Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos
Luciana ressurgiu numa manhã gelada de primavera, já tinha os seus quarenta anos, e continuava com aqueles cachos emoldurando o seu rosto – o cabelo cacheado era o único detalhe do seu semblante que eu ainda me lembrava. Inquieta, ela não mediu as palavras:
— O pai nos disse que seria preciso matar o Anjo do Lar. Você assim o fez?
— Assim eu tenho feito com fervor, a cada alvorescer, mas este Anjo é infinito! Virgínia já me alertou, pois ele a atormentava também.
— Ahhh... Ontem, subi até o topo de um arranha-céu, não haviam mulheres por lá. Desci alguns andares, e encontrei poucas. E, em meio às telas dos computadores, daquelas que haviam dedicado anos e anos de estudos, um outro primo do Anjo do Lar as amedrontava oferecendo salários inferiores, ou senão, com desdém velado, quando o ventre de algumas delas se encarregava de uma nova geração, se apropriava das conquistas delas.
— Não se assuste. Sheryl me disse sobre isso. Existe tanto “bropriating”, não é?
— Ahhh... Outro dia, recordei-me da mãe, quando ela costumava te pegar lá no fim da aula. Eu passei perto do portão de uma escola, e naquela afobação cotidiana, em meio àqueles cabelos desalinhados, por entre a palidez e olheiras dos rostos, lá estava escondida uma tia do Anjo do Lar. Ela atirava aquelas mulheres umas contra as outras, as julgava e as condenava ali mesmo; e dizia coisas como, afinal, você é uma mãe que trabalha, e você é uma mãe que largou seu diploma no fogão.
— É... aquele velho clichê de ver mulher julgando mulher. Tenha paciência, Anne-Marie desabafou que as mulheres não podem ter tudo ...
— Ahhh... Saí com a tia semana passada, ela me arrastou até o mercado. Enquanto eu andava apressada por entre as gôndolas, agucei o olhar, e encarei a sobrinha do Anjo do Lar enquanto ela me provocava me chamando de “supermarket lady”. Que novidade! Depois, fui à ginástica e o instrutor, um afilhado do Anjo do Lar, me perguntou se eu fazia musculação para poder carregar mais sacolas do mercado.
— E o que você respondeu?
— Fiquei em silêncio.
— Mas, o silêncio é o que permite que mentiras floresçam... Rebecca comentou isso, outro dia!
— Ahh... Deixa estar. O que você tem feito com os meus sobrinhos?
— Estou criando um menino e uma menina, assim como nós fomos preparadas lá em casa: cuidados e trabalhos domésticos são neutros. Às vezes, Chimamanda nos visita...
— Vou-me embora. Você, como irmã mais velha, continua enfadonha como sempre! Se todo mundo já te disse tudo, o que eu estou fazendo aqui?
— Não é que tudo já foi dito. É que os dissabores das nossas “soeurs” são muitos e invisíveis. E, para aquebrantar o Anjo do Lar tem sido preciso também calar tantos outros anjos da crítica, do menosprezo, do preconceito, da altivez, da violência, da submissão, da competitividade...
— E tem notícias de Lindonéia?
— Não. Ela continua desaparecida.
— Olhe de novo, no avesso do espelho. É lá que muitas outras devem estar: imperceptíveis.
Um vento bateu, e Luciana se foi assim como havia chegado. Só ouvi, entre o barulho das pétalas se despedaçando no jardim, a sua gargalhada veloz e um cochicho:
— Sua casmurra! Sempre matutando! Pobres dos meus sobrinhos...