Por Atahualpa Fernandez – 02/12/2016
Leia também: Parte 2, Parte 3, Parte 4, Parte 5, Parte 6
“Qué tiempos serán los que vivimos, que hay que defender lo obvio.”
Bertolt Brecht
Malgrado a profusão do conjunto de teorias elaboradas acerca da interpretação jurídica, a maioria dos modelos sobre a tarefa hermenêutica e a própria unidade da realização do direito parece não dar a devida importância ao papel das emoções nos processos de tomada de decisão, construídos que estão (nunca está demasiado repetir) a partir de hipóteses sem qualquer escrutínio empírico-científico minimamente sério, quero dizer, sem o domínio de qualquer conhecimento ou técnica científica sólida acerca dos problemas filosóficos e neuropsicológicos intrínsecos que implica qualquer teoria da ação intencional humana, mas com a insolência de atrever-se a fabular e a preconizar “cosas en un lenguaje rimbombante, para que alguna gente quede hechizada con sus palabras grandilocuentes.” (M. Bunge)
E não é somente que alguns juristas estejam vacilantes ou em desacordo com os detalhes a respeito da magnitude que têm as emoções para a atividade jurisdicional, senão que se dissuade ativamente discuti-las de algum modo que não seja em termos fortemente racionalistas, o que amiúde faz com que a evidência empírico-científica se fulmine ou, inclusive, se sacrifique no altar de ideais metafóricos. Parafraseando a Uri Harris, para quem a saúde das ciências sociais em geral está afetada de forma séria, quando os juristas “se alejan del mundo por no conformarse a sus modelos, en lugar de al revés, algo va mal”, porque o que há é um problema de dogmas, de certeza indevida e de tabus ideológicos mais profundo (onde o «faz-de-conta» se tolera e os fatos se ignoram).[1]
Mas, qual pode ser a relação existente entre os resultados da atual investigação científica e o processo de interpretação do direito e de tomada de decisões judicial? Têm os juízos formulados pelos juízes como causa preponderante a razão, a emoção ou são primariamente produto de um processo de raciocínio fundado em princípios inconscientes e inacessíveis? Em que medida é possível saber, nos processos de tomada de decisão jurídica, se os juízes atuam, segundo a perspectiva de Marc Hauser, como criaturas humeana, kantiana ou rawlsiana? Ou dito de outra maneira algo mais retorcida: É possível dar à razão uma narrativa? Pode dotar-se assim de sentido algo que (sem a tutela da emoção) essencialmente não o tem?
O assunto, sobra dizer, não é trivial. É delicado e sempre está (politicamente) infectado de polêmica e ambiguidade. Primeiro, porque o direito não é, e jamais será predominantemente um sistema racional de pensamentos, ao menos enquanto a ciência não produza inéditos milagres nos cérebros das pessoas. Não pode sê-lo, porque consiste em decisões sobre distintas possibilidades de ordenação político-social para as condutas humanas, um tipo de conhecimento que não é uma leitura direta da realidade, senão interpretações intimamente mediadas por processos cognitivos, emocionais e perceptivos. Decisões são tomadas por primatas humanos, indivíduos que estão eles mesmos envolvidos - direta ou indiretamente, quando menos ideologicamente[2] – em tais condutas.
De fato, uma decisão não costuma resultar mais racional que a vontade, as emoções e o conhecimento de quem a produz. E os atores principais da atividade jurisdicional que determinam sua dinâmica não são precisamente uns “preferidores racionais”, nem uma confraria de sofisticados jus-metodólogos, senão indivíduos que basicamente respondem às orientações de seus genes e de seus neurônios, assim como de suas experiências, memórias, valores, aprendizagens e influências procedentes do ambiente e da mentalidade comum.[3]
Segundo, porque parece estar irremediavelmente condenada a equivocar-se, de ponta a ponta, e sempre, qualquer teoria sobre hermenêutica/interpretação/argumentação jurídica que busque entendê-la, ou programá-la, como um sistema de locutores básica ou exclusivamente racionais. Os agentes reais do direito não são e nem tampouco funcionam assim: não são apenas suas racionáveis "perfeições", senão que também são suas emocionais “imperfeições”. Como disse Jerome Frank (2001), também os juízes são “humanos”. E não poucas vezes – é possível agregar - até demasiado humanos.[4]
Vejamos por partes.
Notas e Referências:
[1] Não resulta difícil comparar, neste particular, as emoções a um «cisne negro», um fenômeno que parece inconcebível em relação com as crenças e os supostos assumidos prevalentes. Os acontecimentos «cisne negro» surgem quando nossa concepção do mundo está desconectada dos acontecimentos “de fundo”.
[2] Nesse sentido, por exemplo, D. Kennedy (2010) sustenta que “una hermenéutica de la sospecha, o búsqueda de las motivaciones ideológicas escondidas en las sentencias judiciales que se presentan a sí mismas como técnicas, deductivas, objetivas, impersonales o neutrales, ha sido durante los últimos cien años la característica más importante de los debates norteamericanos sobre la decisión judicial. En el discurso jurídico, la evidencia de esta imputación de motivaciones casi nunca es flagrante, en el sentido de que implique una admisión de intención. En las sentencias judiciales, los jueces siempre “niegan”, en el sentido común del término, que estén actuando por motivos ideológicos. Esto es, afirman explícitamente que el resultado – el desenlace que le dan a un caso al elegir una particular resolución para una cuestión de derecho o de definición de ciertas normas en lugar de otras – fue alcanzado siguiendo procedimientos interpretativos impersonales que excluyen la influencia de sus ideologías personales. Obviamente, se trata de una convención y dice poco sobre lo que “realmente” está sucediendo. […] Todos quieren que sea verdad que no sólo es posible sino también habitual que los jueces juzguen desproveídos de toda ideología. Pero todos están al tanto de la crítica, y todos saben que la teoría ingenua del imperio de la ley es una fábula, y aquellos que lo saben sospechan que las versiones sofisticadas de la filosofía del derecho contemporánea no son mucho mejores. […] Los jueces ya no pueden invocar compulsión de ´la ley´ para justificar sus decisiones: ellos son siempre parte de la decisión. Dios ha muerto”.
[3] Sobre os fatores que influem, limitam, configuram e distorcem a maneira como percebemos o mundo, pensamos e atuamos, cf. Csikszentmihalyi, 2008; já sobre as limitações do cérebro evolucionado, responsáveis por gerar as principais predisposições e fraquezas do ser humano, Linden (2010) explica: “El cerebro no ha sido diseñado de manera elegante ni mucho menos: es un revoltijo improvisado e incomprensible que, sorprendentemente y pese a sus cortocircuitos, logra realizar una serie muy impresionante de funciones – o sea, que funciona sorprendentemente bien. Pero si bien la función general es impresionante, no cabe decir lo mismo de su diseño. Y lo que es más importante, el extravagante, ineficaz y singular plano de construcción del cerebro y sus partes constitutivas es fundamental para nuestra experiencia humana. La textura particular de nuestros sentimientos, percepciones y actos se deriva en una amplia medida del hecho de que el cerebro no sea una máquina optimizada que resuelve problemas genéricos, sino una extraña aglomeración de soluciones ad hoc que se han ido acumulando a lo largo de millones de años de nuestra historia evolutiva.[…] En concreto, que las limitaciones de un diseño cerebral extravagante y evolucionado fueron lo que en última instancia condujo a la aparición de muchos de los rasgos humanos trascendentes y únicos ( y que nos permite entender algunos de los aspectos más profundos y específicamente humanos de la experiencia): el hecho de tener una infancia prolongada, nuestra amplia capacidad de memoria (sustrato en el que se crea nuestra individualidad a través de la experiencia), nuestra necesidad de crear relatos convincentes, nuestra limitada racionalidad e incluso nuestra predisposición al pensamiento religioso”. Nomeadamente no que se refere à moralidade, é possível argumentar o seguinte: que nós e nossos cérebros evolucionamos em pequenas comunidades culturalmente homogêneas, cada uma com sua própria perspectiva moral. O mundo moderno, por certo, está repleto de perspectivas morais em conflito. Nossos maiores problemas sociais, morais e jurídicos derivam de nossa tendência inconsciente de aplicar o pensamento moral paleolítico (também conhecido como "sentido comum") aos complexos problemas da vida moderna. Nosso cérebro nos engana ao pensar que temos a verdade moral de nossa parte, quando em realidade não a temos; também nos cega diante de verdades importantes em relação às quais não foi desenhado para apreciar. Nosso cérebro nos impede de ver o mundo desde outras perspectivas que não seja as das crenças e convicções herdadas do passado; muitas pessoas tomam decisões não em função do que vêem, do que consideram bom ou mau, senão em função do que crêem, de suas convicções. Da mesma forma que os primatas sociais mais evoluídos, decidimos de forma instintiva e motivados por nossas emoções morais herdadas de nossos antepassados; não somente somos incapazes de predizer, senão que tendemos a imaginar o futuro em torno ao passado. É o que Dawkins denomina de “código dos mortos”, esse pensar em base a estruturas ancestrais, de gente do passado: pautas de conduta excelentes há milhões de anos, que deixaram de ser úteis e que, não obstante, seguem vigentes. Por desgraça muitas das condutas do ser humano estão condicionadas por códigos antigos que agora resultam nefastos. Estruturas ancestrais que inevitavelmente seguem guiando a conduta e o pensamento do sapiens moderno, isto é, do relevante papel que ainda desempenham as crenças e convicções herdadas do passado à hora de configurar o futuro. Esta é a má notícia. A boa notícia é que, graças à plasticidade neuronal, algumas partes do cérebro humano são altamente flexíveis, e que ao depender mais desses sistemas cognitivos, podemos adaptar nosso pensamento moral para o mundo moderno. Mas para isso devemos deixar de lado o sentido comum e pensar na iniludível dimensão humana e interpessoal (de uma humanidade que evolucionou por seleção natural) que afeta a compreensão da moralidade (e da juridicidade) em toda a sua integralidade. Nesse sentido, cf. Marcus, 2010; Chabris e Simmons, 2010; Linden, 2010.
[4] “Los realistas fueron quines nos hicieron ver que los jueces, para ponerse los pantalones, meten primero una pierna y después la otra, como todo el mundo” (James Boyle, apud Pérez LLedó, 1996). Sublinho que a razão, como afirmação da própria subjetividade, não é uma capacidade natural, uma disposição inata, senão um desideratum do qual - isto sim - somos conscientes por nosso natural equipamento cognitivo, que pode ser explicado pelos milhões de anos de evolução biológica que pesam sobre nós. Quer dizer: o ser humano não é racional por natureza. Isto forma parte do mito da razão que a filosofia chegou a conceber e a idolatrar em determinados momentos históricos e/ou em certas propostas de seus pensadores. Bertrand Russell reconheceu este despropósito intelectual com as seguintes palavras: “El hombre es un animal racional o, por lo menos, así se me ha dicho. En el transcurso de una larga vida he buscado diligentemente pruebas a favor de esta afirmación, pero hasta ahora no he tenido la suerte de toparme con ellas, aunque las busqué en muchos países esparcidos en tres continentes. Por el contrario, he visto al mundo hundirse cada vez más en la locura”. Na realidade empírica, o comportamento do ser humano se ajusta aos processos mentais que operam de forma subconsciente, automática, espontânea e sem uma consciência deliberada. Da mera prolongação ideal do comportamento humano não surge a racionalidade no julgar e proceder de seus juízos, eleições e decisões. Como explica muito bem Massimo Piatelli Palmarini: “Simplemente, «la» razón no es una «facultad» congénita, que actúa en nosotros de manera espontánea y sin esfuerzo. El juicio racional moviliza muchas facultades distintas, a veces en conflicto entre sí. La racionalidad no es, pues, un dato psicológico inmediato, sino más bien un complejo ejercicio que tiene que ser conquistado primero y mantenido después con un cierto coste psicológico.[…] La racionalidad ideal es ideal.” Em suma: a razão há que ser assumida e praticada desde a consciência de sua complexidade e de seus limites, que são naturais ao estar enterradas suas raízes no tão pouco racional húmus de nossa psique, no compromisso que muitas de nossas tendências e capacidades mentais mantêm com o (evolucionado) «desenho humano».
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España
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