Entre Luhmann e Dworkin: um diálogo sobre a coerência do Direito

22/11/2016

Por Cristiano Aparecido Quinaia e Fábio Alexandre Coelho - 22/11/2016

1. O Direito como Sistema Autopoiético

O Direito foi por muito tempo objeto de simbiose com diversas outras ciências sociais, sendo confundido com a Religião ora como ocorreu em períodos pretéritos de supremacia do clero, tempos em que não apenas o seu conteúdo, mas, também sua forma ganhava feitio sagrado.

Houve tempo em que o seu aspecto adjetivo processual era confundido como o meio de vingança dos deuses ou onipotente em relação aos atos da barbárie praticados pelos homens, cuja vingança era perpetrada por leis divinas.

Estes castigos eram impostos por representantes da igreja, por anciãos ou clérigos, mas, sempre com a conotação de castigo, e não de sanção normativamente prevista com o viés de regulamentação da conduta intersubjetiva.

Houve logo após, quem confundisse o Direito com a Moral, como se o conteúdo de ambos fosse comunicativo ou interdependente, o que refletia na forma como se enxergava a importância cientifica do objeto em estudo para o desenvolvimento humano.

Com o marxismo o Direito ganhou o prisma econômico como resultado da luta das classes dominantes e dominadas, entre os detentores dos meios de produção e o proletariado que reivindicava melhores condições de trabalho frente à exploração da mais-valia.

Foi de Viena que veio a lume a teoria positivista do Direito sistematizada de forma científica e, após um século de sua criação, ainda é objeto de estudo desafiador por parte dos cientistas jurídicos como um importante marco no desenvolvimento do direito.

O Direito necessitava ser estudado de forma objetiva na esteira da objetividade científica iniciada por Durkheim a partir do estudo da sociedade.

Hans Kelsen isolou o Direito de todos os demais fenômenos culturais da sociedade, distanciando o seu objeto de qualquer pretexto de confusão com a economia, religião, moral, ética, sociologia ou qualquer outra ciência.

Por consequência, a Teoria Pura do Direito deu à luz um Direito que funciona por si e em si mesmo, sem a necessidade de qualquer ingerência de outra ciência e assim se reconhece a partir de critérios próprios de criação e validez.

A partir da teoria kelseniana o Direito funciona pela razão hipotética de uma norma fundamental que confere validez às normas sobrepostas e que são produzidas a partir da irradiação de seus fundamentos.

Com isto, o Direito ganhou independência, sendo a obediência e coercibilidade de seu conteúdo independem da relação com qualquer aspecto exterior, não mais sendo enxergado como consequência ou resultado de outros fenômenos sociais.

A instabilidade política ou o consequente econômico não se sobrepunham ao efeito produzido pela norma jurídica cuja eficácia apenas se relaciona com a vigência de seu texto, sendo este ponto a pedra de toque da teoria positivista de Kelsen.

Ao se deparar com um enunciado ao intérprete descabe indagar sobre os motivos que sugeriram ou impulsionam a aprovação de seu texto, sendo que este juízo valorativo está fora ao âmbito de estudo de sua ciência.

A moral está fora do Direito, não que isso implique desconhecer que, por vezes, o conteúdo ético de uma comunidade venha refletido em textos legais, porém, corresponde afirmar que esta identidade ou dependência não é requisito para sua validez.

Kelsen não ignorava a moralidade ou descartava a justiça, apenas compreendia que são elementos exógenos ao processo de validação do direito.

O Direito vige como norma enquanto vigência seus enunciados, assim produzidos pelos órgãos estatalmente criados para tanto e a partir do esquema procedimental disposto ao cumprimento da função legislativa.

Uma vez aprovada e publicada a lei, o que resta ao seu aplicador é respeitar o seu conteúdo enquanto vigente, fazendo sua subsunção ao caso concreto, independentemente da emissão de qualquer postura valorativa.

A justiça escapa ao âmbito normativo, a menos que encampada vertiginosamente no texto legal, pena de o sistema ser corrompido com juízos subjetivos que relacionem a moral, a religião e a consequência econômica ao seu conteúdo.

A teoria de Kelsen trouxe claridade e novidade ao sistema jurídico até então confuso, entre regras jusnaturalistas e comunistas, que obscureciam o conteúdo que o Direito realmente deve abordar enquanto ciência autônoma, distinto de qualquer juízo de valor externo, sendo possível a partir de então o seu estudo como entidade com existência própria.

Importa dizer, com a Teoria Pura do Direito pela primeira vez sistematizou-se a ciência jurídica e seus escopos, buscando validar sua independência com métodos objetivamente identificados que possibilitam ao seu aplicador concretizá-lo.

Sem sombra de dúvidas, o Direito necessitava deste isolamento científico, tal qual encabeçado por Kelsen, sem o qual certamente não se teria os avanços identificados durante a evolução e revolução dos sistemas jurídicos ao redor do mundo todo.

Não se pode descurar, entretanto, que o positivismo, se levado a sério em larga escala, pode conduzir à manipulação com fins perniciosos, sendo que a manipulação de seu conteúdo conduziria à necessidade de obediência ao texto vigente, qualquer que o fosse.

Logo, ainda que o resultado da aplicação da lei vigente pudesse resultar em práticas injustas, mesquinhas, discriminatórias, seria ela consequência formal do procedimento de produção e não dependeria de valoração subjetiva pelo aplicador ou intérprete.

É claro que retrocedendo ao tempo esse positivismo já foi casuisticamente elevado ao máximo de atrocidades humanas, sendo que a lei foi manipulada historicamente com o fito de propiciar um genocídio ao povo judeu no holocausto na Segunda Guerra Mundial.

A partir deste e de outros momentos históricos, este isolamento do Direito com a justiça e a moral vigentes, fez com que refletisse em outras famílias jurídicas o alerta ao uso indiscriminado da chancela legal para atos de barbárie contra a humanidade.

Niklas Luhmann, sociólogo alemão, com base em conceitos da Biologia, migrou das ciências naturais a teoria dos sistemas que pretendia o estudo da sociedade a partir do seu elemento componente: a comunicação.

Até então, estudava-se a sociedade na ótica do observador externo, tal como o método de Durkheim, de isolamento e positivismo, no qual o sujeito que observa não se insere na proposta de abordagem.

Nisto resultou o estudo da sociedade como emaranhado de comunicações e não apenas de pessoas, uma vez que não é o conjunto de seres que configura um sistema social, mas, sim as relações comunicativas que entre elas se estabelece.

Conforme o próprio autor anuncia, “a teoria da sociedade conforme o pensamento a ser elaborado a seguir é a teoria do sistema social mais abrangente, aquele que inclui todos os outros sistemas sociais” [1].

E é assim abrangente porque a proposta se coloca a estudar a sociedade como sistema formado por subsistemas: o jurídico, o moral, o político, o econômico, todos estabelecem o sentido da comunicação.

Nos sistemas sociais há informação e pensamento que lhe conferem sentido a partir do processamento contínuo e autorreferencial do código próprio do subsistema observado.

Assim, é que o sistema jurídico se apresenta identificado pelo código lícito/ilícito, que define sua operação particular que o distingue do meio ambiente e demais sentidos.

Esta teoria encontrou apogeu na Biologia para explicar a (auto) produção das células em nível molecular que se multiplicam, morrem e novamente são criadas por meio das diferentes etapas (meiose, mitose).

O meio corpóreo apenas envia os nutrientes necessários por meio da corrente sanguínea, porém, no interior do núcleo e nucléolo a célula é reproduzida por um código biológico diferente das células dos demais órgãos.

Este estudo foi levado a efeito em 1971, pelo Biólogo Manfred Eigen com o título Molecular self-organization of matter and the evolution of biological macromolecules, na Revista do Instituto Max-Planck.

Na Física a teoria dos sistemas havia sido empregada pelo cientista Hermann Haken na busca pelo isolamento operacional do laser, em sua obra From the laser to synergetics, por meio da qual teoriza acerca da auto-organização térmica linear.

Decerto foi de Humberto Maturana e Francisco Varela que Luhmann extraiu a principal característica do sistema jurídico: autopoieses como capacidade de reprodução a partir de um fechamento operativo.

A palavra encontra origem grega etimológica sendo auto=próprio e poiesis=criação, características de sistemas que se reproduzem automaticamente por meio do código que lhe dão sentido operacional, autoalimentado.

Em sua pesquisa desvelaram que um sistema funciona com sentido próprio a partir de conhecimento disposto em um código binário independentemente das condições do meio, “para a dinâmica interna do sistema, o meio não existe, é irrelevante” [2].

Transportada para o Direito esta teoria sistêmica revela o funcionamento dos enunciados jurídicos a partir do código lícito/ilícito em oposição aos demais códigos que interagem no meio ambiente.

Isso confere autonomia científica e independência operacional ao Direito, haja vista que é criado e reproduzido internamente sem qualquer submissão ou condicionantes de outros subsistemas sociais.

Este isolamento operacional é sintetizado por Luhmann em que “o sistema jurídico deve então observar aquilo que tem que ser manejado como comunicação especificamente jurídica” [3].

2. Coerência na teoria de Ronald Dworkin

Ronald Dworkin certamente foi um maiores teóricos e jusfilósofos do século XX, com clássicas obras a respeito de sua Escola Moralista do Direito, por meio da qual, inserido no contexto da common law afasta o cético positivismo sem abrir mão da positividade do direito, porém, submete à sua identificação à observância dos níveis de integridade e coerência ao conjunto valorativo presente em dada comunidade.

O sistema civil law não é apenas caracterizado pela inflação legislativa que visa colmatar as possíveis lacunas e especificidades dos casos, mas, ainda pela circunstância de ausência da cultura dos precedentes.

De tal sorte, na constante produção legislativa importa mais o texto legal do que a atribuição que lhe tenha sido conferida anteriormente por outro Tribunal, importando se a lei está em vigor ou não. Visão diversa é aquela empregada pelo common law quanto ao sistema jurídico, que funciona a partir da interpretação legal que haja sido conferido por outro órgão em relação a determinado enunciado normativo.

O que se busca é preservar a estabilidade dos posicionamentos, sobretudo, das Cortes Supremas, com o escopo de que haja avanço sem abandono da importante garantia que é a segurança jurídica.

O professor da New York University destaca que “uma sociedade política que aceita a integridade como virtude política se transforma, desse modo, em uma forma especial de comunidade, especial num sentido de que promove sua autoridade moral para assumir e mobilizar monopólio de força coercitiva” [4].

O grande mérito de Dworkin é colocar o escopo moral acima do mero positivismo jurídico, isto é, cabe ao juiz analisar não apenas a vigência da lei, mas, ainda as consequências político-sociais de sua implementação.

No contexto de sua obra é elementar compreender o que este jurista entende pela moral, pelo conteúdo moralista do Direito, que não se confunde com a moral enquanto ciência da avaliação psicológica do comportamento humano.

Para Dworkin o moral e imoral corresponde ao valor e desvalor, enquanto elementos externos do observador do Direito, e não elementos subjetivos intrínsecos que o aplicador deve possuir. Por alguns, denominado pós-positivista, Dworkin[5] afirma que seria possível “tratar a teoria jurídica como uma parte especial da moral política, caracterizada por um novo refinamento das estruturas institucionais”.

Assim, o brilhante cientista jurídico supera o positivismo enquanto confusão do valor do enunciado com sua vigência, isto é, o questionamento cético a respeito da sobreposição hipótese kelseniana.

Com a superação, o juiz vem como principal protagonista da teoria de Dworkin como o responsável pela verificação da correspondência do enunciado ao conjunto moralista (axiológico) existente na comunidade na qual inserido.

Para Dworkin[6] a integridade não dá azo à arbitrariedade, pelo contrário, “protege contra a parcialidade, a fraude ou outras formas de corrupção oficial, por exemplo,”, uma vez que propicia o tratamento uniformizante e justo dos enunciados normativos daquela comunidade.

O juiz ou Tribunal que decide, não o faz desta ou daquela forma ao bel-prazer argumentativo, mas, considera o que antes sobre o tema foi decidido, e, avança em relação ao tema, o faz baseado em mudanças econômicas, sociais ou culturais.

Coerência deriva do grego coherens, juntos, unidos, com o significado de algo que não é segmentado, mas, é um único movimento, pra frente, sem quebras ou rupturas.

Assim, o Direito descrito, positivado, deve ser respeitado e aplicado, porém, sem renuncia aos valores morais, que devem ser aplicados à luz das soluções aportadas anteriormente, visando à manutenção da integridade.

Em resumo, Dworkin[7] sintetiza que “assim, o direito como integridade rejeita, por considerar inútil, a questão de se os juízes descobrem ou inventam o direito; sugere que só entendemos o raciocínio jurídico tendo em vista que os juízes fazem as duas coisas e nenhuma delas”.

A integridade perpassa na criação e na aplicação pelo juiz Hércules da criação de Dworkin, responsável por encontrar a melhor resposta entre as possíveis respostas num dado caso, que convirja com os melhores princípios de uma comunidade, “um ideal político porque queremos tratar nossa comunidade política como uma comunidade de princípios, e os cidadãos de uma comunidade de princípios não têm por único objetivo princípios comuns, como se a uniformidade fosse tudo que desejassem, mas os melhores princípios comuns que a política seja capaz de encontrar” [8].

3. O Hiperciclo como corolário da Integridade do Direito

O funcionamento regular do sistema jurídico pode ser corrompido pela inserção de um código de outro sistema a partir de quando passe a operar em confusão à sua autorreferência com o meio ambiente.

Significa dizer, considerando que o código do sistema jurídico é lícito/ilícito, pode ocorrer de que em sua produção sejam inseridos códigos do sistema econômico ter/não ter e do político superior/inferior.

Esta confusão se apresenta como uma patologia sistêmica que contamina a capacidade de um sistema reproduzir-se a partir de características próprias, colocando em risco sua identidade com o meio no qual inserido.

Seria o mesmo que identificar uma célula cancerígena em meio ao composto de células saudáveis de um órgão do corpo humano: ela vai produzir uma falha nos sistemas, e a comunicação posterior já não será aquela regular, mas, sim um novo idioma, um novo código que trata prejuízo ao funcionamento do organismo.

Com efeito, o sistema jurídico não desconsidera o meio no qual inserido, sendo certo que o seu caráter operativamente fechado não implica em afirmar que seja cognitivamente aberto, “ao mesmo tempo em que o sistema jurídico fatorializa a auto-referência por meio de conceitos, ele constrói sua heterorreferência através da assimilação de interesses” [9].

O sistema não desconsidera o que se passa no ambiente, sendo que estas provocações, irritações (termo da Biologia) estimulam a sua produção em observação das necessidades do meio.

Destarte, inadmissível é que outro código binário seja inserido nas engrenagens de reprodução do sistema jurídico colocando em xeque sua positividade e seu conteúdo referencial próprio.

No moderno Estado Direito o contexto econômico não desvaira ao legislador, sendo por este absorvido e contextualizado por meio de lei, contudo, o sistema jurídico não pode ser desvirtuado para atender aos fins de outro sistema.

Marcelo Neves[10] vai denominar essa transmutação de “instrumentalismo constitucional” que é justamente a perda da identidade do sistema lícito/ilícito em razão da subordinação de seu conteúdo ao sistema político subordinante da tomada de decisão legislativa.

Além da perda do código-diferença, a contaminação ideológica vai implicar na adoção da retórica constitucional para afirmar a tomada de posição política como juridicamente correta.

Nesses casos, embora a sociedade seja constitucionalizada, o seu escopo perde o sentido histórico atribuído ao movimento do constitucionalismo como corrente de afirmação de direitos e garantias fundamentais.

O político passa a ditar a forma como esse conteúdo, embora constitucional, será concretizado de forma a propiciar o alcance das finalidades políticas do detentor do poder em voga.

Nesses casos diz-se que se tem uma “sociedade hiperpolitizada”[11], na qual a lei passa a ser adotada como veículo de indução e adoção das políticas publicadas.

Isto é, o fenômeno do simbolismo não revela apenas a perda da capacidade cognitiva do sistema jurídico, senão também à “ineficiência do sistema político estatal, principalmente com relação a interesses econômicos particularistas. O Direito fica subordinado à política, mas a uma política pulverizada, incapaz de generalização consistente e, pois, de autonomia operacional” [12].

Tudo se torna um discurso aberto contaminado em termos políticos de satisfação de maiorias e minorias, porém, sem observância das determinantes descritivas contidas na Constituição Federal. Quando tudo é constitucional perde-se a força normativa de seu texto uma vez que não se torna mais possível identificar o núcleo da distinção entre o sistema jurídico e o meio político.

Essas inquietações sobre o envolvimento do sistema jurídico com outros subsistemas sociais levou Gunther Teubner a também se debruçar sobre o estudo da autopoiese. Em obra publicada em 1989 Teubner avança com as bases já lançadas por Luhmann e desenvolve a teoria acerca da autorreferencialidade dos sistemas sociais para incluir o fenômeno da autopoiese em evolução permanente.

Teubner[13] acresce à teoria dos sistemas a circularidade considerando que “a realidade social do direito é feita de um grande número de relações circulares. Os elementos componentes do sistema jurídico – ações, normas, processos, identidade, realidade – constituem-se a si mesmos de forma circular”.

De acordo com este referencial teórico dentro do esquema operativo do Direito se encontra não apenas uma operação, mas, sim um círculo reprodutivo no qual várias informações são processadas em constante evolução.

No ciclo inicial a doutrina e o precedente interagem com os enunciados positivados, refletindo na forma como são compreendidos os seus elementos na comunicação sistêmica.

Em um segundo momento estes atos circulam reflexamente com as normas jurídicas, momento o qual a positividade dos enunciados é observada a partir dos tipos legais discriminantes da conduta em exame.

Assim, obtém-se ao final o resultado da reprodução que é a obtenção da classificação do ato em lítico/ilícito em observância ao código referencial do sistema jurídico que continua a criar outros tipos suprindo as necessidades absorvidas.

Nisso resulta, em síntese, a teoria da “autopoiese em evolução permanente” de Teubner[14], a partir da qual se identificam momentos procedimentais na operação do sistema jurídico nos quais as irritações do meio são cognitivamente entradas (re-entry).

Nesse momento, é possível defender a reflexividade do conteúdo moralista do sistema jurídico de Dworkin dentro do sistema social de Luhmann, em uma proposta de um novo ciclo consistente na construção judicial do enunciado normativo que incidirá no caso concreto, cuja operação possibilita a discussão do conteúdo axiológico (extraneus) ao código lícito/ilícito para manutenção da integridade do sistema.

Nos países que sofreram com a conquista tardia da democracia, como é o caso do Brasil, não é difícil conceber a crise de representatividade como resultado de um processo eleitoral ainda elitizado, que coloca no poder os mandatários de determinados grupos de influência.

Não se pode descurar, neste cenário, da importância que carrega o juiz na construção e manutenção do status quo de coisas constitucional, com a manutenção da integridade e estabilidade da interpretação condizente com o conjunto axiológico da comunidade.

Dito de outro modo é possível que o conteúdo moral de uma comunidade seja absorvido pelo sistema operativo fechado do Direito, inclusive sendo este isolamento saudável e apto a propiciar o entrincheiramento das fronteiras.

É neste momento final do hiperciclo do Direito que a jurisprudência, os valores e a moral influenciam a comunicação com o sistema positivo para que o enunciado seja aplicado com o necessário pertencimento à realidade social.

O que se passa fora do mundo jurídico não pode ser desconsiderado no sistema jurídico positivado, porém, não pode ter seu código invadido pela política ou economia, razão pela qual caberá à doutrina e à jurisprudência a delimitação do conteúdo moralista em voga em um determinado momento da comunidade.

Sobre este enfoque se desenvolve a figura mítica do juiz Hércules, dotado de virtudes soberanas, conhecedor de todo o sistema jurídico de uma comunidade capaz de dar aquilo que se denomina de resposta única ao caso, “em outras palavras, ele aceita que as leis têm o poder geral de criar e extinguir direitos jurídicos, e que os juízes tem o dever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores” [15].

O juiz hercúleo se relaciona estreitamente com a teoria da integridade jurídica de Dworkin como o magistrado que conhece não apenas a jurisprudência, mas, também o sistema moralista que compõe as crenças jurídico-constitucionais da comunidade em que atua.

Cárcova[16] destaca que “na atualidade se encurtaram tanto as distâncias entre o direito e as esferas políticas e econômicas da sociedade, sendo os juízes e os promotores os atores principais deste novo drama social”.

É nesse limiar de inter-relacionamento entre os subsistemas sociais que emerge com maior razão a necessidade de identificação das virtudes do juiz Hércules.

Dado um Estado Democrático de Direito as pessoas tem o direito de receber tratamento harmônico, estável e previsível em relação à continuidade da interpretação jurisprudencial que mantem firme as convicções axiológicas da comunidade.

Conforme leciona Dworkin [17] “o direito como integridade supõe que as pessoas têm direitos – direitos que decorrem de decisões anteriores de instituições políticas, e que, portanto, autorizam a coerção – que extrapolam a extensão explícita das práticas políticas concebidas como convenções”.

Em tempos modernos manter firme e contínua a eficácia do conjunto moral definido na Constituição é tarefa assaz dificultosa em virtude da constante alopoiese sofrida ela intervenção de ordem econômica e política cujas determinantes enfraquecem a autorrefererência jurídica.

Dworkin reconhece e aceita como normalidade a capacidade de criação do Direito pelo juiz como filiado que é ao sistema de precedentes e vê neste funcionamento o esquema perfeito para defesa da integridade jurídica.

À luz da isonomia como vetor interpretativo e princípio constitucional não é menos certo afirmar que as pessoas têm direito fundamental de receberem tratamento coerente ao sistema jurisprudencial interpretativo outrora em voga.

O transporte desta condição de validade do sistema jurídico que é a integridade da teoria da common law se torna absolutamente palpável à luz do sistema da civil law que é regido pelo constitucionalismo, pois, neste contexto se faz imperiosa a obediência ao conjunto axiológico e teleológico instaurado pela ordem fundamental do ordenamento jurídico.

Nesse contexto, o “o direito como completude supõe que as pessoas têm direito a uma extensão coerente, e fundada em princípios, das decisões políticas do passado, mesmo quando os juízes divergem profundamente sobre seu significado” [18].

É possível afirmar, inclusive que esta característica da integridade vem importada para o sistema civil law como mecanismo de seu aperfeiçoamento ao escopo de se alcançar segurança jurídica. 

Conclusão

Se para Luhmann a dependência do sistema jurídico com o seu meio implica na contaminação da autorreferência do seu código binário lícito/ilícito, Teubner viu no isolamento dos círculos hipercíclicos a possibilidade de estudo dos processos que constituem a operação interna para que a autopoiese se concretize.

De toda sorte, estes autores jamais abandonaram a positividade dos enunciados normativos como requisito essencial à validez do ordenamento jurídico, que deve ser operativamente fechado, porém, cognitivamente aberto.

Nisto contribuiu Dworkin com sua tese de integridade do sistema jurídico que busca manter na coerência da única resposta possível a integridade pela qual se alicerça a vida humana em determinada comunidade.

É possível prosseguir os ciclos de Teubner e, após aquele que seria o último ciclo de produção de um tipo lícito/ilícito, estabelecer um novo ciclo: da interpretação pelo juiz Hércules ao encontro da única (e melhor) resposta possível.

O fenômeno social (pressuposto) provoca a criação de uma lei (posta). O magistrado interpreta esta lei criando a norma. No caso posterior outro magistrado/tribunal volta a analisar este caso e decide coerentemente e com integridade:

novo-ciclo

Obs. O ciclo fecha-se com coerência.


Notas e Referências:

[1] Luhmann, Niklas. Die Gesellschaft der Gesellschaft (GdG). Frankfurt: a. M. (Suhrkamp), 1997, p. 78.

[2] Maturana, Humberto. Varela, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas, SP: Psy II, 1995, p. 165.

[3] LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. México: Universidad Iberoamericana, 2002, p. 90.

[4] DWORKIN, Ronald. O império do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 228.

[5] DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. Massachussets: Harvard Press, 2006, p. 34.

[6] DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Idem, p. 229.

[7] DWORKIN, ibidem, p. 271.

[8] DWORKIN, ibidem, p. 314.

[9] NEVES, Marcelo. Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994, p. 120.

[10] NEVES, ibidem, p. 130.

[11] NEVES, ibidem, p. 132.

[12] NEVES, ibidem, p. 133.

[13] TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1993, p. 19.

[14] TEUBNER, ibidem, p. 77.

[15] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 165.

[16] CÁRCOVA, Carlos María. Direito, política e magistratura. São Paulo, Ltr, 1996, p. 164.

[17] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 164.

[18] DWORKIN, ibidem.


cristiano-aparecido-quinaia. Cristiano Aparecido Quinaia é Bacharel em Direito (2010), Especialista em Direito Civil e Processual Civil (2014), Mestrando em Direito Constitucional pelo Núcleo de Pós-graduação Stricto Senso mantido pela Instituição Toledo de Ensino, Bauru/SP, Brasil. . .


fabio-alexandre-coelhoFábio Alexandre Coelho é Mestre em Direito Constitucional - Sistema Constitucional de Garantias de Direitos - Instituição Toledo de Ensino (2001) - e Doutor em Direito Constitucional - Sistema Constitucional de Garantia de Direitos - Instituição Toledo de Ensino (2011). Procurador do Estado - Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Professor do Centro Universitário de Bauru (Instituição Toledo de Ensino) nos cursos de graduação e pós-graduação.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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