Enlaces para um pensamento Jurídico - Penal Garantidor (Parte II) – “Uso Alternativo del Derecho” e a Visão (Ampliada) da Proposta Brasileira”

23/03/2015

Por Augusto Jobim do Amaral - 23/03/2015

(Veja a Parte I)

A Espanha, assim como a Itália, foi submetida a um terrível período ditatorial (1936 - 1975), a cargo do General Francisco Franco Bahamonde. Nas ciências jurídicas, alheio permaneceu o país a todo o embate, principalmente italiano, acerca da desmistificação de postulados da ideologia burguesa, fato que provocou profundo retrocesso no esenvolvimento jurídico nacional. Dentro deste panorama surge em 1971, óbvio, sem a realização de um prévio debate e sob o regime de exceção, a “Justicia Democrática”. A organização Jueces para la Democracia, entretanto, influenciada pela similar italiana, formou-se em 1983, já oito anos após a transição democrática. Franco, à época, era a única fonte donde emanava a legalidade, a própria administração da justiça era posta em condições subalternas e de estrita dependência ao aparato franquista, carecendo profundamente de significação política autônoma[1].

A Vertente Espanhola: “Justicia Democrática” e “Jueces para la Democracia

Foi neste contexto ditatorial deplorável que em Espanha um grupo de funcionários da Justiça de várias ideologias começou, na década de setenta, a atuar na clandestinidade fomentando discussões sobre a problemática política em diversas localidades espanholas[2]. Surge, com isso, a figura inédita do chamado juiz delinqüente, caráter laramente assumido por estes magistrados militantes[3].

Ainda sob intensa repressão, houve, em 1977, o I Congresso Nacional da Justiça Democrática onde apareceu a primeira menção direta ao Uso Alternativo do Direito como proposta de ação. Afastavam-se, por certo, do conteúdo revolucionário oriundo do italiano. Aspirando a efetivação de um Estado Democrático de Direito cunhavam como primordial

(…) limpiar al Estado español de las adherencias y hábitos fascistas; reconocer las libertades individuales tanto tiempo sofocadas, (...) buscar e encontrar soluciones políticas y sociales sin dictados ni exclusiones arbitrarias tanto en cuanto al cuadro constitucional como en lo que respecta a la vida económica y cultural;(...) rechazar y castigar las prácticas policiales vejatorias y opresoras tan favorecidas por el Régimen; luchar contra toda mediatización de la justicia e impedir que los tribunales se presten a cubrir abusos y que se premie a los jueces y magistrados que se avienen a ellos, y, para terminar, aunque en nuestro ánimo debe ir antes que todo lo demás, abrir las prisiones a tantos y tantos hombres condenados por su amor a la libertad, es decir, promulgar la amplia amnistía que reclama el país.[4]

Já no alvorecer da década de oitenta, fortalece-se o intenso processo de formação das associações territoriais espanholas de magistrados, sobressaindo-se a A.P.M. – “Asociación Profesional de la Magistratura”. Foi com a ulterior possibilidade de adoção de correntes internas que se fez surgir os “Jueces para la Democracia”, de notória identidade política com as esquerdas, tendência que ganhou autonomia em 1981.

 “Uso Alternativo del Derecho”: Teoria, Hermenêutica e Práxis

O empenho invejável, tanto nas discussões dentro da “Justiça Democrática” como nos “Jueces para la Democracia”, levou três figuras, incontestavelmente, a merecer maior destaque. Perfecto Andrés Ibáñez, Nicolás López Calera e Modesto Saavedra López tornaram-se nomes referenciais quando se cogita falar sobre alternatividade na Espanha.

O alcance teórico da alternatividade na Espanha, em muito, favorece o entendimento das diretrizes do original italiano. Sistematicamente vê-se a recolocação da essência política no Direito, desvendando-o como um ato de vontade de classe erigida momentaneamente à forma de lei, dotado da virtude de poder resumir, ambivalentemente, as conquistas das classes subjugadas e o próprio instrumental para a opressão destes mesmos indivíduos.

Utilizava-se, para isto, de uma nova relação com os ícones marxistas da estrutura econômica e superestrutura político-jurídica onde se reconhecia a possibilidade de que o Direito também fosse um campo válido para a então luta de classes e não um terreno a ser esquecido à pura dominação de uma classe burguesa[5].

Sem abandonar a análise frente à base economicista, claramente, não se atribui ao Direito um caráter secundário nos processos dialéticos da história social. A partir, sim, da generalidade do ordenamento jurídico, com a sua conseqüente ambigüidade, a eficaz atuação prática dar-se-ia nas falhas e contradições atingindo o ideal emancipatório obreiro.

De outra parte, o Uso Alternativo do Direito é posto, sobretudo, como proposta política para a transição visando a um sistema social superior mais democrático, autônomo e autogestionado. Entretanto, não se intentaria “despojar al legislador de su función ni liberar al poder judicial de su sumisión al derecho escrito, sino más bien promover una política jurídica o judicial permitida ya por las posibilidades del mismo ordenamiento jurídico”[6].

O terreno discursivo de rompimento com a dogmática em curso, por certo, fruto da matriz marxista, é o materialismo histórico. Partindo desta gênese, enuncia-se uma exigência metódica que, por um lado, dispõe, como assevera López Calera, um pressuposto subjetivo ou epistemológico, atinente à atividade de conhecimento do sujeito-objeto: “el uso alternativo del derecho presupone, en esse sentido, como punto de partida, un conocimiento, comprensión o interpretación alternativa del contenido del ordenamiento jurídico.” De outro lado, como pressuposto objetivo, repele necessariamente a concepção acerca do reducionismo economicista-determinista do Direito[7].

Jamais se deixando olvidar da real insuficiência judicial de suas vias para as almejadas transformações, apregoa-se, sim, um embate na totalidade dos múltiplos aspectos do sistema capitalista[8].

Entretanto, é imperiosa a descrição peculiar das especificidades do caso espanhol. Visto o Uso Alternativo do Direito pelo viés de Andrés Ibañez – como um empenho tático de reconverter politicamente os instrumentos jurídicos a uma orientação progressista, de modo que pudessem atuar como fator de mudança social[9] –, o ambiente crítico interno fora tornado imensamente dificultado pelo caráter conservador e complacente do magistrado nacional.

Em oposição à Itália, onde o problema do Uso Alternativo del Diritto foi consequência do vivo dinamismo da realidade política, aumentados estavam ainda os obstáculo em proceder a um novo programa democrático, visto não serem tão acusadas as contradições sistêmicas do ordenamento hispânico que “ha sido, y aún es, más coherente o, si se quiere, más coherentemente represivo”[10], reduzindo-se as possibilidades alternativas. Em suma, talvez se pudesse resumir o âmago destas doutrinas sobre o Uso Alternativo del Derecho se diria, na esteira de López Calera, que elas se dispuseram, mais do que proporcionar um mera alternatividade ao ordenamento, a

replantear viejas y profundas cuestiones sin solucionar que siguen existiendo bajo todo processo revolucinario, que precisamente no termina tan sólo en el grito de desesperación de una clase oprimida ni en un voluntarismo utopista y sonador deuna sociedad sin clases. Por otra parte, dichas doctrinas se han convertido en efectiva práxis y han contribuido modestamente a hacer avanzar el proceso de liberación de la clase trabajadora”[11].

Constatava-se, consequentemente, no discurso dos Jueces para la Democracia um tom diferente e mais ameno comparada à estirpe revolucionária dos italianos. O espírito revolucionário, por certo, estava presente entre os intelectuais, entretanto a conjuntura político-social fazia com que esta visão, no momento, tivesse sido afastada, esforçando-se na preocupação em garantir as conquistas democráticas já introduzidas na Constituição. Alinhavam-se, sem dúvida, às ações garantistas últimas do movimento italiano.

A visão ampliada da proposta brasileira[12]

Após o fim da ditadura militar e com a promulgação da Constituição Federal de 1988 claramente colocava a semelhança com o ambiente vivenciado pelos colegas italianos no pós-guerra. Inegável, entretanto, que o Movimento do Direito Alternativo – MDA – evoluiu para uma atuação mais complexa que os originais europeus. Nada mais fiel do que adotar, segundo a tipologia proposta por Carvalho[13] um dos mais destacados “alternativos”, os três[14] alcances fundamentais que envolveriam o pensamento brasileiro.

A primeira face representaria o próprio “Uso Alternativo do Direito”. Neste momento, a atuação ocorre dentro do sistema positivado, no já instituído. Consiste, em outras palavras, na utilização das contradições, ambiguidades e lacunas do direito numa ótica democratizante; e na busca, via interpretação qualificada, diferenciada, de espaços possibilitadores do avanço das lutas populares e da democratização cada vez mais dos efeitos da norma por meio da crítica constante. Os atores principais, neste momento, são aqueles que colocam a determinação na norma, extraindo dela um novo texto, fazendo sua leitura e nela atuando. Outra parte seria a “Positividade Combativa”. Aqui se trava propriamente o embate, tanto no campo jurídico, como na sociedade em geral, para que as conquistas que já foram erigidas à condição de lei tenham efetiva concretização, ante a crescente tendência do descumprimento das normas de representam vitórias populares.

Por derradeiro, concebe o denominado “Direito Alternativo em sentido estrito” que emerge do pluralismo jurídico. Há o reconhecimento do direito paralelo, vivo, atuante, rebelde, insurgente, emergente, achado na rua, não-oficial, que coexiste com aquele provindo do ente estatal. Aqui a ação tem por atores principais os movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos, corporações, setores das igrejas. Frise-se que não se pode incorrer no equívoco de se ter por democrático qualquer ‘sujeito alternativo’, motivo para profundas discussões dentre os estudiosos acerca dos limites destas manifestações[15].

Depreende-se claramente que o Uso Alternativo do Direito representa tão só um dos instrumentos deflagrados pela corrente do Brasil. Estaria situado em um dos três níveis de discurso jurídico de Entelman[16] que englobariam: o patamar (normativo) do discurso produzido pelos órgãos sociais no primeiro deles, sobre o qual se apoiariam os restantes; o posterior está integrado pelo produto daqueles que trabalham sobre o primeiro; e o terceiro nível do discurso é onde se joga o imaginário de uma formação social.

Assim, do cruzamento de ambas classificações seria cabível aduzir que o “Uso alternativo do Direito” estaria situado principalmente no primeiro nível do discurso jurídico, enquanto o “positivismo de combate” não só seria parte do nível normativo, mas paralelamente se produziria no primeiro e segundo níveis, mediante a atividade profissional tendente à efetivação as conquistas positivadas.

Juntamente, no segundo nível, encontraríamos as atividades dos serviços legais tidos como alternativos, apesar de que, mediante suas atividades formativas, estariam entrando na conformação do último dos níveis, o imaginário social.

Por derradeiro, a denominação “direito alternativo em sentido estrito”, ou pluralismo jurídico, situar-se-ia, abertamente neste terceiro nível: o discurso dos súditos, com um grau de independência ou protagonismo muito maior do que o imaginário por Entelman ao formular sua análise.

Os níveis de radicalidade, enfim, que se conduziram os movimentos europeu e brasileiro são diferentes, muito em função das diversas realidades sociais em que ambos se depararam. Assevera Losano que “los brasileños aspiran a alcanzar una fractura más fuerte: pretenden salirse de los confines del derecho vigente y crear un derecho distinto: un derecho paralelo de origen popular.”[17] Em suma, da interseção das construções teóricas postas, retira-se indubitavelmente o caráter mais amplo e elaborado das práticas alternativas transpostas à nossa realidade.


Acompanhe toda segunda-feira a coluna de Augusto Jobim do Amaral. Veja a Parte 1 aqui


Notas e Referências:

[1] ANDRÉS IBÁÑEZ, Perfecto. Justicia/conflicto. Madrid: Tecnos, 1988. p.17.

[2] CHIAMORRO, Jesús Vicente. “Antonio Carretero y Justicia democrática”. In: Jueces para la Democracia, Madrid, v. 8, n. 12, p. 07, 1989.

[3] JUSTICIA DEMOCRÁTICA. Los jueces contra la dictadura: justicia y política en el franquismo. Madri: Tucar, 1978.p. 274.

[4] JUSTICIA DEMOCRÁTICA. Los jueces contra la dictadura, p. 299.

[5] LÓPEZ CALERA, Nicolás Maria; SAAVEDRA LÓPEZ, Modesto; ANDRÉS IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Sobre el uso alternativo ..., p. 22.

[6] LÓPEZ CALERA, Nicolás Maria; SAAVEDRA LÓPEZ, Modesto; ANDRÉS IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Sobre el uso alternativo ..., p. 41.

[7] LÓPEZ CALERA, Nicolás Maria; SAAVEDRA LÓPEZ, Modesto; ANDRÉS IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Sobre el uso alternativo ..., p. 43.

[8] LÓPEZ CALERA, Nicolás Maria; SAAVEDRA LÓPEZ, Modesto; ANDRÉS IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Sobre el uso alternativo ..., p. 59-60.

[9] IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. “Para una práctica judicial alternativa”. In: Derecho y soberania popular – Anales de la Cátedra Francisco Suarez, Universidad de Granada, Departamento de Filosofía del Derecho, n. 16, p. 155-175, 1976.

[10] LÓPEZ CALERA, Nicolás Maria; SAAVEDRA LÓPEZ, Modesto; ANDRÉS IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Sobre el uso alternativo ..., p. p. 90.

[11] LÓPEZ CALERA, Nicolás Maria; SAAVEDRA LÓPEZ, Modesto; ANDRÉS IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Sobre el uso alternativo ..., p. 31.

[12] Por óbvio, não é a pretensão do estudo se aprofundar no esgotamento da temática nacional, ainda porque nos afastaríamos do objeto proposto. Somente, sim, pretende-se vislumbrar a extensão obtida pelo pensamento oriundo da corrente europeia na dinâmica brasileira.

[13] CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo: teoria e prática. Porto Alegre: Síntese, 1998, p. 55-61.

[14] Pelo seu viés, voltado para a sua formação sociológica, Edmundo Lima de Arruda Júnior elabora outra forma de se verificar os braços do MDA, que ele prefere chamar de “uso do direito”: “1º) Plano do Instituído sonegado; 2º) Plano do instituído relido e 3º) Plano do Instituinte negado. ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. Direito Alternativo no Brasil: Alguns informes e balanços preliminares In: Lições de Direito Alternativo 2. São Paulo: Acadêmica, 1992. p. 174-175.

[15] Para o pensador argentino Diego Duquelski, à classificação proposta pelo iurisfilósofo gaúcho, poderia ser agregada uma quarta acepção: os chamados “serviços legais alternativos”. GOMEZ, Diego J. Duquelski. Entre a Lei e o Direito: Uma Contribuição à Teoria do Direito Alternativo. Traduzido por Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 74.

[16] ENTELMAN, Ricardo. Discurso Normativo y Organización del Poder. In: Materiales para una crítica del derecho. Buenos Aires: A  Perrot, 1991. p. 307.

[17] LOSANO, Mário G. La Ley y la Azada..., p. 80ss.


Sem título-23

Augusto Jobim do Amaral é Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal); Doutor, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS; Professor da Faculdade de Direito da PUCRS.                                                                                                                                                                                                                                                                                                    


Imagem Ilustrativa do Post: Old World // Foto de: Ryan Hyde // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/breatheindigital/9444888369/in/photostream/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura