Coluna Stasis
Diversas manifestações contrárias ao establishment brasileiro têm culminado na prisão dos opositores. Em nome da defesa da sociedade (ideologia esboçada no fim do século XVIII e atualizada entre o fim do século XIX e início do século XX) contra tudo e contra todos que possam colocá-la (a sociedade) em risco, estabeleceram-se diversas medidas de contra-insurreição preventiva nas últimas décadas, sobretudo a partir da guerra fria e das guerras e invasões dos EUA no oriente médio. Trata-se, é claro, de estratégias preventivas, cunhadas a partir de relatórios de inteligência produzidos por agências oficiais para neutralizar, antes de qualquer ação, alvos classificados como perigosas de acordo com critérios de risco adotados em cálculos atuariais.
Mas a repressão às manifestações não é característica brasileira. O que há de muito peculiar é que se tem hoje um governo contra o Estado (como bem observou Augusto Jobim, ao tratar da emergência de algo distinto da sociedade contra o Estado, observada anteriormente por Pierre Clastres). Já era sabido que o governo não está circunscrito ao Estado – Michel Foucault o demonstrou diversas vezes. A invenção tupiniquim (que nada tem a ver com o ensaio de golpe de estado provocado por Trump ao incitar a multidão para ocupar o Capitólio), contudo, possibilitou o exercício do poder a partir de posições ambivalentes, aproveitando-se do que há de melhor em ser representante estatal e em ser contra o Estado. Uma relação de ganho-ganho, na qual as perdas, quando existentes, são imputadas a terceiros (p. ex. não foi possível governar devido à oposição, o STF não deixou, um cachorro cruzou a rua, um avestruz não quis uma dose cloroquina, os governadores são comunistas etc.).
Assim é que se torna possível ao governo federal brasileiro, por um lado, reprimir manifestações contrárias e, por outro, promover manifestações em apoio ao governo contra o Estado do qual faz parte, para opor-se às manifestações contra o governo (contra ou a favor do Estado). Ou seja, há uma oposição oficial (uso de forças de inteligência e de segurança pública) e uma oposição extraoficial (convocação de manifestações) que incidem em pontos distintos para se complementar num movimento de oposição integral. Uma das mais esdrúxulas manifestações em apoio ao governo foi protagonizada no mês passado, na qual alguns veículos blindados da Marinha foram utilizados (também para se opor ao meio ambiente na luta em prol do aquecimento global). Naquele ato, um músico foi preso por ter-se posto de pé frente aos veículos como sinal de protesto. Bastava aos veículos, mudarem de faixa, mas a solução oficial foi a prisão do músico pela suposta prática do crime de desobediência ao ter resistido a ser retirado do local[i].
Contudo as contra-inssureições preventivas não se dirigem somente em face das manifestações contra o governo ou aos protestos em oposição às manifestações pró governo. Quer dizer, excedem o movimento completo de oposição do governo para atingir também os atos das supostas associações para fins criminosos (associações criminosas previstas no art. 288 do Código Penal, milícias privadas previstas no art. 288-A do Código Penal, organizações criminosas previstas no art. 2º c/c art. 1º, § 1º, da Lei 12.850/13, e associações para o tráfico de drogas previstas no art. 35 da Lei 11.343/06) e aos supostos terrorismos (arts. 2º, 3º, 5º e 6º da Lei 13.260/16). Diz-se supostos porque basta a suspeita, ainda que não confirmada, para pôr em movimento todo o aparato contra-insurreicional (e nunca é demais lembrar: os aparelhos estatais de repressão foram criados para reprimir quaisquer tipos de levantes, daí porque em resposta às sedições populares francesas foi-se consolidando o sistema penal moderno). Daí porque a prisão dos manifestantes no ato de incêndio à estátua de um escravagista não é um ponto fora da curva[ii]. Não se trata da mesma coisa, mas ainda se está no “âmbito de incidência” ou “espaço de intervenção”, por assim dizer, das contra-insurreições preventivas. O ato de incendiar a estátua foi de imediato classificado como associação criminosa que visa praticar danos contra o patrimônio do estado, de modo a justificar a prisão temporária dos perigosos agentes. Por outro lado, parece jamais ter sido cogitado pelo governo estadual que a existência de uma estátua homenageando um escravagista seja uma modalidade de apologia ao crime (art. 287 do Código Penal) de redução dos trabalhadores a condições análogas a de escravos (art. 149 do Código Penal).
É, no mínimo, curiosa a situação em que se defende um tal “patrimônio”. Contudo, nada contraditória em relação às contra-insurreições, afinal, o fato reputado criminoso serve para retroalimentar os critérios atuariais e atualizar o cálculo de risco representado pelos agentes. Algo parecido ocorreu aos nove de Tarnac, grupo anarquista preso em 11 de novembro de 2008 pela suspeita de um atentado a bomba. Dentre os nove, encontrava-se o casal Julien Coupat e Yildune Lévy, ligados à revista anarquista Tiqqun (afrancesamento da expressão teológica hebraica “Tikkoun olam” que significa reparação/cura do mundo). Trata-se de um tratamento generalizado de todos como criminosos em potencial como justificação de medidas como essa, inicialmente a justificar que a simples associação de pessoas possa ser criminalizada e, em segundo momento, utilizando-se tal criminalização, passa-se a reprimir quem se quiser:
“Creio que é sempre na perspectiva de Tiqqun sobre a guerra civil em curso que se torna compreensível a extensão, a toda população, da aplicação de medidas biométricas que foram concebidas inicialmente para o criminoso reincidente. Sabemos que em breve todo cidadão francês terá uma carteira de identidade com dados biométricos (coisas que foram concebidas para criminosos). Portanto, todo cidadão é tratado como criminoso ou terrorista potencial, em potência. Portanto, se o Estado nos trata como criminosos ou terroristas em potência, não devemos nos espantar com o fato de que quem se recusa a submeter-se ou denuncia esse estado de coisas seja tratado justamente como terrorista.”[iii]
Não por acaso os cálculos de risco são inseridos em algoritmos para simulação de inteligência (rectius: inteligência artificial). Em tempos de big data, nada é descartado. Toda divergência é processada e as arestas são aparadas para compor dados pelas semelhanças. O pseudo caráter científico dos cálculos, ignorando o tipo de inferência que se pode fazer a partir de cada dado, convence e serve de estabilizante e imunizante contra as críticas. A existência de oposição, por si só, é argumento de legitimação, vertido em justificativa para a continuidade e ampliação das medidas de contra-insurreição preventiva. Tudo de modo a fazer parecer que não há alternativa. Trata-se de dizer, com Giorgio Agamben (parafraseando, mutatis mutandis, o que disse José Bergamín ao ser detido para averiguação nos EUA sob suspeita de “comunismo”): “não somos e jamais seremos terroristas, mas o que vocês acreditam que talvez um terrorista seja, isto nós o somos!”[iv]
Notas e Referências
[i] https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/08/10/desfile-de-taques-homem-conhecido-como-trompetista-e-preso-ao-tentar-impedir-passagem-de-veiculos-militares-em-brasilia.ghtml
[ii] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/08/06/justica-de-sp-decreta-prisao-preventiva-de-3-suspeitos-por-incendio-na-estatua-de-borba-gato.ghtml
[iii] AGAMBEN, Giorgio. A propósito de Tiqqun. In: TIQQUN. Contribuição para a guerra em curso. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. São Paulo: n-1 edições, 2019, p. 265.
[iv] AGAMBEN, Giorgio. A propósito de Tiqqun, p. 266.
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