Empresa com débito tributário pode distribuir lucro?

06/05/2016

Por Charles M. Machado – 06/05/2016

O Direito, assim como muitos fatos da vida, exige sempre uma atenção significativa do intérprete, principalmente se esse, é consultado em atos que podem parecer rotineiros, mas que como em diversas profissões exige uma elevada acuidade no trato, e na consequente resposta. Afinal somos e sempre seremos cobrados pelo que falamos, e mais ainda pelo que escrevemos. Em tempos de crise é absolutamente normal que os problemas do empresário se avolumem bem como sejam acentuados pela vontade de aumentar a arrecadação fiscal.

A distribuição de lucros por empresas em débito coma União, e ou outros tributos, sejam eles estaduais ou municipais é questionada se sofre ou não limitações.

É de se destacar que a Lei 4.357/64 prescreve de forma direta o seguinte, sobre esse tema, com a redação atualizada pela Lei 11.051/2004:

Art 32. As pessoas jurídicas, enquanto estiverem em débito, não garantido, para com a União e suas autarquias de Previdência e Assistência Social, por falta de recolhimento de imposto, taxa ou contribuição, no prazo legal, não poderão:

a) distribuir ..(VETADO) quaisquer bonificações a seus acionistas;

b) dar ou atribuir participação de lucros a seus sócios ou quotistas, bem como a seus diretores e demais membros de órgãos dirigentes, fiscais ou consultivos;

c) (VETADO).

§ 1o A inobservância do disposto neste artigo importa em multa que será imposta: (Redação dada pela Lei nº 11.051, de 2004)

I - às pessoas jurídicas que distribuírem ou pagarem bonificações ou remunerações, em montante igual a 50% (cinqüenta por cento) das quantias distribuídas ou pagas indevidamente; e (Redação dada pela Lei nº 11.051, de 2004)

II - aos diretores e demais membros da administração superior que receberem as importâncias indevidas, em montante igual a 50% (cinqüenta por cento) dessas importâncias. (Redação dada pela Lei nº 11.051, de 2004)

§ 2o A multa referida nos incisos I e II do § 1o deste artigo fica limitada, respectivamente, a 50% (cinqüenta por cento) do valor total do débito não garantido da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 11.051, de 2004)

Da leitura- conclui-se que a legislação em vigor impede a distribuição de lucros pela empresa que tenha débitos tributários não garantidos com a União, prevendo multas no caso de inobservância da proibição.

Porém, inúmeras são as controvérsias quanto à validade jurídica dessa norma, mas deve-se contudo destacar que a limitação legal, pode produzir como resultando inúmeras autuações fiscais, para a empresa, ainda que essa seja uma conclusão simplista, como veremos adiante. Em que pese a decisão do 1º Conselho de Contribuintes, proferida em 2007. Acórdão nº 105-16490, de 23.05.2007:

"RECURSO VOLUNTÁRIO: MULTA REGULAMENTAR - É devida a multa de 50% sobre o valor distribuído aos sócios quando houver débito não garantido com a União e suas Autarquias de Previdência e Assistência Social, limitada à metade do referido débito. (Art. 32 da Lei 4.357/64 c/ redação dada pela Lei 11.051/2004). As penalidades não estão sujeitas às regras de não confisco próprias dos tributos, pois com esses não se confundem. (Art. 3º CTN)."

Como se conclui no primeiro instante, o dispositivo legal, em tais casos mantém vedado à pessoa jurídica, distribuir quaisquer bonificações a seus acionistas e dar ou atribuir participação de lucros a seus sócios ou quotistas, bem como a seus diretores e demais membros de órgãos dirigentes, fiscais ou consultivos.

O mesmo dispositivo, regulamentou também a multa, devida pela desobediência ao enunciado.

A mesma matéria foi também regulamentada para os casos das contribuições, através da Lei nº 8.212/1991 (entre outras providências, dispôs sobre a organização da Seguridade Social), editada após a Constituição Federal de 1988, contém dispositivo onde se lê:

"Art. 52. À empresa em débito para com a Seguridade Social é proibido:

I - distribuir bonificação ou dividendo a acionista;

II - dar ou atribuir cota ou participação nos lucros a sócio-cotista, diretor ou outro membro de órgão dirigente, fiscal ou consultivo, ainda que a título de adiantamento.

Parágrafo único. A infração do disposto neste artigo sujeita o responsável à multa de 50% (cinqüenta por cento) das quantias que tiverem sido pagas ou creditadas a partir da data do evento, atualizadas na forma prevista no art. 34.".

É de se perguntar na primeira análise se o referido art. 32 da Lei nº 4.357/1964 teria sido ou não recepcionado pela Constituição Federal de 1988, pois no primeiro momento entende-se um identificável afronte aos princípios da propriedade privada, da proporcionalidade e do livre exercício da atividade econômica, insculpidos no art. 170, II e parágrafo único, da CF/1988.

Para o Imposto de Renda das empresas, está disciplinado a restrição à distribuição de lucros por empresa com débito tributário, ajustada no próprio RIR, onde se lê:

"Art. 889. As pessoas jurídicas, enquanto estiverem em débito, não garantido, por falta de recolhimento de imposto no prazo legal, não poderão (Lei nº 4.357, de 1964, art. 32):

I - distribuir quaisquer bonificações a seus acionistas;

II - dar ou atribuir participação de lucros a seus sócios ou quotistas, bem como a seus diretores e demais membros de órgãos dirigentes, fiscais ou consultivos.".

Após a promulgação da Magna Carta, o referido diploma foi atualizado pela Lei nº 11.051/2004, que modificou o artigo 32 da Lei nº 4.357/1964, com a inclusão de dois parágrafos.

Destaca-se que, mesmo com essa modificação, em uma clara intenção de fazer ressurgir um diploma em desuso, e ao nosso ver não recepcionado pela Magna Carta de 1998, permanece ainda os vícios que maculam o diploma. Afinal a alteração do dispositivo não tema o condão de dar vigência a um dispositivo legal não recepcionado pela vigente Constituição, ou seja, sem efeito jurídico.

Destaca-se porém, que em que pese os pontos levantados até aqui, a norma permanece vigente, e seu uso provocado por autoridades fiscais através do lançamento.

É evidente que eventuais notificações estão sujeitas a impugnação do auto nos termos da legislação vigente. É claro que, em tal hipótese, a empresa poderá defender-se administrativa ou judicialmente, para tentar afastar a aplicação das multas previstas.

Porém é de se destacar que nos tribunais administrativos federais, a legalidade da norma permanece, devendo no caso o judiciário ser provocado.

Juntamos a decisão do 1º Conselho de Contribuintes, por sua 5ª Câmara, que confirmou a imposição da multa em análise, entendendo válida a norma do art. 32 da Lei nº 4.357/1964 (com a redação da Lei nº 11.051/2004), conforme se lê no Acórdão nº 105-16490, de 23.05.2007:

"RECURSO VOLUNTÁRIO: MULTA REGULAMENTAR - É devida a multa de 50% sobre o valor distribuído aos sócios quando houver débito não garantido com a União e suas Autarquias de Previdência e Assistência Social, limitada à metade do referido débito. (Art. 32 da Lei 4.357/64 c/ redação dada pela Lei 11.051/2004). As penalidades não estão sujeitas às regras de não confisco próprias dos tributos, pois com esses não se confundem. (Art. 3º CTN)."

É de se destacar que a legislação em análise, fala em débito não garantido, logo cremos que o caso trata de débito inscrito após a discussão administrativa, visto que para impugnação e recurso o CTN, não exige nenhum tipo de garantia, e logo entende-se também que o arrolamento não constitui garantia de pré-requisito.

Logo para os casos de débito com exigibilidade suspensa, os previstos no CTN em seu artigo 151, a restrição não se mantém:

Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:

I - moratória;

II - o depósito do seu montante integral;

III - as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;

IV - a concessão de medida liminar em mandado de segurança.

V – a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial; (Incluído pela Lcp nº 104, de 2001)

VI – o parcelamento. (Incluído pela Lcp nº 104, de 2001)  

Parágrafo único. O disposto neste artigo não dispensa o cumprimento das obrigações assessórios dependentes da obrigação principal cujo crédito seja suspenso, ou dela conseqüentes.

Logo no mesmo sentido já decidiu a Superintendência Regional da Receita Federal da 4ª Região Fiscal, que declarou inexistir restrição em tal hipótese, o que, embora ainda de modo incipiente, pode indicar interpretação a ser adotada de modo amplo pela Receita Federal Independentemente de processo administrativo essa questão também já foi resolvida na Solução de Consulta nº 82/2005:

"A pessoa jurídica que possui débitos parcelados para com a União, relativos a tributos administrados pela Receita Federal do Brasil, pode, sim, distribuir bonificações a seus acionistas, dar ou atribuir participação de lucros a seus sócios ou cotistas, bem como a seus diretores e demais membros de órgãos dirigentes, fiscais ou consultivos, ainda que o respectivo parcelamento não exija a prestação de garantia, visto que este suspende a exigibilidade do crédito tributário.".

É evidente que algumas das decisões judiciais que validam o dispositivo publicado em período ditatorial de nossa história acabam por assustar os contribuintes, e criam uma verdadeira confusão em escritórios de contabilidade e assessorias jurídicas desavisadas, visto que o passivo fiscal indesejável, quase sempre apena de maneira gravosa a saúde financeira das empresas principalmente nesse momento tão delicado de nossa economia.

A 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão inédita, julgou recurso da Fazenda Nacional e declarou o impedimento de distribuição de lucro e dividendos aos sócios de empresa com dívida tributária sem garantia, o relator, ministro Castro Meira, determinou a aplicabilidade do artigo 32 da Lei nº 4.357, de 1964, a qual proíbe que as pessoas jurídicas, que possuam débitos não garantidos com o Fisco, distribuam bonificações, lucros e dividendos a seus sócios e acionistas, além de prescrever multa de 50% pelo seu descumprimento.

O diploma de 1964, reflete o período político da época, que naquela ocasião nos colocava em um cenário de clara violação aos direitos mínimos dos seus cidadãos, o presidente da República manteve a proibição sobre a distribuição de bonificações, mas vetou a restrição quanto aos dividendos. Entendeu que a ingerência do Fisco em assunto de economia interna das empresas deveria ficar restrita a casos excepcionais e que a exclusão dos “dividendos” tornar-se-ia mais aconselhável, ainda, no caso de acionistas minoritários, que restariam prejudicados por erros de uma administração que não teriam força para substituir. Depois do sonoro, claro e racional veto, o tempo foi de esquecimento desse problema, principalmente em função do advento da Constituição Federal de 1988 que, em novo contexto histórico-político, assegurou ao cidadão princípios, como o do livre exercício da atividade econômica e o da propriedade privada.

É evidente que vedar a distribuição de lucros é aplicar penalidade ao sócio minoritário, visto que a nova roupagem normativa deu oportunidade ao Fisco. A partir da modificação, a Receita Federal do Brasil passou a exigir o cumprimento de tal dispositivo, não permitindo a distribuição de lucros e dividendos de empresas que possuíssem débito tributário não garantido, sob a interpretação de que o substantivo “remuneração” seria gênero das espécies remuneratórias, que são “lucro e dividendos”. Com a publicação da lei e o novo ataque do Fisco, o assunto foi muito discutido nos anos seguintes, mas logo restou adormecido pela crença na razoabilidade com que o Poder Judiciário trataria da questão. Infelizmente, não foi assim que o STJ decidiu interpretar a norma legal. De fato o precedente era inédito naquela casa, porém naquela decisão destacou que o parcelamento é modalidade de suspensão ao crédito, logo não se aplica a lei aos débitos já parcelados. Porém destaca-se que muito embora o STJ tenha autorizado a distribuição de lucros nesse caso, em razão da garantia via parcelamento, a interpretação feita pelo órgão judicial é perigosa ao contribuinte. É dizer: débito não garantido, lucro não distribuído.

É evidente que permanece a não recepção do diploma, a sua incompatibilidade, contudo, entre o conteúdo da norma contida no artigo 32 e os princípios constitucionais da livre iniciativa privada e da propriedade privada são patentes. O dispositivo da Lei nº 4.357/64, até então jamais aplicado após o advento da Constituição de 1988, não restou recepcionado pelo nosso novo sistema jurídico. A proibição de distribuir lucros está em confronto direto com o princípio do devido processo legal, o qual dispõe que a administração pública deve seguir os meios prescritos por lei para a cobrança dos créditos tributários que lhe fazem jus. O próprio Supremo Tribunal Federal reiteradamente veda que o Fisco se utilize de coação indireta para receber tributos, entendimento este esboçado nas súmulas:

SÚMULA 70

É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo

Esse expediente é intitulado regime especial, o que é vetado pela súmula.

SÚMULA 323

É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.

A apreensão de mercadorias, tal como a restrição de distribuição de dividendo é medida na mesma linha, por isso vetada pela súmula.

SÚMULA 547

Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.

Não emissão de notas fiscais era outra sanção administrativa, utilizada pelo fisco e proibida pelo nosso STF

É de se destacar que os dividendos representam uma destinação do lucro do exercício, dos lucros acumulados ou de reservas de lucros aos acionistas da sociedade. Não se trata, portanto, da participação nos lucros prevista no artigo 32 da lei, que tem por natureza ser benefício atribuído a terceiros, não relativa aos investimentos dos acionistas. Tal participação representa uma espécie de parcela complementar do salário, cujo valor é apurado com base no lucro da sociedade e decorrente da performance do administrador. Por isso, o veto presidencial, em 1964, exatamente no vocábulo “dividendo”, para fins de garantir o princípio à livre propriedade, previsto no artigo 5º, inciso XXII da Constituição Federal. E mesmo que se pudesse imaginar que a medida tivesse sido recepcionada pela Constituição, a ausência de garantia ao débito fiscal é problemática da empresa devedora. Vedar a distribuição de lucros é aplicar penalidade, por exemplo, ao sócio minoritário que não deu causa à má administração do negócio e suas consequências, o que por si só seria inadmissível.

Todo os Instrumentos previsto no referido diploma, não se coadunam com o Estado de Direito, afinal após a edição da CF/88, com o advento de cláusulas pétreas garantindo direitos inalienáveis aos cidadãos.

De forma resumida  aplicação do art. 32 da Lei nº 4.357/64 é incompatível com princípios constitucionais tais como o da livre iniciativa privada, da propriedade privada e até mesmo do devido processo legal, pois desta forma o Fisco não estaria seguindo a forma prescrita pela lei para efetuar as cobranças de suas dívidas.

Ao vedar a distribuição de lucros aos sócios da sociedade, estar-se-ia redirecionando de forma arbitrária a dívida a pessoas que nem sempre seriam responsáveis por ela.

Ademais é uníssono na jurisprudência de nossos tribunais o entendimento de que a simples inadimplência da empresa não gera responsabilidade aos sócios. Assim, não há como entender como legítima a aplicação do artigo 32 da Lei nº 4.357/64, vez que tal interpretação geraria a violação também o artigo 135 do Código Tributário Nacional, pois a vedação da distribuição de lucros aos sócios, atingiria inclusive o sócio que não deu causa a má administração da sociedade, ou até mesmo aquele que não agiu com excesso de poder, infração de lei, contrato social ou estatuto e que não deveria responder pelos débitos da sociedade

Por último destaca-se ainda que mesmo nos casos em que os débitos parcelados entejam com parcelas vencidas e não pagas, isso não da causa ao não pagamento de lucros e dividendos, visto que para exclusão do parcelamento é necessário ato administrativo vinculado, comunicando a exclusão ao contribuinte.


Charles M. Machado é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também é palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito. Email: charles@dantinoadvogados.com.br


Imagem Ilustrativa do Post: A big part of financial freedom is having your heart and mind free from worry about the what-ifs of life. // Foto de: Morgan // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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