Enlaces para um pensamento Jurídico - Penal Garantidor (III) – “As Razões de uma Teoria Garantista”

30/03/2015

Por Augusto Jobim do Amaral - 30/03/2015

(Veja a Parte I e a Parte II)

Podemos afirmar, alijados de qualquer possibilidade de erro, que Luigi Ferrajoli, com a publicação, em 1990, do livro “Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale” – e principalmente com a primeira edição espanhola em 1995 – foi responsável por um dos maiores impactos na cultura jurídica nos últimos tempos. O professor italiano, ademais, foi articulador desde seus primórdios e membro destacado do aclamado Uso Alternativo del Diritto, motivo da essencial  pertinência com a temática aposta.

Evidente estarmos longe de ambicionar o esgotamento de obra de singular erudição; presente, sim, a ousadia de traçar linhas gerais que apresentem esta teoria de impressionante profundidade conceitual, arquitetada em um livro de quase mil páginas e já desenvolvida, revista, discutida e ampliada pelo próprio iurisfilósofo de Camerino posteriormente através de inúmeros trabalhos em quantidade e qualidade de igual expressão.

De início, necessário dar-se contornos precisos à multifacetada crise de grande alcance no Direito hoje em seus diversos patamares. Ferrajoli traz à baila, primeiramente, a crise da legalidade que se exprime na fenomenologia da ilegalidade do poder com a “degradación del valor de las regras del juego institucional y del conjunto de límites y vínculos que las mismas imponen al ejercicio de los poderes públicos.”[2]

Localiza, para além, a problemática inadequação estrutural das formas de Estado e de direito às funções do Welfare State, salientando o evidente déficit na elaboração de um complexo funcional regulativo e de controle dos direitos e garantias sociais, visto que, na esteira de Bobbio, “i diritti sociali, como è noto, sono più difficili da proteggere che i diritti di liberta.”[3]

Por fim, liga à crise do Estado Social, a tendência no deslocamento dos lugares de soberania para fora das fronteiras dos Estados nacionais – fato que deve apontar para a primordial importância da Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU como um “auténtico pacto social internacional histórico e no metafórico”[4] – e a alteração dos sistemas de fontes imerso na ausência de um constitucionalismo de Direito Internacional, que propõe mecanismos de reforma na atual jurisdição, principalmente, da Corte Internacional de Haya[5].

Delineia-se, efetivamente, com isto, como elementos de uma Teoria Geral do Garantismo, “el carácter vinculado del poder público en el estado de derecho; la divergencia entre validez y vigencia producida por los desniveles de normas y un cierto grado irreductible de ilegitimidad jurídica de las actividades normativas de nivel interior; la distinción entre punto de vista externo (o ético-político) y punto de vista interno (o jurídico) y la correspondiente divergencia entre justicia e validez; la autonomía y la precedencia del primero y un cierto grado irreductible de ilegitimidad política de las instituciones vigentes con respecto a el”[6]. Face, então, à iminente deterioração e deturpação jurídica vigente, a Teoria Garantista propõe a tentativa de se estabelecerem novos vínculos capacitadores de um sistema de proteção dos direitos fundamentais e da democracia, a partir da avaliação dos três planos tradicionais da prática jurídica (planos da teoria do direito, da teoria do Estado e da teoria política) enquanto parâmetro de racionalidade, justiça e legitimidade do sistema[7].

Garantismo como crítica teórica do Direito

O alicerce da construção teórica garantista, certamente, não é concebido fora do horizonte do positivismo jurídico, conformador do moderno monopólio estatal da produção juntamente com as também recentes elaborações da forma jurídica do Estado e da forma estatal do Direito. Pacífico, pois, apontar o tamanho progresso que a positivação (estatização) do direito representou para o progresso jurídico evolutivo frente à experiência pré-moderna caracterizada por um direito jurisprudencial e doutrinal.

Funda-se, assim, a legalidade como postulado iuspositivista sobre o qual descansa a função garantista do direito frente ao arbítrio. Entretanto, fez surgir consigo o dogma que Gianformaggio chamou de “presunção de regularidade dos atos do poder”, presunzione che è stata chiamata ‘il premio superlegale al processo legale del potere legale’[8], identificador da validade normativa com sua reles existência.

Pacífico apontar o tamanho progresso que a positivação (estatização) do direito representou para o progresso jurídico, mormente como instrumento de freios aos impulsos policialescos do Estado. A experiência pré-moderna, caracterizada por um direito jurisprudencial e doutrinal, possuía fontes reguladoras difusas, não organizadas unitariamente. A consequência era a pluralidade de ordenamentos que coexistiam face ao conflito, gerando falta de coerência, falta de plenitude e, sobretudo, arbitrariedade da primitiva espécie jurídica estatutária. Assim, antes da idade moderna – fase do monismo jurídico estatal –, não existia uma distinção real entre direito como sistema de normas objetivo ou positivo e a ciência do direito. Ambos eram constituídos pela elaboração dos sábios, desde os jurisconsultos romanos até os juristas do direito canônico mais tarde. Adotava-se como fórmula de legitimação a veritas, no auctoritas facit legem iusnaturalista em virtude da falta de um sistema formalizado de legitimação do direito e da ciência jurídica.

Uma Teoria Garantista de Direito parte, então, da distinção da vigência das normas, tanto da sua validade quanto da sua eficácia, cânone para a compreensão da estrutura normativa do Estado de Direito[9]. Atitude esta ignorada pelo iuspositivismo dogmático representado pelas categorias contemporâneas do normativismo e realismo jurídicos[10]. Vê-se, alhures, como um positivismo crítico, imerso no intenso questionamento político (crítica externa – de iure condendo) e jurídico (crítica externa – de iure condito) do direito positivo vigente dirigido aos institutos da validade e eficácia do sistema jurídico.

No interior do modelo paleopositivista, como diz Serrano[11], falar de norma vigente acaba por se tornar um pleonasmo, visto que determinar sua vigência equivale a constituí-la. Neste contexto, pois, o problema da vigência é um problema de existência, resultando na legitimação ideológica do Direito inválido vigente.

A postura a ser incorporada tem reflexos principalmente em dois dogmas daquele iuspositivismo dogmático: (a) a obrigatoriedade de se aplicar a lei e (b) a atitude avalorativa frente à ciência jurídica. É evidente que se desfaz este conceito, ao menos quando tratamos de Estados de Direito que possuem constituição rígida. Ao contrário deve-se ter que, ao juiz impõe-se não aplicar a lei diante de seu formulado de invalidade decorrente de seu contraste com o texto constitucional.

Segundo Senese[12], a constituição ao conferir ao juiz o poder de expurgar a inconstitucionalidade, conferiu-o um papel institucional de crítico das leis, apenas está o produto do poder legislativo envolto numa presunção de validade, pressuposto relativo e sensível à valoração do magistrado ao objetá-la inválida.

Por segundo, assumida a doutrina política clássica kelsiana excludente de qualquer juízo subjetivo de valor, impedida estará a tarefa cívica e política de crítica do direito, tanto sob o ponto de vista de justiça (externo/político) como da própria validade (interno/jurídico).

Com isto, a Teoria de Direito Garantista impõe uma profunda reformulação – e conseqüente separação – das esferas de validade e vigência. Como ressalta Ferrajoli, trata-se de dois conceitos assimétricos e independentes entre si: a vigência guarda relação com a forma dos atos normativos, é uma questão de correspondência das formas dos atos geradores de normas sobre sua formação; a validade, ao se referir ao significado, é opostamente uma questão de coerência ou compatibilidade das normas produzidas com o caráter substancial de sua produção[13].

Assim postula Ferrajoli[14]:

“Insomma, la nostra distinzione – che ho voluto radicalizzare con l’uso di due termini diversi, in luogo della coppia ‘validità formale’/ ‘validità sostanziale’ – è essenziale per intendere la forma positiva del diritto moderno congiuntamente alla disciplina costituzionale dei suoi contenuti. Essa non vale, infatti, solo se si considera la prima ignorando la seconda: il che è possibile solo se di fatto la seconda manchi, como avviene negli stati assoluti, in cui vige solo il principio do valità coincidono. Ma questo vuol dire che la distinzione tra vigore e validità, come há rilevato Eligio Resta, è il trato distintivo dello stato di diritto, coincidendo in ultima analisi con quella tra legalità mera (o condizionante) e legalità stretta o (condizionata), di cui proprio Jori há sottolineato con forza il valore di fondamento del ‘garantismo moderno’: il quale, a differenza del ‘legalismo antico’, egli dice, ‘non può evitare di scendere nei dettagli’, che altro non sono che la rete complessa dei contenuti garantisti cui dalle leggi (superiori) è condizionata la validità delle leggi (inferiori).”

Vai além Cademartori[15] e salienta que a dissociação entre validade e vigência depende do fato de que o controle sobre a legitimidade constitucional das leis é posterior e eventual, o que ao cabo tornaria impossível, sob o aspecto legislativo, a identificação das normas válidas do ordenamento, já que todas as normas que não foram submetidas ao controle de constitucionalidade, não se pode dizer que sejam válidas, mas apenas que são vigentes. O que sim se pode colocar é que são inválidas as normas assim declaradas pela Corte Constitucional.[16]

De fato, percebe-se como função primordial do lidador do direito a inclusão de valores sobre a forma de limites e deveres ao ordenamento para que, com isto, não se reduza o juízo de validade ao encadeamento de atos atinentes à constatação da mera vigência da lei.

Historicamente, o Estado de Direito, possui uma enorme carga de poder ilegítimo – antinomias e lacunas – que podem ser reduzidas pelo desenvolvimento de instrumentos de auto-correção do ordenamento, requerendo, para isto, a crítica – sem prejuízo da lei e configuradora da principal tarefa cívica da jurisprudência e da ciência jurídica –, dirigida a assegurar a efetividade dos princípios garantistas.

A dogmatização de uma pretensa coerência e plenitude do ordenamento jurídico não se mantém desde esta base crítica que desmascara as verdadeiras propriedades do sistema. Não se admite, porém, o abandono desde postulados como metas, entretanto, como já indicava Bobbio[17], há mais de quarenta anos,

“(...) com a condição clara, que esta unidade, coerência e plenitude realmente não existem. (...) Mas o fato destas qualidades não existirem e de talvez nunca poderem vir a existir integralmente não significa que não constituam objetivos, mesmo que nunca totalmente realizáveis, da ciência jurídica.”

Reside nesta perspectiva, do tipo crítica descritiva – de denúncia –  e prescritiva – de sua autorreforma –, a tarefa do jurista, e não em apresentar construções deturpadas e elaboradas com o simples afinco de plantar o engodo da dita coerência e completude do sistema.

Garantismo: Estado de Direito e Democracia

Estado de Direito, sabe-se, é conceito que possui variadas ascendências ao longo da história do pensamento humano, desde o “governo das leis” de Aristóteles e Platão, chegando até ao normativismo pregado por Kelsen.

Para Bobbio[18], Estado de Direito quer designar um governo submetido às leis (‘sub lege’), em sentido débil, relativo ao exercício das formas estabelecidas (aqui incluso os Estados totalitários) e em sentido forte, atinente às limitações de poder também em seu conteúdo (vislumbram-se os Estados constitucionais) – e também um poder mediante leis genéricas e abstratas (‘per leges’).

À associação de significado dos termos é imediata a noção do princípio da legalidade elaborado pelo viés garantista: validade formal (legalidade em sentido amplo) e validade substancial (legalidade em sentido estrito)[19]. O sentido de Estado de Direito recepcionado pelo segundo critério de ambas denotações – substancial – é aquele apto a se apresentar como sinônimo de Garantismo.

São estas circunstâncias de validade que conformam as regras da democracia política sobre quem pode decidir, como deve fazê-lo (forma de governo, por exemplo, democrático, monárquico, oligárquico ou burocrático) e o que deve ou não decidir (estrutura de poder mais ou menos de direito).

Acarreta a violação Destas, disciplinadoras da soberania popular, a inexistência e falta de vigência do ato, enquanto, nas premissas do outro tipo, a decorrência será mais grave relacionada à invalidez das normas produzidas. Assim, este núcleo essencial às cartas fundamentais – deveres positivos de fazer – não só cronologicamente, mas axiologicamente, com a transposição do contrato social a pacto constitucional, precede à fundamentação democrática representativa.

Vai dizer Ferrajoli[20] que

“I diritti fondamentali sanciti nelle costituzioni - dai diritti di libertà ai diritti sociali – aperano in tal modo come fonti di delegittimazione e d’invalidazione, oltre che di legittimazione o validazione. È in questo senso che possiamo affermare che nessuna maggioranza, in uno stato costituzionale didiritto che includa tali diritti può decidere la soppressione della vita di un uomo o della sua libertà, o non decidere le misure necessrie ad assicurare la sussistenza, o la salutre, o l’istruzione o simili. Lo stesso principio di Bovero secondo cui ciascuno ‘è dal punto di vista democrático, l’único interprete autorizzato del proprio interesse’, mentre non contraddice il ruolo garantista a tutela di tutti esercitato daí diritti fondamentali incluso questo medesimo diritto, in tanto non è un semplice principio etico-politico ma un principio di diritto positivo in quanto sai garantito, contro possibili tentazioni dispotiche o paternalistiche della maggioranza, da regole sostanziali sui diritti di libertà e sui correlativi divieti d’interferenza.”

Formam-se, com isto, as ditas garantias do cidadão contra maioria: tutela dos direitos individuais ou de minorias que carecem de poder em face à utilidade geral[21]. Coliga, a Teoria Garantista, teleologicamente e processualmente Estado Liberal e Estado Social, o que seria uma forma de liberal-socialismo, perché non contrapone, ma combina e concilia entro un medesino paradigma diritti e garanzie liberal-individuali e diritti e garanzie sociali[22], ultrapassando, por certo, o liberalismo clássico ao incorporá-lo os direitos sociais e transindividuais, entendido numa espécie de liberalismo sui generis[23].

Justifica-se, com isso, o rasgo estrutural, no viés garantista, de uma redefinição do conceito de democracia. Chamar-se-ia democracia substancial ou social o Estado de direito dotado de garantias efetivas, tanto sociais quanto liberais; e democracia política (normas relativas à como e quem decide) seria o Estado representativo, ou seja, baseado no princípio da maioria como fonte de legitimação[24].

Consequência clara dos dois tipos de Estado referidos, os modelos de democracia são, igualmente, independentes, pois possuidores de sistema de garantias que, por um lado, visa a proteger a manifestação da vontade da maioria (mera legalidade) e, por outra parte, dotado de esquemas que regulam o que deve ou não deve ser matéria de decisão, qualquer que seja o sujeito chamado a decidir e sua vontade.

Com uma fórmula sumária podemos representar a busca constante por: um Estado (e Direito) mínimo(s) na esfera penal a partir da diminuição das restrições às liberdades públicas e a correlata imposição de limites às atividades repressivas; por outro lado, um Estado (e Direito) máximo(s) na esfera social, graças à maximização das expectativas dos cidadãos e a análoga expansão das obrigações públicas em satisfazê-las[25].

Por certo, reclama o Garantismo, como base de uma democracia substancial, de um desenvolvimento da complexidade institucional que hoje se conforma o Estado moderno, visto, no âmbito destas reflexões, como uma maneira de fazer democracia dentro do Direito e a partir dele[26].

Garantismo: Filosofia do Direito e Crítica Política

Parte-se, agora, a uma análise da Teoria Garantista sob o prisma de uma doutrina filosófico-política de justificação externa, garantidora da crítica de deslegitimação, base na separação direito/moral – validade/justiça, das instituições conforme um prisma ético-político externo ao ordenamento[27]. De início, vê-se perfeitamente o estado problemático quando se trabalha com as categorias de utilitarismo e eticismo políticos.  Desvendado é o enlace pela análise, como ensina o mestre de Camerino, das culturas e modelos penais realizados, pois, sem dúvida, é no campo penal onde se confrontam com enorme clareza e intensidade a força punitiva estatal e a liberdade individual, ou seja, onde o conflito Estado e cidadão, autoridade e liberdade é mais direto e elementar. Tem-se naquela (utilitarismo) uma idéia auto-refencial da ciência penal[28] como valor em si mesmo donde diretamente se retira sua justificação ontológica, e, nesta (eticismo), um instrumental construído a partir de uma hetero-justificação representada pela tutela dos interesses vitais do cidadão.

Utilizando-se da “autopoiesis” luhmanniana, nasce então a denominação das chamadas doutrinas autopoiéticas (abarcadas por fonte de legitimação desde cima que baseiam a soberania do Estado em entidades metafísicas ou históricas e detentoras da legalidade como princípio jurídico interno e axiológico externo) e heteropoiéticas (donde a legitimação política do Direito e do Estado provém da sociedade heterogeneamente entendida), onde naquelas o Estado é um simples fim, impregnado por um caráter supra-individual/social e cujo reforço e conservação é tarefa desempenhada pelo Direito. Já nestas, enxerga-se a figura do Estado-meio somente legitimado como garantidor dos direitos fundamentais. Enquanto o ponto de partida é unicamente interno nas de primeiro tipo, a visão é, sobretudo, nas da segunda espécie, externa à sociedade e às pessoas que a compõem.

Entretanto, Ferrajoli vai além e inverte o esquema interpretativo rousseauniano da “onipotência da vontade geral”, pois o arcabouço apenas daria resposta a um raciocínio voltado à democracia política. Peca, assim, na esteira garantista, ao auferir valor exclusivo e absoluto a este âmbito de legitimação, suscetível de se sacrificar as demandas substanciais do cidadão.

A mais, a equação relativa à legitimação substancial é objeto das doutrinas liberais-contratualistas, porém destaca-se o Garantismo da circunscrição aos direitos burgueses, utilizando como base apta a todos os direitos vitais (sobretudo e incluso os sociais), redundando em uma teoria geral da democracia substancial. Passa à negación de un valor intrínseco del derecho sólo por estar vigente y del poder sólo por ser efectivo y en la prioridad axiológica respecto a ambos del punto de vista ético-político o externo, virtualmente orientado a su crítica y transformación; por otra, en la concepción utilitarista e instrumental del estado, dirigido únicamente al fin de la satisfacción de expectativas o derechos fundamentales[29].

Está posto o valor contrário às doutrinas autopoieticas vistas que, de fato, concebem uma visão finalista do “poder como bom”, dotado intrinsecamente de valor ético, entretanto pressupõe o Garantismo a acepção do “poder como mau”, com iminente potencial de se degenerar em despotismo.

É a política a dimensão axiológica em que se deve trabalhar o plano jurídico, confirmando-se o Estado de Direito num modelo com fins justificantes e completamente externos que podem vir declarados nas cartas fundamentais, sem, entretanto, virem-se satisfeitos pela simples enunciação e, tampouco, redutíveis ao denotados como constitucionais.

O primado garantista, do ponto de vista externo (análise metateórica), significa principalmente a luta por um modelo centrado no pluralismo axiológico, ou seja, na tolerância, critério justificador inclusive da desobediência do cidadão frente ao ato desmesurado do Estado ou da sociedade civil[30].

A base em que se constrói a moderna tolerância é expressa pela variedade e pluralidade de pontos de vista externos oriundos da própria primazia axiológica da pessoa confluindo estes elementos no que Ferrajoli denomina de “moderno princípio da igualdade jurídica”, ditame complexo que deve incluir as diferenças pessoais e excluir as desigualdades sociais.

Serve a igualdade, no primeiro caso, para localizar os limites da tolerância (dever de tolerar), ou seja, “a todas las diferentes identidades que hacen de cada persona un individuo diferente de los demás y de cada individuo como todas las demás.”[31] Já quanto à complementação segunda, o princípio igualitário radica-se, agora, no desvalor associado a outro gênero de diferença, seja privilégio ou discriminação social, deformadora da identidade humana. Aqui se dá o delineamento dos confins do princípio da igualdade atinente ao dever de não-tolerar.

Precisamente, Ferrajoli[32] sustenta a tese que:

“a) che il ‘principio (o devere) di tolleranza’ vale a fondare l’insieme dei diritti di libertà; b) che accanto ad esso deve parlarsi di un ‘principio (o devere) di non tolleranza che vale a fondare l’insieme dei diritti sociali; c) che i due principi valgono a configurare il paradigma dello ‘stato di diritto’, nelle due forme dello ‘stato di diritto liberale’ e dello ‘stato di diritto sociale’; d) che in entrambi i casi tale paradigma si risolve nell’identifizione di ‘ciò che è giuridicamente intollerabile’, nel senso che il principio di tolleranza di X equivale alla prescrizione della non tolleranza (o intollerabilità) dell’intolleranza di X, mentre il principio di non tolleranza di X equivale alla prescrizione della non tolleranza (o intollerabilità) della tolleranza di X.”

Desenvolvendo as duas formas, respectivamente, chegar-se-á à igualdade formal (política) e substancial (social), onde aquela prescinde do fato das diferenças pessoais, ao passo que na substancial igualdade torna-se inafastável a consideração das disparidades sociais e econômicas dos indivíduos, imputando que estes devam ser feitos iguais tanto quanto seja possível.

Finca-se, ademais, na matriz garantista, a afirmação da tolerância para além da relação histórica com a liberdade de religião, ampliando-se o objeto, a metodologia e a justificativa acerca da tolerância ao se inserir, no rol dos direitos fundamentais, os direitos sociais e transindividuais[33].

Sobre outro contraponto feito às tradicionais doutrinas vigentes atualmente na academia, Ferrajoli traz à baila questão pertinente à obrigação moral de obediência às leis sob a égide do Estado de direito. Coloca da impropriedade quanto à referência de tal dever de forma incondicionada e conformada aos cidadãos, arcabouço que é da concepção ética (totalitária) do Estado e sabidamente excludente da autonomia moral do indivíduo.

Alude ele dois problemas a serem encarados inafastavelmente para o deslinde da questão. O primeiro tem a ver com a efetividade do ordenamento e obrigação político-jurídica de se obedecer à norma legal; e, mais, o conexo propósito da validade moral e a legitimidade política desta obrigação, incluindo aí o oposto, por certo, que será a desobediência às leis injustas.[34]

A tese moral de que o bom cidadão deve obedecer às leis, obrigado não só juridicamente, mas moral e politicamente advém do pressuposto, lembrado por Bobbio de que a falta de tal imposição acarretaria o não funcionamento de qualquer ordenamento. Visto, sobre os olhos de Hart, isto se daria com ênfase naquelas ordenações de índole democrática, baseadas no consenso da maioria, onde se pressupõe uma aceitação política e uma obrigação moral.

Discute o professor italiano – de encontro à construção (ordenações baseadas no ‘consenso das maiorias’) – alertando para a confusão entre adesão espontânea e moral. Para a matriz garantista, ainda que se admita, em certa medida, que a adesão moral dos indivíduos é necessária para que o ordenamento se sustente, não se poderá coligir a obrigação de prestar tal atitude a cada pessoa.

Sendo assim, no viés garantista, não se deve exigir dos cidadãos nenhuma obrigação política, somente, sim, uma obrigação jurídica de obedecer às leis. Não se exige adesão, enfim, ainda quando estimemos que mereça[35]. Aufere que a obediência moral aos ditames legais torna-se incompatível com a democracia pelo simples fato de não se conceber que se exija, ancorado nestes patamares, a transmutação em princípios morais (cabíveis de universalização) do sentimento prestado normalmente por nós aos outros membros do Estado.

A mesma postulação, todavia, deve ser colocada às avessas correlata ao princípio normativo da desobediência. A sustentação contrária, principalmente kantiana, acaba por cair na falácia normativista que toma novamente a idéia do ser pelo do dever ser (o fundamento efetivo por seu modelo ideal), explicando o caráter original dentro da normatividade e não o considerando no local onde a opção moral de resistência deve ser exercida: o plano da efetividade do direito.

Nas ilações garantistas, o baldrame moral e político reside, sem dúvida, no dever (aqui moral) de desobediência quando do conflito com valores universais, e não no alienado e descompromissado fundo justificante supostamente moral de obediência[36].

[1] Sabe-se da publicação por Luigi Ferrajoli em 2007 da magistral obra em três volumes chamada Principia iuris – Teoria del diritto e della democrazia (Gius. Laterza & Figli Spa). O primeiro reservado à Teoria del diritto, o segundo à Teoria della democrazia e o terceiro, em plataforma digital, reservado a La sintassi del diritto. Em nada prejudica ou contradiz o texto em exame. Pelo contrário, amplia, confirma, aprofunda e sistematiza as ideias aqui apostas.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías: La Ley de Más Débil. Madrid: Trota, 1999. p. 15.

[3] Apud CARVALHO, Salo de. Garantismo e Sistema Carcerário: crítica aos fundamentos e à execução da pena privativa de liberdade no Brasil. Curitiba: UFPR, 1999. Tese (Doutorado em Direito). Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, 1999. p. 141.

[4] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías..., p. 145.

[5] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías..., p. 153-154.

[6] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoria del Garantismo Penal. Madrid: Trota, 1995. p. 854.

[7] Inscreva-se ainda a inviabilidade de pintarmos um quadro perfeito deste modelo ideal, pois toda formulação sobre a teoria geral do direito e da política, portanto, não passa de especulação inicial e projetiva de modelos vindouros. CARVALHO, Salo de. Pena e Garantia: Uma Leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 103-104. Firma-se esta ideia no artigo FERRAJOLI, Luigi. “Expectativas e garantías: primeras tesis de uma teoria axiomatizada del derecho”. In: Doxa, Madrid, v. 20, 1997, p. 235, nota 1.

[8] GIANFORMAGGIO, Letizia. Diritto e Ragione tra Essere e Dover Essere. In: Le Ragioni del Garantismo: Discutendo con Luigi Ferrajoli. Torino: Giappichelli, 1993, p. 28.

[9] Ferrajoli esclarece que “al principio dell’onnipotenza del legislatore corrispondeva l’idea dell’onipotenza della politica e del suo primato sul diritto – essendo la legislazione di competenza appunto della politica – e correlativamente, una volta che il legislatore si è democratizzato nelle forme della rappresentanza parlamentare, una concezione tutta politica, formale e procedurale della democrazia, identificata con la volontá sóvrana della maggioranza”. FERRAJOLI, Luigi. “Sul Ruolo Civile e Politico della Scienza Penale nello Stato Costituzionale di Diritto”. In: Questione Giustizia, Milano: FrancoAngeli, anno XVI, v. 4, 1997. p. 666. No mesmo sentido, CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e legitimidade: uma abordagem garantista, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 78.

[10] Contudo, do assentamento do virtuoso positivismo, decorreram duas orientações teóricas em que se divide a teoria do direito contemporânea – normativismo e realismo jurídicos –, as quais ignoram o conceito de vigência das normas com as categorias independentes da validade e eficácia. Na realidade, ambas são modos de ver o fenômeno jurídico que acabam por ser parciais e tementes de complementariedade. Fala-se, com isso, no iuspositivismo dogmático, pois a orientação fincada no direito como norma assume como vigentes apenas normas válidas, limitando-se, em função disso, a contemplar o direito válido esquecendo-se da sua possível ineficácia; enquanto a faceta que entende o direito como fato tem como vigentes somente as normas efetivas, bitolando-se ao exame do direito efetivo ignorando sua possível invalidez. Por serem ontologicamente deficientes, unidimensionalizados, fica aquele fechado na crítica à inefetividade das normas válidas e efetividade das inválidas; em contrapartida, analisa este a invalidez das normas eficazes e a validade das ineficazes.O gene que desvirtua ambos os enfoques relaciona-se à descrição acerca do ser e dever ser da ciência jurídica. Aproximando-se da visão normativista (visão acrítica e edificante da imagem legal), permite-se vislumbrar o dever ser simplesmente, mas jamais o ser efetivo. Inversamente, sob o prisma realista (constatação acrítica e resignada dos modos de funcionamento real), limita-se ao conhecimento de como é efetivamente e não como normativamente deve ser o fenômeno jurídico.

[11] SERRANO, José Luis. Validez y vigencia: La aportación garantista a la teoría de la norma jurídica. Madrid: Trotta, 1999, p. 23.

[12] Apud FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón..., p. 873, nota 23.

[13] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías..., p. 22.

[14] FERRAJOLI, Luigi. “Note Critiche ed Autocritiche intorno alla Discussione su Diritto e Ragione”. In: Le Ragioni del Garantismo: Discutendo con Luigi Ferrajoli. Torino: Giappichelli, 1993, p. 468.

[15] Teríamos, então, uma norma vigente quando estivesse despida de vícios formais, ou seja, emanada ou promulgada pelo sujeito ou órgão competente, de acordo com o procedimento prescrito. Já uma norma válida existiria quando imunizada de vícios materiais – ausente de contradição com nenhuma norma hierarquicamente superior –.  Por fim, uma norma é eficaz quando é de fato observada pelos seus destinatários (e/ou aplicada pelos órgãos de aplicação). CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e legitimidade, p. 80.

[16] Evidentemente o controle constitucional, seja ele feito no caso concreto por cada magistrado seja efetuado de forma concentrado pela corte constitucional (exercício em que ambos agregam-se, não ficando aqueles à mercê do entendimento desta) não deve ser o único critério de legitimação substancial de validade da norma, caso em que ficaríamos encastelados num estéril monismo estatal, esquecendo do pluralismo de forças sócias que devem interagir nesta dinâmica.

[17] Apud FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías..., p. 33-34.

[18] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 156-158.

[19] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón..., p. 857.

[20] FERRAJOLI, Luigi. “Note Critiche ed Autocritiche ...”, p. 506-507.

[21] Neste sentido, Ronald Dworkin sustenta o caráter anti-utilitarista dos direitos fundamentais (entendida aqui utilidade como utilidade geral). DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Madrid: Ariel, 1997, p. 286-288.

[22] FERRAJOLI, Luigi. “Note Critiche ed Autocritiche ...”, p. 509.

[23] Observa GUASTINI, Riccardo. “I fondamenti teorici e folosofici del garantismo”. In: GIANFORMAGGIO, Letizia. Le Ragioni del Garantismo: Discutendo con Luigi Ferrajoli. Torino: Giappichelli, 1993, p. 59-60, que o liberalismo de Ferrajoli é um liberalismo sui generis, pois, por um lado, “le preferenze di Ferrajoli vanno a quello che egli chiama uno ‘stato sociale di diritto’, ossia ad un ordinamento che conferisce e garantisce non solo diritti di libertà, ma altresì diritti sociali (cosa estranea alla tradizione politica liberale, insomma al liberalismo clássico)”. Aduz ainda outro aspecto salutar a ser compreendido, condizente à extensão da proposição garantista, na medida em que incorpora facetas do liberalismo clássico, entretanto despreza e afasta de pronto outro ícones basilares desta corrente de pensamento. “il garantismo de Ferrajoli è, per cosi dire, monco, poiché non si estende al diritto di proprietà, e neppure quindi alle libertà economiche (di scambio, di inicitiza economica) che lo pressuppomgono”. No mesmo sentido, RESTA, Eligio. “La Ragione dei diritti”. In: GIANFORMAGGIO, Letizia. Le Ragioni del Garantismo: Discutendo con Luigi Ferrajoli. Torino: Giappichelli, 1993. p. 432-433.

[24] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías..., p. 23.

[25] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón..., p. 865.

[26] STRECK, Lênio Luiz. “O Trabalho do Jurista na Perspectiva do Estado Democrático de Direito: Da Utilidade de uma Crítica Garantista”. In: Doutrina, Rio de Janeiro: AID, v. 5, p. 48, 1996.

[27] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón..., p. 880.

[28] Observa ainda Zaffaroni que as concepções autorreferenciais é a volta atualmente, através de um funcionalismo sistêmico, do antidemocrático organicismo social: “O paradigma de maior vigência temporal é o do organicismo: o discurso jurídico-penal fundamentado na ideia de sociedade como organismo imperou teocraticamente, restabeleceu-se como o positivismo e volta agora com o funcionalismo sistêmico. A ideia de “organismo social” é, por sua essência, antidemocrática, pois o que interessa é o organismo, e não suas células. As decisões são tomadas apenas pelas células preparadas especialmente para decidir e não pela maioria indiferenciada delas. O paradigma organicista é idealista, não suscetível de verificação, e sua adoção pelo positivismo não foi mais do que um recurso do poder para ‘mostrar como científico’ aquilo que sempre constituiu uma metáfora antidemocrática.” ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Renavan, 1991. p. 49.

[29] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón..., p. 884.

[30] CARVALHO, Salo de. Pena e Garantia..., p. 116.

[31] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón..., p. 906.

[32] FERRAJOLI, Luigi. “Toleranza e Intollerabilità nello Stato di Diritto”. In: COMANDUCCI, Paolo; GUASTINI, Ricardo. Analisi e Diritto: Richerche di Giurisprudenza Analitica. Torino: Giappichelli, 1993, p. 289.

[33] CARVALHO, Salo de. Pena e Garantia..., p. 117.

[34] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón..., p. 928.

[35] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón..., p. 931.

[36] Vê-se com clareza em BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 27-30, quando disserta sobre a “fecundidade do antagonismo” e o “elogio à variedade”.


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Augusto Jobim do Amaral é Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal); Doutor, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS; Professor da Faculdade de Direito da PUCRS.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            


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