ENSAIO SOBRE O ENFRENTAMENTO DA MISÉRIA MORAL NA ESCOLA

21/01/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira

A sociedade está imersa em valores que potencializam padrões machistas, homofóbicos, racistas e inúmeros outros aspectos violentos. O contexto de organização, necessária, que poderia representar outra proposta de família tem retroagido para dimensões que dialogam com o passado medieval e a solução persistente é baseada nas atitudes violentas no lar. Tal dinâmica faz de crianças e adolescentes as vítimas frequentes de pai, mãe, padrastos, madrastas, irmão mais velho, primo mais velho, tios, tias, avôs e avós, e ainda, relacionamentos externos que estão dentro do lar (atuando) como membro da família, uma relação que passa despercebido aos olhos dos responsáveis, ou não.

A falta de acesso sobre noções mínimas de direitos humanos por parte da sociedade alimenta falas midiáticas, assim como estas fortalecem o discurso de educação por meio da punição física e psicológica, que segundo Abramovay (2002), estão entre as formas comuns de violência contra crianças e adolescentes. No entanto, a violência doméstica está longe de limitar-se a essas práticas.

A violência contra crianças e adolescentes não é exclusividade das camadas mais pobres da população brasileira. Por exemplo, as novas tecnologias tornaram o acesso a crianças e adolescentes um click de botão, ampliando o leque de problemas.

A mudança nos meios de acesso à informação é uma faca de dois gumes, pois o local e o global estão dialogando nos celulares, tablets, notebooks e microcomputadores. A segurança do lar que sempre foi incerta, torna-se incerteza ainda maior nas Redes Sociais. E pela apresentação de padrão socioeconômico confortável, a suspeita de violência doméstica é invisibilizada pela situação favorável, onde os projetos morais de família tradicional alimentam a violência. E de casa à escola.

A escola é a agência socializadora de participação coletiva e atua na socialização das novas gerações. Segundo Malvasi e Teixeira (2010), esta é a geração que apresenta a violência como prática social dominante e a sociedade que articula violência como cultural, apresentando-as ao imaginário de experiências de crianças e adolescentes, como postura educativa. Considerando ainda, alguns gestores, técnicos e professores que estimulam a educação com base na punição física ou mesmo apresentam aos pais posturas para sofrimentos psicológicos no lar. Questões como: média (notas com baixo rendimento) e comportamento infantil tratado ou apontado como falta de respeito. Começo a marcar nesse momento os exemplos de Miséria Moral da sociedade contemporânea.

Quantos já testemunharam uma mãe arrastando o filho pela rua, puxado pelos cabelos ou pelo braço, dizendo: “Isso é pra ti aprender a me respeitar” ou “anda rápido, tu tá me atrasando”. Muitas vezes, crianças aparentando entre 3 ou 4 anos. Assim, a escola precisa aprender a intervir na sociedade que tem por marca o exagero, para enfraquecer atitudes provenientes de um processo ético desgastado.

Crianças e adolescentes vulneráveis às violências midiáticas, invariavelmente, pertencentes a camadas sociais estigmatizadas e que estão em permanente estado de controle social, submersos em valores, ritos, costumes, crenças, práticas cotidianas e imaginário social de constrangimentos. Condições éticas e morais historicamente vinculadas a um patriarcalismo colonizador e cheio de ritos de violência com punições físicas, psicológicas, sexuais, condições de negligências e abandonos, justificados e justificáveis na moral enquanto doutrina.

É imprescindível que crianças e adolescentes sejam colocados a salvo de condições bárbaras de tratamento e tenham seus direitos respeitados pela sociedade de modo integral, pois, há necessidade de uma sociedade integrada aos órgãos da rede de proteção, conhecendo e fortalecendo as propostas de atuação das entidades da sociedade civil organizada para que esta tenha êxito na execução dos planos estaduais de enfrentamento às violências contra crianças e adolescentes.

É importante pensar essa realidade no contexto da Amazônia, pois possui características sócio-histórico-político-econômico-culturais de infância diferenciadas, mas que vivenciam e compartilham de uma mesma região. E mesmo em contexto tão diverso a escola ainda potencializa padrões culturais arcaicos. Há quem diga em seus trabalhos acadêmicos que a escola evoluiu, mas sem apontar o sentido.

As comunidades escolares precisam estar atentas aos índices de mortalidade infantil por negligência e outras causas. Participar das pautas referentes a casos de adoção para que haja redução do número de crianças institucionalizadas e campanhas informativas para adolescentes sobre prática sexual segura. E com isso estar atentos aos índices de meninas entre 11 e 14 anos de idade que são apresentadas aos hospitais para conceber crianças frutos de algum tipo de relação de abuso ou exploração. É a escola que está próximo não apenas das crianças e adolescentes, mas também de suas famílias.

É relevante para os professores e técnicos de escolas de educação básica, assim como profissionais da área da infância, estudantes de licenciatura, profissionais da área de saúde e de direito, refletir sobre a violência doméstica, fatores de vulnerabilidade; propostas de prevenção e como estes podem ser aplicados nas escolas, hospitais, creches, dentro do lar. Daí, ressalto também a importância do profissional de Direito como mediador de conflitos no espaço escolar como modo de orientar o discurso dos alunos da escola, suas considerações sobre Direitos Humanos e violência doméstica.

Quando se estuda violência contra crianças e adolescentes é importante, segundo Schek e Silva (2016), considerar as incivilidades, sentimento de insegurança, proveniente do sentimento mais geral nos diversos meios sociais de referência onde a criança é parte, como: escola, igreja, praças, internet, clubes e porventura a residência. A falta de diálogo contempla não apenas a violência física, mas acentua problemas que atentam contra a ética na tentativa de engessamento moral, práticas que tem ganhado força em vários espaços onde crianças e adolescentes se fazem presentes.

Compreender e explicar o fenômeno da violência contra crianças e adolescentes faz conveniente observar os aspectos relativos ao interior e ao exterior das residências, sempre atentos as características das vítimas e dos agressores, sendo este adulto ou outra criança ou adolescentes com idade superior, ou não, à vítima. É pensando na sistematização dos dispositivos que possibilitem orientação que apresento há necessidade de profissionais do Direito no espaço escolar para melhor apreciação da lei e que possibilite o debate seguro.

A escola deixou de representar o lugar de segurança e integração social, de socialização para assumir, como palco de violências que logo “viraliza” nas redes sociais, o que segundo Abramovay (2002) é somado aos problemas internos de má gestão das políticas públicas e precariedades variadas que afetam as ações pedagógicas. Assim, as ideias que castram a escola findam em ser contrariadas e, são contra esse processo ético que surgem movimentos como a “Escola sem Partido” que luta pela manutenção de uma escola liberal, tradicional, patriarcal e bancária. Contextos que não possibilitam diálogo com a historicidade das populações que são frequentadoras.

A manutenção de atitudes como expostas tem por finalidade castrar os princípios do ensino listados pelo art. 206, da Constituição Federal de 1988 (CF 88). Portanto, é importante compreender que a violência doméstica tem servido como princípio interpretativo, ou seja, o modelo social dos sujeitos (crianças e adolescentes) ou grupos contra a integridade de outros sujeitos ou grupos e também contra si, acentuando o processo de miséria moral. É relevante à escola participar na defesa, promoção e principalmente no monitoramento das violências contra crianças e adolescentes, não responsabilizados pelo art. 5º, LXXVII, CF/88, mas como espaço que garanta o exercício da cidadania. Cumprindo como previsto e em conjunto o descrito no art. 227, CF 88.

A violência doméstica tem raízes na vida de crianças e adolescentes. Tragédias que tem como base as experiências: presenciar violências sofridas pela mãe, e mesmo outros entes do ambiente social da criança; o tio usuário de drogas, como álcool e/ou outros psicoativos. No entanto, a mulher é notadamente a vítima frequente da violência doméstica e, muitas vezes, vitimiza a criança, a chamada “síndrome do pequeno poder”.

Como parêntese, comento sobre a audiência pública interativa da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, da Câmara dos Deputados Federais (2018), onde foram feitas críticas à Justiça Restaurativa, pois esta estaria primando não pela segurança da mulher vítima de violência, mas por disputas morais e religiosas. A mulher necessita de justiça, no entanto grupos religiosos conclamam por neutralizar a justiça em nome da chamada unidade familiar, entregando a mulher de volta as mãos do agressor. Ou seja, devolver a mulher ao histórico de patriarcado brasileiro onde é silenciada e mantida no ambiente doméstico convivendo com seu agressor e com ela a criança ou adolescente.

Obviamente, falar de reconciliação e restauração na situação de assimetria onde a criança se encontra é vergonhoso. Em 2010 já estava em vigor a Lei Maria da Penha (Lei nº. 11.340/ 2006) quando começou a prevalecer no judiciário brasileiro o entendimento que a ação penal por crimes capitulados por essa Lei eram de natureza de penal pública condicionada da representação da vítima e, também, porque havia uma grande jurisprudência fazendo uso dos institutos penalizadores da lei dos juizados especiais criminais, sendo que a lei é resultado de um conjunto de experiências mal sucedidas no Brasil de tratar violência doméstica no âmbito desses juizados especiais criminais, principalmente nos casos de lesão corporal leve, porque esses juizados tendem as práticas de conciliação ou soluções alternativas a punição o que devolveria a criança para o lar violento, acompanhada pela mãe.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no relatório que fez em janeiro de 2007, aponta recomendações para o Brasil, como: garantir que as vítimas de violência tenham acesso pleno a proteção judicial e que os atos de violência sejam adequadamente prevenidos, investigados, sancionados e reparados; assegurar que todos os casos de violência em razão de gênero sejam objeto de investigação oportuna, completa, imparcial, assim como adequada sansão dos responsáveis e reparação das vítimas; fortalecer a capacidade institucional para combater o padrão de impunidade, frente a casos de violência contra mulher por meio de investigações criminais efetivas que tenham seguimento judicial consistente, garantindo adequada sansão e reparação, ou seja, diante dos históricos de violência contra mulheres no Brasil, sempre se soube que a conciliação é o modelo reprodutor da violência. Logo, só venceremos a violência doméstica contra crianças e adolescentes com sansão típica do direito penal na defesa da mulher vítima de violência.

A Justiça Restaurativa parece na contramão do decidido pelo Tribunal Superior Federal, porque este de fato reconhece que a Lei Maria da Penha (Lei Nº 11.340/ 2006) não admitia práticas de conciliação e os institutos despenalizadores das leis dos juizados especiais criminais. Então, as práticas têm contrariado justamente o que direciona a lei ao tentar manter a vítima e o agressor juntos em nome da unidade familiar, assim a mulher permanece diante do parceiro violento. A mulher torna-se vítima de um judiciário seletivo e tendencioso com práticas de conciliação lesivas, no entanto, poderia pensar a justiça restaurativa no espaço escolar como exercício para ética.

A vitimização de mulheres tem como consequência milhares de crianças e adolescentes abandonados e/ou negligenciados. No entanto, o mal-estar que esse fato deveria causar é silenciado por uma entidade abstrata de postura que beira a vilania, a sociedade. Sociedade que se omite diante da consciência dos fatos e manifesta-se com contornos de curioso, de esporádico, de excepcional. Assim, a produção de vítimas mante o nível social relacionado a fatores socioeconômicos (fome, ausência de abrigo ou habitação precária, falta de escolas, exposição a toda sorte de doenças infectocontagiosas, inexistência de saneamento básico) que fortalecem um grave estado de Miséria Moral no discurso das camadas populares. Logo, a vitimização atinge exclusivamente crianças e adolescentes de famílias economicamente vulneráveis, no entanto a vitimização ignora fronteiras econômicas entre classes sociais, pois é transversal.

A mulher é vítima frequente de abusos das mais variadas naturezas, e a prova disso está no registro da Divisão Especializada no Atendimento à Mulher – ProPaz Mulher, da Polícia Civil do Estado do Pará (2014, 2015, 2016, 2017), entre as principais variáveis está a desistência de assinatura que muitas vezes são resultado de coações, dependência econômica e questões religiosas que mantem a mulher a mercê do parceiro masculino violento em nome da unidade familiar. A criança e adolescente carrega para escola esse amontoado de problemas psicossociais fundados na hierarquia das relações adulto-criança que coexiste com as opressões sociais do patriarcado-racismo-capitalismo, onde crianças são tratadas como socialmente inferiores, apesar da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

É visível o problema da violência doméstica como parte significativa da violência na escola, pois crianças e adolescentes carregam consigo um capital cultural tóxico que tem como consequência a miséria moral no espaço escolar. É por esse contexto difícil de polarização do conhecimento empírico que o advogado se torna peça fundamental no espaço escolar, pois seu projeto formativo permite o diálogo amplo sobre a lei. O modelo possível de assessória jurídica escolar.

O advogado seria capaz de mediar os conflitos adulto-criança, criança-criança e adulto-adulto como prevenção dos problemas ou conciliação dos conflitos antes que haja ampliação da gravidade, tanto no lar quanto no contexto escolar. Só o acompanhamento jurídico possibilita a mudança de posição da criança, possível de diálogo sobre valores e relações sociais. Será possível para o advogado, também, silenciar os espetáculos de violência de mídias sensacionalistas que dramatizam a violência ao nível da superficialidade. Será possível para o advogado na escola proporcionar tranquilidade social contra a propagação de Fake News que fazem afirmações sobre o comportamento humano, causando histeria coletiva.

A presença de advogados, fóruns de específicos que articulem sobre defesa de direitos de crianças e adolescentes ou das Comissões de órgãos de classe na escola permitiria o enfrentamento ativo e passivo das patologias sociais, sem a necessidade de intervenção policial ou do Conselho Tutelar. A intenção é aplicar soluções aos problemas de violência trazidos pelas crianças antes das consequências criminais. Estarem o advogado ou estudante de direito como mediador de conflitos é uma proposta a se considerar para o confronto com as causas da violência antes que ocorram.

 

Notas e Referências

ABRAMOVAY, Miriam; RUA, Maria das Graças. Violência nas Escolas. Brasília: UNESCO Brasil, REDE PITÁGORAS, 2002.

BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 30, Jun, 2018.

________. Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm Acesso em: 30, Jun, 2018.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Defesa dos Direitos da Mulher: Violência Doméstica e Justiça Restaurativa. 27, Set. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eJWGnG8hr3c&t=222s. Acesso em: 07, Out. 2018.

ECA. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal 8.069, de 13 de julho de 1990. Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro, 2017.

MALVASI, Paulo Artur; TEIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. Leitura crítica do tema: Desconstruindo a associação entre juventude e violência. In: Violentamente pacíficos: desconstruindo a associação juventude e violência. São Paulo: Cortez, 2010

POLÍCIA CIVIL. Divisão especial de atendimento à Mulher. Tipo de comunicação (BOP’s) por crime: 2014.

POLÍCIA CIVIL. Divisão especial de atendimento à Mulher. Tipo de comunicação (BOP’s) por crime: 2015.

POLÍCIA CIVIL. Divisão especial de atendimento à Mulher. Tipo de comunicação (BOP’s) por crime: 2016.

POLÍCIA CIVIL. Divisão especial de atendimento à Mulher. Tipo de comunicação (BOP’s) por crime: 2017.

SCHEK, Gabriele; SILVA, Mara Regina Santos da; VENTURA, Jeferson. Discursos frente a violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes: estudo em contextos institucionais. REVISTA DE ENFERMAGEM. FW| v. 11| n. 11| p. 9 – 21| 2016.

 

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