Encontrou-se, mas se arrependeu

07/08/2019

 

Conhecer-se a si próprio. Antiga pretensão humana. Lembro-me de uma conversa de bar. Conhecido meu contava que foi à Espanha, trilhar o desgastado caminho de Santiago de Compostela, tornado moda. Vendido como místico, é destino turístico. Lá, a tarefa é refletir, mais do que caminhar. Pelo menos assim intentou meu conhecido, desejante de encontrar-se.

Creio que esse moderno desejo de encontro de si corresponde à atual leitura da antiga preocupação estoica: saber o lugar de cada um na ordem geral das coisas. Conhecer-se, encontrar-se, a mim me parece, é pensar-se a si mesmo. Bem, para dizer-se, há-se que se saber escutar. No entanto, nós somos educados para muito falar e pouco preparados para ouvir.

Essa falta de educação para a escuta, em si mesma, embaraçaria qualquer chance de autoentendimento que se pudesse almejar. Ademais, ainda que se escutasse, para bem dizer-se o sujeito haveria, primeiro, que se saber; para saber-se, teria que, antes, dizer-se; para dizer-se, que saber-se; para saber-se, que dizer-se. O que viria primeiro?

O aforismo conhece-te a ti mesmo, diz a narrativa que nos alcança, estaria inscrito nos pórticos do Oráculo de Delfos, na antiga Grécia. Há quem o atribua a uma mulher, Femonoe, a primeira profetisa desse sítio de revelação. “É uma pedra angular da filosofia de Sócrates e do seu método, a maiêutica, e é muito citado pelo filósofo nos relatos de Platão” (Wikipédia).

Aqui, uma elucidação, digamos, filosófica: o pensamento dominante entre os gregos advinha do estoicismo, do qual, aliás, deriva o cristianismo de Paulo. Compreendia-se que o mundo era cosmos (hoje sabemos que é caos), que havia uma disposição organizada de tudo, então, para alguém ser feliz, devia encontrar sua “função” e desempenhá-la o melhor possível.

Bem, sobre a lenda do conhecer-se nasce outra. O templo desse mesmo oráculo teria proclamado Sócrates o homem mais sábio na Grécia, ao que Sócrates, modesto, teria respondido que, se assim era, isso decorreria de que: “Só sei que nada sei”. Como se vê, isso é pura contradição, pois, se nada sabia Sócrates, jamais saberia nada saber.

De si próprio é mesmo difícil saber. Poetiza Fernando Pessoa: “Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem me achei”. Sobre conhecer o fundo da própria existência, Mia Couto escreve: “Existo onde me desconheço”. Couto talvez não saiba, mas, antes, pontifica Jacques Lacan: “Sou onde não me sei”.

Aliás, Alice, no País das Maravilhas (Carroll, Lewis), já concluíra: “Eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. [...] Receio que não possa me explicar, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas... Mas não posso explicar a mim mesma”.

Se não houver confiança em livros juvenis ou em devaneios de poetas, é de se perguntar ao profissional da mente: Inconsciente – “Qualquer processo mental cujo funcionamento pode ser deduzido do comportamento de uma pessoa, mas ao qual essa pessoa continua estranha, sendo incapaz de o examinar e relatar” (Dic. Tec. Psi., Cabral, A e Nick, E).

Mais detalhes em Sigmund Freud, para quem o Inconsciente nos é desconhecido em sua verdadeira e mais íntima realidade. Aponho: não suportaríamos conhecê-lo. Comprovo-o com o tal sujeito da mesa de bar. Sobre a sua caminhada, alguém publicou no jornal: “Doutor fulano fez peregrinação para se encontrar. Encontrou-se, mas se arrependeu”.

 

 

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