Por Atahualpa Fernandez - 17/04/2015
“Nunca he recriminado a nadie sus fracasos, pero soy totalmente despiadado con la falta de esfuerzo.” F. Scott Fitzgerald
O conceito oposto à akrasia é a enkrateia. Para Aristóteles existiam duas classes de pessoas akraticas: as impetuosas e as débeis. As primeiras (pessoas akraticas impetuosas), segundo Aristóteles, não levavam a cabo um processo de deliberação racional para realizar um determinado curso de ação, senão que se deixavam levar diretamente por alguma paixão ou sentimento. Por outra parte, as akraticas débeis seriam aquelas pessoas que apesar de levar a cabo uma deliberação racional sobre que curso de ação tomar, elegem deixar-se levar pela paixão e os sentimentos.
Na versão aristotélica, somente o “enkratês” (o ideal da ética de estirpe socrática e incompatível com a natureza caída do homem), a pessoa que logra impor-se a si própria suas metapreferências, a pessoa que, sendo amiga de si mesma, não se contradiz no silogismo prático, que é capaz de eleger seus desejos e resolver seus conflitos interiores, possui “phronesis”, prudência, sabedoria prática, conhecimento concreto de si e de sua circunstância. Por dizê-lo com o apóstolo dos gentis, “enkratês” é a pessoa que entende o que faz e faz o que verdadeiramente quer.
Inequivocamente polêmico com Platão, o fundador do Liceu refaz a tese platônica da felicidade do homem virtuoso em qualquer circunstância: «Por esta razón, todos creen que la vida feliz es agradable y con razón tejen el placer con la felicidad, pues ninguna actividad perfecta admite trabas y la felicidad es algo perfecta. Por eso el hombre feliz necesita de los bienes corporales y de los externos y de la fortuna, para no estar impedido por la carencia de ellos. Los que andan diciendo que el que es torturado o el que ha caído en grandes desgracias es feliz si es bueno, dicen una necedad, voluntaria o involuntariamente.» (Ética a Nicómaco, 1.153b-1.154a)
O que neste texto parece querer sustentar Aristóteles é que ser “enkrático” é uma condição necessária para ser livre e feliz, mas não suficiente. O bom controle sobre si mesmo, o ser sábio e senhor de si mesmo, a «força interior» (uma possível tradução de enkrateia) ou a liberdade respeito dos próprios impulsos são características essenciais de um caráter virtuoso. Sou um “enkratês” quando consigo escolher sabiamente meus melhores desejos, harmonizar meus conflitos internos e não ignoro os mecanismos causais que dentro de mim atuam para impedir minha vontade e/ou perturbar a realização de minhas convicções, desejos e propósitos; quer dizer, quando não cedo a nenhuma outra coisa senão somente ante a força da virtude moral, da integridade pessoal e da sensata e insubornável firmeza do espírito.
Contudo, a capacidade de alhanar os obstáculos internos, embora constitua uma condição imprescindível para ser feliz e livre (no sentido de que nenhum obstáculo interno frustra minha vontade e que, para os estóicos, corresponde à «ataraxia»), não é o bastante. Também é fundamental um ambiente que não levante diques externos à realização da firme vontade do “enkratês” (palavra que designava em grego coloquial a quem tinha poder ou capacidade de uma firme e virtuosa disposição sobre algo; desse adjetivo deriva o substantivo “enkrateia”, verossimilmente um neologismo socrático).
E é precisamente esta consideração das constrições externas que marca a diferença do pensamento aristotélico com relação ao pensamento platônico da felicidade do homem virtuoso em qualquer circunstância, e faz de Aristóteles um teórico da «polis» mais realista que Platão. Porque é a “cidade” que dá a base material da suficiência, a “cidade” que cobre as necessidades dos indivíduos, a “cidade” que lhes proporciona o marco em que formar-se ideias adequadas sobre a própria felicidade. Em tal caso, pode-se dizer, com Platão, que o tirano com os demais é antes de tudo escravo de si mesmo (Rep. 573B ss.), mas acrescentando à continuação que os oprimidos por ele, ainda se virtuosos, não são incondicionalmente felizes e livres, porque a enkrateia é autodomínio: ser dono e senhor de si mesmo, de mandar-nos a nós mesmos para que ninguém nos mande; autodomínio para a ausência de dominação (A. Domènech).
Sendo assim (evidentemente sem desconsiderar a existência de limitações externas que não podemos controlar, isto é, o encadeamento de circunstâncias que escapam ao controle próprio e que frustam, em grande medida, a felicidade e a liberdade pessoal), ser virtuoso, “enkrático”, implica "estar em harmonia consigo mesmo”, "querer sempre as mesmas coisas", não ter uma vontade volúvel ou caprichosa e desejar ao mesmo tempo o que convém (e se deve) a si mesmo e o que convém (e se deve) aos demais - em último termo, isso é quiçá o único que nos está permitido controlar.
Por dizê-lo de alguma maneira mais desafetada, a enkrateia é o valor que nos ajuda a superar a inconstância de nossos estados de ânimo, nossos conflitos interiores e os impulsos ou incontinências de nosso caráter mediante a vontade. Nos estimula a afrontar com sensatez os contratempos, a capear os temporais de nossas experiências vitais, e a ter paciência, tolerância e compreensão em nossas relações pessoais. Também é a virtude que nos alenta a reconhecer que somos, em um maior ou menor grau, pessoalmente responsáveis pela autoria de nossa vida, donos de nosso “destino” e da possibilidade de melhorar nossa existência; é a «atitude» de querer ser o que fazemos de nós através da forma em que elegemos atuar, em lugar de escusar-nos pela forma em que atuamos e lamentar-nos por isso.
Já a akrasia (literalmente, “falta de controle” sobre si mesmo) traduz a ideia de uma debilidade ou fracasso da vontade (nota bene: Jon Elster, seguindo os trabalhos de George Ainsley, descreve a akrasia como uma “inversão temporal das preferências”). O homem (mulher) “akrático”, incontinente e perverso, “não é uno, senão múltiple, e no mesmo dia é outra pessoa e inconstante” (Ética Eudemia, 1240b); aquele que, não sendo amigo de si mesmo e não tendo comando sobre si mesmo, qualquer obstáculo interno frusta sua vontade; aquele que contraria seu melhor juízo sobre o que fazer em determinada situação.
Ignorante de si mesmo, o “akratês” - aquele que viola o silogismo prático e ignora os mecanismos causais que, operando dentro dele, colapsam sua vontade - é, segundo a célebre definição aristotélica, quem atua contra seu melhor juízo, quem, havendo decidido conscientemente um curso de ação como o melhor ou mais conveniente para ele é incapaz de levá-lo a cabo, pois é débil de vontade e incapaz de impor suas próprias decisões a seus impulsos e temores. A pessoa cuja vontade, instável e incoerente, lhe impulsa ao mesmo tempo em direções contrárias ou com uma cadência desordenada, que sofre uma ambivalência profundamente arraigada, na qual sua vontade se compraz na indefinição, carecendo assim de autoridade ou suprema autarquia para guiar suas ações («Candle in the Wind», para descrever como a famosa canção de Elton John).
Isso leva ao ser humano vicioso, desesperado da debilidade de sua vontade e incapaz de resolver o conflito (interno) em que está imerso, a enfrentar a si mesmo, porque o fato de estar dissociados seus desejos e seus sentimentos faz possível “que um homem seja seu próprio inimigo” (Ética Eudemia, 1240b): “Veo lo mejor y, sin embargo, hago lo peor”, segundo a clássica formulação de Ovidio.
Em consequência, dado que a akrasia é um corrosivo da vontade, parece razoável inferir, com Aristóteles, que opere tanto no trato que o indivíduo se dá a si mesmo como no trato que dispensa aos demais: os homens (e mulheres) maus são viciosos que nem estão em harmonia consigo mesmos pelo traço mudadiço de sua vontade nem podem tê-la com os demais, ao antepor sistematicamente seus próprios interesses particulares do momento ao que se deve aos demais (e a si mesmo no futuro). Dito da forma mais simples possível: um vicioso consigo mesmo, um “akratês”, não pode ser justo, compassivo ou bondoso para com os demais.
Assim as coisas, talvez o melhor a fazer é esforçar-nos por cultivar a sensatez e a fortaleza da mente, ter cuidado do que pensamos e desejamos, de como valoramos e como nos comportamos, do que elegemos, decidimos e de que ideias nos nutrimos. Há que ser firme e reto em nossas boas convicções, «amigo de» e «bom para» si mesmo. O ser humano bom é sempre semelhante a si mesmo e não cambia de caráter: “Se parece en todo por la tarde a lo que era por la mañana” (Aristóteles).
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España
Imagem Ilustrativa do Post: Blow Your Mind // Foto de: Camilo Rueda López // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/kozumel/4918575268 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode