadeus). Nannerl deveria, naquele momento de sua vida, se casar e se dedicar às atividades domésticas juntamente à mãe, tal como impôs seu pai. Apenas um poderia levar o nome da família para a posteridade; só havia - e só há! - um único grande e memorável Mozart.

A história da irmã de Amadeus, talvez para desgosto de Leopold, foi retratada no filme “Nannerl, la soeur de Mozart” (2010), com título em inglês “Mozart’s Sister”, do francês René Féret. Recentemente, também para lembrá-la, foi lançado o monólogo “The Other Mozart”, criado pela diretora e atriz Sylvia Milo, que realizou intensa pesquisa sobre Nannerl Mozart para resgatar seu talento e a sua história e para posicioná-la para além da nota de rodapé da história de Amadeus.

Milo, em entrevista para o Huffton Post (2015), afirma que na época dos Mozart apenas às mulheres da nobreza havia a possibilidade do envolvimento com a composição musical, isto porque poderiam tocar de graça, sem a preocupação de, e aqui invocamos novamente Virginia Woolf, precisarem manter o teto todo seu. Não era admissível que uma mulher tivesse a música como ofício, como forma de ganhar dinheiro e de sustentar-se, caso contrário, poderia ser vista como prostituta. A autora do monólogo sobre Nannerl revela, ainda, que em suas pesquisas descobriu diversos críticos que negavam à mulher a capacidade criativa e alguns que chegavam a afirmar que se a mulher se envolvesse profundamente com a arte, não lhe sobraria criatividade suficiente para criar filhos.

Troquemos, agora, de espaços; passemos da música para a literatura e da Europa Central para a Europa Oriental. Lembremo-nos de Sofia Tolstaya. Também uma mulher brilhante, teve 13 filhos, foi fotógrafa, pintora e pianista amadora, tendo também batalhado para ser considerada como escritora. É, porém, lembrada essencialmente por ter sido esposa de Lev Tostoy. Sofia dedicou sua vida à obra do marido, sendo responsável por organizar e integralizar capítulos de livros, por editorar, por garantir publicações no exterior e em outros idiomas, e também por organizar a obra posteriormente ao falecimento de Lev.

Quando, por exemplo, A Sonata de Kreutzer (1889) de Lev foi proibida pelos censores russos, Sofia viajou a São Petersburgo para pessoalmente pedir a sua liberação para o Czar Alexandre III, por mais que não gostasse da obra e a compreendesse como uma crítica do marido ao próprio casamento. Sofia escreveu, ela própria, contos como uma espécie de resposta à Sonata, tal como nos revela Francisco Quinteiro Pires em reportagem na qual explora as considerações sobre Sofia do crítico literário e professor emérito de literatura russa do Middlebury College, Michael Katz (2014).

Ainda no espaço da literatura e ainda na Rússia, lembremo-nos também do exemplo da obra "O Jogador", de Fiódor Dostoievski. O livro, elaborado numa época bastante fragilizada da vida do autor, foi redigido por Anna Grigórievna, sua secretária e responsável por redigir e organizar este e outros de seus trabalhos, que viria a se tornar Anna Dostoyevskaya, a sua segunda esposa.

Tal como provocam alguns autores, será que parte daquilo que pensamos ser de Mozart, Tolstoy ou Dostoyevsky não é, na verdade, de Nannerl, Sofia ou Ana, às quais a história renegou a possibilidade de publicizarem sua criatividade tal como faziam seus companheiros ou familiares? Benjamin, em sua segunda Tese Sobre o Conceito da História, provoca junto: “O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?”.

Se pensarmos no que era ou não cabível a uma mulher do século XVIII, tal como Nannerl, ou uma mulher do século XIX, tal como Sofia ou Anna, perceberemos que uma determinada época se perpetua longamente a partir da perpetuação das limitações e imposições nela presentes, ou das consequências destas, em referência a determinados grupos marginalizados. Estes terminam por ser impossibilitados de desenvolverem determinadas atividades, de ocuparem determinados espaços – nas artes, na ciência, nas universidades, na política - ou de se destacarem caso os ocupem, simplesmente por serem quem são.

E lembremos: estamos falando aqui, sobretudo, a partir de um recorte de gênero. Se recortarmos estas questões de gênero em conjunto com questões de classe mais aprofundadas e com questões raciais, observaremos que estas mulheres que citamos, ainda que tenham sido podadas em diversos sentidos, serão lembradas de alguma forma, dado o fato de serem mulheres europeias, brancas, e dados os status sociais de seus maridos, irmãos e famílias. Neste sentido, frizemos que, além do machismo, o racismo também é um fator significativo para que mulheres não se enxerguem como escritoras, tal como diz Jarid Arraes, ao falar sobre sua experiência pessoal como mulher, negra, nordestina e escritora de cordel (Leia Mais Mulhers, 2015).

Ainda valendo-nos do exemplo da literatura, observamos que mesmo em pleno século XX – e aqui avançamos um pouco de espaço/tempo - alguns países europeus ainda negavam às mulheres o direito de publicação sem autorização do marido. Algum tempo antes disSo, às mulheres não era permitida a frequência em universidades.

Algumas mulheres, com o objetivo de contornar as impossibilidades que lhes eram/são impostas, utilizavam/utilizam codinomes masculinos para conseguirem se colocar de alguma forma nos espaços cerrados pelo mercado editorial. "George Sand", que na verdade era Amandine Aurore Lucile Dupin (1804-1876), uma baronesa francesa (e, mesmo sendo baronesa, precisou se esconder por trás do pseudônimo), é um exemplo conhecido (e talvez só o seja porque se apresentou, inicialmente, como homem). Em 2015 se apresenta a nós outro(a) George com o mesmo dilema: a escritora norte-americana Catherine Nichols, cansada de receber respostas negativas de agentes literários, passou a submeter o manuscrito de seu livro sob o pseudônimo de “George”, e recebeu pelo menos oito vezes mais respostas positivas.

Há casos também, ainda nos dias atuais, de autoras que utilizam apenas a letra inicial para apresentar o próprio nome, enfatizando apenas o sobrenome e dificultando, ao primeiro olhar, o seu reconhecimento como mulher (lembremo-nos de J. K. Rowling).

As campanhas virtuais das hashtags “#readwoman2014”, criada pela escritora Joanna Walsh, e a “#Leiamaismulheres”, sua versão brasileira, apontam que ainda existem dificuldades consideráveis para mulheres ocuparem espaços nos mercados literários e artísticos (na FLIP deste ano, por exemplo, dos 43 convidados, apenas 11 eram mulheres e, ainda assim, este é um número maior do que o dos anos anteriores).

Podemos nos deslocar do passado para o século XXI, e/ou das artes para as ciências, e/ou dos países citados para a realidade brasileira, que, segundo tudo indica, continuaremos a verificar movimentos parecidos no sentido de observar a oferta às mulheres ou de espaços secundários ou de anonimatos.

Assim, tomando agora como exemplo o campo científico-acadêmico, percebemos que campanhas virtuais tais como a proposta pela página do facebook “Não Tem Conversa” (que lança o desafio de que homens se recusem a ocupar espaços em painéis, debates, palestras e eventos onde não há a participação de mulheres) e pela hashtag “#Agoraéquesãoelas” (que desafiou homens a cederem espaços das suas colunas em grandes jornais e portais na internet para que mulheres ativistas feministas pudessem escrever) também apontam dificuldades e desigualdades de gênero: ainda não é regra o equilíbrio da integração de homens e mulheres em espaços de destaque.

No campo jurídico, do qual nos aproximamos, percebemos que é comum que mulheres sejam convidadas – e isto quando o são - para falarem apenas sobre temas que tangenciem temáticas de gênero, sexualidade e feminismos, como se apenas tivessem alguma propriedade para se expressarem sobre temas relativos às suas experiências pessoais de alguma forma (e isto não seria fazer valer o batido bordão de que mulher é mais emoção do que razão?).

Se, invertendo a proposta do(a) “Orlando” de Virginia Woolf, todas nós (incluídas aqui Nannerl Mozart, Sofia Tolstaya e Anna Dostoyevskaya), pudéssemos romper com cronologias e condições de gênero e pudéssemos acordar como homens, em que isto influenciaria em nossas possibilidades como sujeitos e na relevância do que estamos dispostas a produzir? No que isto tornaria diferente o quanto de luz ou de sombra que são dispensados aos espaços que podemos ou não ocupar e à forma como os ocupamos?

Porém, apesar da capacidade de imaginarmos outras condições, somos mulheres. Ocupar espaços, sendo mulheres, bem como reconstruí-los e construir novos, é, também, fazer lembradas todas as incontáveis mulheres apagadas ou pouco memoradas em uma História construída e contada majoritariamente por homens. Fazer da História um espaço e ocupá-la, “escová-la a contrapelo”, como proporia Walter Benjamin, e ressignificar as quantidades de luz e de sombra postas por sobre nossas potências como mulheres são esforços para negar qualquer possibilidade de esquecimento às mulheres aqui mencionadas, a tantas outras mulheres e a nós mesmas.


Notas e Referências:

DUCA, Lauren. By The Way, Mozart Had An Equally Talented Sister. Disponível em: <http://www.huffingtonpost.com/entry/the-other-mozart_56324cbbe4b0631799115407?ir=Arts&ncid=fcbklnkushpmg00000027>. Acesso em: 22 de nov 2015.

PIRES, Francisco Quinteiro. Sofia Tolstói e a luta para expressar-se como escritora. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/revista/828/a-sombra-do-marido-sofia-tolstoi-lutava-para-expressar-se-como-escritora-5643.html>. Acesso em: 20 de nov. 2015.

L&PM EDITORES. Dostoiévski. Disponível em: <http://www.lpm.com.br/site/default.asp?TroncoID=805134&SecaoID=948848&SubsecaoID=0&Template=../livros/layout_autor.asp&AutorID=835470>. Acesso em: 22 de nov. 2015.

LEIA MAIS MULHERES. #Leiamaismulheres entrevista: Jarid Arraes. Disponível em: <http://leiamaismulheres.blogspot.com.br/2015/12/leiamaismulheres-entrevista-jarid-arraes.html> Acesso em: 26 de nov. 2015.


Thayla Fernandes

Thayla Fernandes é Advogada. Graduada em Direito pela Direito na Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Atua na Comissão de Direitos Humanos e na Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB/ES. Cofundadora do Instituto Capixaba de Criminologia e Estudos Penais (ICCEP). Pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). .


Imagem ilustrativa do post: Arte por Oriol Angrill Jordà | art

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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