Emendatio libelli antes da sentença: uma discussão sobre a hierarquia processual

08/04/2015

Por Felipe Machado - 08/04/2015

A introjeção de elementos originários  do processo civil no processo penal (ainda) provoca sérias confusões. Isso porque ela termina por criar estruturas processuais hierarquizadas que retiram, no âmbito processual penal, qualquer aspecto democrático do Estado de Direito. No âmbito da emendatio libelli tal questão ganhou relevância em razão de uma decisão do STJ de 11 de novembro de 2014, nos autos do HC n. 241.206/SP, em  que se possibilitou a (re)classificação do fato penal deduzido na denúncia já no ato de seu recebimento. Antes, porém, de adentrar no mérito da (im)possibilidade de realização da emendatio libelli logo no recebimento da inicial acusatória, necessário se faz alguns apontamentos sobre o pano de fundo sobre o qual se sustenta a discussão ora proposta.

Longe de aqui se discutir a existência ou não de uma (possível) teoria geral do processo[1], busca-se, por hora, apontar a adoção, por alguns atores jurídicos, de compreensões processuais que estabelecem uma verdadeira hierarquia processual. Não é muito difícil de se encontrar membros do Ministério Público que intitulam a instituição como “o senhor da ação penal” ou mesmo como “o dono da ação penal” – se assim o fosse, seria de interesse público saber quanto ele pagou para ser o proprietário da ação penal. É incrível que passados quase 30 anos de experiência democrática, ainda possa se falar, em especial no processo penal, de um suposto “proprietário” da ação penal, pois, ora, se o MP é o dono, o que seria o acusado? Quem sabe, um inquilino ou até mesmo um esbulhante?!

Parece que as noções de Bülow[2] ainda encontram aplicabilidade prática no processo penal do Estado de Direito “democrático” que se diz existir no Brasil - Estado este em que o seu órgão oficial de acusação defende a utilização da prisão (pasme!) como instrumento de obtenção de confissões: sejam apresentados à versão moderna da tortura[3]. O autor alemão, em sua teoria da relação jurídica processual, defende a máxima do processo como actum trium personarum, isto é, o processo seria realizado entre o juiz e as partes, existindo um vínculo de sujeição do réu em relação a um direito (subjetivo) do autor. A relação jurídica, pensada inicialmente para o processo civil, sustenta-se na ideia de que ela própria seria “um enlace normativo entre duas pessoas, das quais uma pode exigir da outra o cumprimento de um dever jurídico” (GONÇALVES, 1992, p. 74). Logo, haveria uma relação hierárquica entre autor e réu compreendida de modo que aquele poderia  exigir deste a realização de uma prestação negativa ou positiva.

Essa compreensão do processo penal, a partir da teoria da relação jurídica, deturpa não só a noção democrática de contraditório, mas, também, a própria noção de direito de ação. Conforme estabelecido no art. 5o, XXXV, da CR: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Aqui, tem razão quem defende que a ação possui um “dono” exclusivo, contudo não seria ele o MP, mas, sim, toda pessoa física ou jurídica existente em terrae brasilis. O direito de ação é um direito fundamental, não se podendo falar em sua limitação ou mesmo na existência de um titular exclusivo[4].

Por outro lado, a compreensão de contraditório apresentada pela teoria da relação jurídica é meramente formal, isto é, tal garantia seria entendida como a mera participação dos interessados no processo, sendo estes o autor e o réu. A partir dos postulados da Carta de 1988, sugere-se a compreensão do contraditório como a participação das partes em simétrica paridade (FAZALARI[5]), ou seja, que as partes atuem em condições de igualdade, não meramente formais, mas, sim, materiais no âmbito processual. A evolução desse entendimento insere no contraditório as características da informação, da influência e da não-surpresa (NUNES[6]). Seria o contraditório marcado pela necessidade de que as partes tenham acesso à ações  umas das outras, podendo, com suas argumentações e provas, influenciar a formação da cognição judicial. Por fim, a construção da decisão judicial não poderia inovar em relação aos argumentos trabalhados em contraditório, devendo-se limitar aos temas debatidos pelas partes. Logo, o contraditório asseguraria a não-surpresa, isto é, as partes não seriam surpreendidas, na decisão judicial, com argumentos estranhos ao processo. Dessa maneira, seria, ainda, possível de se afirmar que o contraditório se colocaria como o limite à fundamentação das decisões. Tais reflexões se fazem úteis na análise da emendatio libelli no momento do recebimento da inicial acusatória. Tal discussão voltou à tona em recente decisão do STJ, a qual se passa a discutir abaixo.

No julgamento do HC 241.206[7], o STJ entendeu ser possível a realização da emendatio libelli antes sentença penal, possibilitando, inclusive, a sua adoção no momento imediatamente posterior ao recebimento da denúncia ou queixa. No atual regime jurídico, o juiz é livre para, na sentença, dar ao fato imputado ao acusado, a classificação jurídica que melhor se enquadre ao caso, não havendo nenhuma vinculação com aquela apresentada na inicial acusatória. Logo, o magistrado é obrigado a aguardar todo o desenrolar do processo penal para, ao final, dizer qual seria o enquadramento legal adequado aos fatos narrados na inicial acusatória. Aí surgem algumas questões: (i) o réu se defende exclusivamente dos fatos narrados na denúncia, sendo irrelevante o seu enquadramento jurídico?; (ii) e se a partir da nova classificação legal houver a alteração da competência para o julgamento?; (iii) na hipótese de a nova qualificação jurídica comportar a concessão de algum benefício legal, o que se deve fazer?

A questão aqui debatida não é nova. As civilizações antigas já se preocupavam com eventuais usos desvirtuados do aparato estatal com fins caluniadores. O avanço democrático do direito proporcionou o aprimoramento dos procedimentos de filtragem da imputação penal, fazendo com que muitos dos sistemas jurídicos hoje admitam uma fase intermediária entre a investigação e o julgamento, voltada à admissibilidade e acertamento da acusação. Tal juízo não pretende analisar a procedência ou não da acusação o que caberia ao julgamento de mérito que se faz ao final da fase de julgamento (ZILLI[8]). Em verdade a etapa da admissibilidade da acusação se prestaria ao acertamento jurídico do fato penal bem como a existência de justa casa apta a embasar a acusação. Dessa maneira, busca-se evitar, portanto, imputações imotivadas e acusações jurídicas dissociadas da faticidade dos eventos narrados. A realização da emendatio libelli no momento do recebimento da inicial da acusação constituiria uma forma de proceder a um, mesmo que restrito, juízo de admissibilidade da qualificação jurídica dada pelo acusador.

Alguns se colocam contra à utilização do instituto do at. 383, do CPP, no momento do recebimento do inicial da acusação. Sustentam que isso representaria uma antecipação do convencimento judicial, colocando em risco a imparcialidade do julgador, além de violar a presunção de não-culpabilidade. Tal raciocínio parte da premissa de que o juiz estaria, desde logo, julgando os fatos narrados na denúncia/queixa. Já outros, utilizando-se de uma interpretação sistemática, defendem que o instituto da emendatio libelli deve ser realizado no momento da sentença, já que ele está previsto no art. 383, do CPP, o qual está situado no Título XII que corresponde à  sentença. Por fim, há gente que defende que a reclassificação dos fatos pelo juiz ab initio afrontaria o sistema acusatório já que levaria o magistrado se substituiria ao órgão acusador. Também não se poderia esquecer daqueles que alegam que o recebimento da inicial do Ministério Público/Querelante corresponde a um juízo de delibação, não comportando aprofundamentos na análise das peças informativas que a subsidiam.

Com respeito aos entendimentos contrários, entende-se que a recusa da aplicação da emendatio libelli no momento do recebimento da denúncia/queixa configura um retrocesso democrático, marcado pela privatização do processo penal e pela submissão do acusado ao direito subjetivo do acusador. Ao proceder a emendatio libelli no recebimento da inicial da inicial acusatória o magistrado não estaria a se despir de sua imparcialidade. Ao contrário, entende-se que o julgador estaria (re)afirmando a sua isenção perante a causa. Isso porque a acusação apresenta uma proposta de adequação típica, mas que, ab initio, traz severas consequências para o acusado já que pode cercear o exercício de algumas de suas faculdades processuais. Explica-se: se o membro do Parquet narrar na denúncia um estelionato simples, mas pedir a condenação por um furto qualificado pela fraude, impedido estaria o acusado de usufruir, desde o início do processo, do benefício da suspensão condicional do processo. O magistrado, apesar de não possuir interesse na causa, deve zelar pela reta aplicação da prestação jurisdicional, a qual engloba a defesa dos direitos fundamentais das partes, seja ela a acusação ou a defesa. A emendatio libelli no recebimento da denúncia/queixa não antecipa a cognição do julgador, provocando, apenas o acertamento entre o fato penal (do tipo penal abstrato) e o fato processual penal (o fato concreto praticado no mundo da vida), sendo que este é diretamente influenciado por aquele, já que a alteração do primeiro faz com que se mude drasticamente o segundo, (in)viabilizando o gozo de certas faculdades processuais (AURY[9]).

Sem desconsiderar a importância de todos os métodos hermenêuticos, a exegese da norma que deve imperar nos Estado de Direito democrático é sempre aquela que se conforma à constituição. Logo, mesmo estando o art. 383, do CPP, compreendido dentro do título “Da Sentença”, o princípio penal da culpabilidade, além dos processuais penais da correlação entre acusação e sentença, do contraditório, além, e principalmente, do substantive process of law, fixam as balizas interpretativas hábeis e adequadas a demonstrar que a hermenêutica que melhor privilegia os comandos constitucionais é aquela que protege os direitos fundamentais das partes previsto no Carta Magna.

Ademais, a nova classificação jurídica dos fatos ab initio está longe de mitigar o sistema acusatório. O magistrado em nenhum momento sai do seu papel de terceiro imparcial. Ele não dá início à acusação, mantendo, portanto, a sua inércia. Contudo, uma vez provocada a jurisdição, o julgador atua no sentido de evitar o seu uso abusivo, impedindo que acusações levianas ou desconformes aos fatos narrados movimentem o aparato estatal. Aqui, destaca-se que a (re)classificação dos fatos narrados na inicial acusatória, afastaria, inclusive, a possibilidade de ocorrência do fenômeno do overcharging proveniente do sistema de commom law. Nele o órgão acusador qualifica a imputação de forma excessiva, a fim de obter maiores vantagens processuais, além de evitar, por consequência, que o acusado usufrua de certas faculdades no processo (GIACOMOLLI[10]). Isso também influencia a própria definição da competência do órgão jurisdicional, já existe a possibilidade de se inserir uma classificação jurídica mais gravosa, a fim de afastar eventuais benesses legais previstas aos crimes menos gravosos como ocorre, por exemplo, no âmbito do procedimento sumaríssimo. Isso ocorreria quando, por hipótese, o membro do MP oferecesse uma denúncia por lesão corporal grave quando os fatos narrados efetivamente se enquadrassem no art. 129, caput, do Código Penal.

Não se poderia deixar de mencionar que a nova classificação dada ao fato no ato do recebimento da denúncia/queixa poderia levar, inclusive, ao reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva em abstrato. Logo, o magistrado, nesse caso, deveria rejeitar a inicial da acusação (art. 395, do CPP), considerando que já teria ocorrido a extinção da punibilidade (art. 107, IV, do CPB).

Por fim, tem-se que o magistrado, na realização da emendatio libelli no recebimento da denúncia/queixa, não violaria o juízo de delibação. Ora, pensar que o juiz deve se apenas verificar a regularidade formal da denúncia é retornar ao paradigma liberal de Estado. Ora, o magistrado não deve ficar inerte face ao uso indevido/abusivo da jurisdição, sendo que a própria ordem jurídica lhe impõe isso ao assegurar, nos casos de coação ilegal ao status libertatis, a concessão de ordem de habeas corpus de ofício (art. 654, §2o, do CPP), o que inclusive pode ocorrer diante de abusos da acusação. O acusado não está sujeito ao direito acusador tal como sugeriria o conceito de direito subjetivo pensado pela teoria clássica do processo. No processo penal o acusado é sujeito de direitos e, no jogo processual (MORAIS DA ROSA[11]), tanto ele como o acusador possuem direito de ação, não havendo de se falar em qual dele seria o seu “dono”.

Por tudo o que se disse não há mais de se apegar a estruturas rígidas e formais do processo civil, em flagrante descompasso com a lógica do processo penal. Entender que o acusado está submisso ao direito alegado pela acusação é assumir hierarquia processual oculta nos processos criminais nos fóruns e tribunais brasileiros.  A realização da emendatio libelli no recebimento da denúncia é um avanço na busca de um processo penal adequado aos postulados constitucionais que privilegia o status libertatis, colocando o magistrado no seu lugar de direito, qual seja, o de garantidor dos direitos fundamentais das partes.


Notas e Referências:

[1] Para tanto ver a discussão travada entre Aury Lopes Jr. e Afrâniio Silva Jardim nos artigos: (i) “Teoria Geral do Processo é danosa para a boa saúde do Processo Penal. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jun-27/teoria-geral-processo-danosa-boa-saude-processo-penal. Acesso em: 23.03.2015” ; e (ii) “Não creem na Teoria Geral do Processo, mas ela existe. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jul-04/afranio-jardim-nao-creem-teoria-geral-processo-ela-existe. Acesso em 23.03.2015.”

[2] BÜLOW, Oskar Von. La Teoria de las Excepciones Dilatórias y los Presupuestos Procesales. Trad. Miguel Angel Rosas Lichtschein do orginal de 1868. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1964.

[3] Ver: CANÁRIO, Pedro. Em parecer, MPF defende prisões preventivas para forçar réus a confessar. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-nov-27/parecer-mpf-defende-prisoes-preventivas-forcar-confissoes. Acesso em: 23.03.2015.

[4] O que em verdade se exige é o preenchimento de requisites legais que Ademais, ainda em desfavor da hipótese de o Ministério Público ser o “dono” da ação penal, basta verificar que, caso ele se quede inerte face ao recebimento de peças informativas, superado o prazo legal, caberia ao ofendido, seu representante legal ou sucessores, ingressar com a ação penal privada subsidiária da pública (art. 5o, LIX, da CR; art. 29, do CPP). Não obstante possuírem caraterísticas distintas, tanto a ação penal pública quanto a privada são espécies do gênero ação penal, colocando-se, todas elas, dentro do rol de garantias fundamentais presentes na Constituição da República (art. 5o, XXXV, da CR).

[5] FAZZALARI, Elio. Istituzionidi diritto processuale. Padova: Cedam, 1992.

[6] NUNES, Dierle José Coelho. O princípio do contraditório: uma garantia de influência e de não-surpresa. In: DIDIER JR, Fredie. (Org). Teoria do Processo – Panorama doutrinário mundial. Salvador: Jus Podivm, 2007, p. 151-174.

[7] HC 241.206/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 11/11/2014, DJe 11/12/2014.

[8] ZILLI, Marcos. A admissibilidade da acusação e o fio de Ariadne. Boletim do IBCCRIM. São Paulo: n. 93, fevereiro/2015, p. 4-6.

[9] LOPES JR, Aury. Curso de Processo Penal. 10a. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 1104.

[10] GIACOMOLLI, Nereu. Reformas(?) do Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 67.

[11] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto de Processo Penal: conforme a teoria dos jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.


Sem título-5

Felipe Machado é Advogado (OAB/MG). Doutorando em Direito (PUC Minas). Mestre em Direito (UFMG). Professor de Direito Penal e Processo Penal (Ibmec). Professor de Processo Penal (Unicenter). Professor de Direito Penal (IEC/PUC Minas – pós-graduação). Professor de Processo Penal (FUMEC – pós-graduação). Professor de Processo Penal (UNIFENAS – pós-graduação). Diretor Presidente do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ).                                                                                                                                                                                                   


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