Em tempos de “destruição”, quais as possibilidades e desafios da teoria e prática decoloniais?  

08/07/2019

 Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz

Transcorrido um ano da morte de Quijano, Catherine Walsh destacava que a hidra capitalista tinha um enorme poder de regeneração, de mutação, de mudança, e, a partir do corte de uma cabeça, aparecia outra. Deste modo, salientava que, se a colonialidade de poder  tinha como gênese a América, o que poderia ser repensado depois de experiências vividas pelos governos “progressistas”?[1]

Neste sentido, necessário analisar, pensar, nomear as novas estratégias, projetos e configurações da colonialidade hoje, em que ela destacou: a) desnacionalização do Estado-nação; b) novas configurações do aparato militar-policial, de que a intervenção federal no Rio de Janeiro, a militarização das cidades na Colômbia e o novo projeto de segurança pública mexicanas eram exemplos; c) crescente aliança político-religiosa-heteropatriarcal, mesmo em governos supostamente “progressistas”, como México, Bolívia e Equador; d) nova economia extrativista do conhecimento; d) as desumanidades nas UNIversidades, com a morte das disciplinas humanísticas e sociais, de que a Global University em Cusco é uma demonstração; e) a despossessão (“despojo”) total de indígenas, comunidades negras, culturas locais, pobres das cidades e todxs alheios ao poder dos “estados corporativos e os governos, de sua política e economia”, todxs que estão lutando pela vida ante uma crescente desesperança e humanidade.

Mais que isso: os novos “perigos decoloniais”, pela essencialização da decolonialidade reduzida ao “étnico”, ocultando as “violências coloniais internas”, como as de gênero, de cooptação, do uso mesmo do comunitário e do patriarcado. Ao fim, a decolonialidade como propriedade de alguns iluminados e iluminadas,  mercantilizada, como novo “cânone de pensamento crítico” e de “retórica discursiva dentro das esferas do Estado e poder”.

A intenção-evidente- é abrir novas reflexões, a partir de um referencial que não se assume fechado, mas de um trabalho que Aníbal Quijano entendia como “dentro, fora e sempre contra”.

Daí seu chamado, anos atrás, para INdisciplinar, no sentido de[2]: a) fazer “evidente o disciplinamento, a dis­ciplina e as formações disciplinárias que se vem construindo nas ciências sociais, desde o século XIX, mas especialmente em sua institucionalização na América Latina no século XX e fazer ressaltar seu legado colonial”; b) antes que ignorar ou menoscabar as ferramentas teóricas ou con­ceitos centrais das ciências sociais, fazê-las comunicarem-se e “repensar sua utilidade ou seus efeitos sobre as relações coloniais, perguntando até que ponto estas ferramentas per­petuam a ló­gica vigente”; c) buscar modificações e ajustes às ferramentas e conceitos do pensar moderno e, quando seja necessário, também alternativas frente ao mundo moder­no/coloni­al; d) reconhecer outras formas de co­nhecimento, “particularmente os conheci­mentos locais produzidos a partir da diferença colonial e os cruzamentos e fluxos dialógi­cos que podem ocorrer entre eles e os conhecimentos disciplinários”

Se a recepção da teoria decolonial no Brasil, como já enfatizado em outras colunas deste site, tem insistido numa colonialidade sem raça, em racismo sem nominar raça e na discussão de decolonialidade sem envolvimento de gênero e sexualidades, seria importante abrir novos campos de debates.

Gênero e debates: Os novos debates sobre “escola sem partido” e “ideologia de gênero”, além da ênfase, nos grupos de extrema direita em especial, sobre papeis masculinos e femininos, naturalização de violências patriarcais e sexistas parece indicar, ao contrário do que parte da teoria crítica hegemônica de direitos humanos, que “gênero” e “sexualidade” se tornaram centrais em termos de colonialidade do poder e projetos contra direitos humanos de alta intensidade. Desta forma, questionar essa “pedagogia da crueldade” (Rita Segato) implicar verificar, juntamente, como a sexualização da raça e a racialização das sexualidades colabora para criar novos “pânicos morais” e “contra gramáticas” de resistência a formas de lutas de direitos humanos.

Neste ponto, pensar – mais que interseccionalidade clássica norcêntrica- em termos de cosubstancialidade e coimbricação, nos termos em que Maria Lugones, Yuderkis Espinosa, Ochy Curiel e- antes- Lélia González  tematizaram em termos de corpo-políticas antirracistas e antissexistas.

Yuderkis Espinosa[3], aliás, sustenta que as prerrogativas de classe, raça/etnia e hegemonia heterossexual que dividem mulheres do “Sul” e do “Norte” não somente tornam, muitas vezes, o chamado de solidaridade, mas acabam encobrindo e sendo afim aos “interesses de mulheres blanco-mestiças das burguesias nacional e ao programa global de expansão capitalista colonial”. Daí porque utilize, neste particular, a expressão “racismo de gênero”.

A partir das experiências das mulheres afro e indígenas, o “acesso sexual se vê contaminado pelo universo do dano e da crueldade- não somente como apropriação dos corpos qua territórios” senão “su damnación por el gozo expropriador” e, portanto, conquista, rapina e violação associadas ao processo de conquista ( Segato).[4]

Nesse processo de “despojo”, Rita Segato tem insistido que a categoria da colonialidade talvez não consiga retratar a nova realidade, que ela designa como conquistualidade ou “dueñidad”, com “refeudalização de territórios gigantescos”. [5]Ciudad Juárez no México e Buenaventura, como destacado por Betty Ruth Lozano Lerma, são dois exemplos atuais deste novo panorama que se vem intensificando em nossa Améfrica.

A dificuldade de discussão crítica sobre religião: O pensamento dito “crítico” e “progressista”, à exceção da problematização da “teologia da libertação”- inclusive por sua vertente de origem marxiana- reluta em tematizar, criticamente, a questão da religião, em especial aquelas não eurocentradas. Isso envolve não somente a esquerda clássica, mas também movimentos feministas/LGBT institucionais, como se percebe em relação a todo o fenômeno do feminismo islâmico, de novas teologias negras, de movimentos de discussão sexual em relação a indígenas e povos e comunidades tradicionais, em novas epistemes que podem surgir a partir das religiões de matriz afroindígenas brasileiras. As epistemologias da “macumba” ( Basilele Malomalo) e da “encruzilhada” ( Luiz Rufino), as cosmopolíticas afroindígenas, as espiritualidades não canônicas e hegemônica são alguns exemplos de novos projetos que vêm sendo ignorados pelas “epistemologias” críticas, inclusive pela dificuldade de tematizar, simultaneamente, raça, religião e gênero.

Isso, ao fim,  mostra a necessidade de tratar  estas relações em outros parâmetros: a) a religião, na modernidade colonial, se tornou a forma mais eficiente de subalternização de conhecimentos e de povos ( Maldonado Torres); b) as igrejas neopentecostais e evangélicas “literalistas” conseguiram fazer a “mímesis das tecnologias comunitárias de sociabilidade e substituir os antigos e desfeitos conjuntos por outros novos e esvaziados de seu sentido de enraizamento e história” (Rita Segato)[6]; c) certos cosmos, espiritualidades, religiosidades- ao contrário do que parte da teoria marxiana insiste- longe de ser “ópio do povo“ são disfuncionais ao projeto de desenvolvimento e do capital ( Segato) e isso talvez se associe- junto ao racismo religioso- a ojeriza a religiões de matriz afro e/ou islâmicas[7]; d) destacar, com Talal Asad, Saba Mahmood e Joan Scott como, nem sempre, secularismo tem permitido versões mais amplas de direitos humanos e que talvez tenha que se reconhecer que há um dispositivo de “sexularismo”, em termos de gênero e distinção religioso/profano.

Sexualidades dissidentes: As tensões e possibilidades de releituras críticas dos movimentos LGBTs- estes, ainda,  muito centrados nas versões masculinas, heteronormativas e brancas- a partir de feminismos negros e das experiências e problemáticas de trans e travestis ainda não vem sendo objeto de atenção, o que remete ao esforço de: a) questionar as colonialidades internas dos movimentos sociais, em especial as reproduções de sexismos e racismos; b) estabelecer novos pontos, a partir de novas realidades, vivências, “do lado de cá”, do Sul e não a partir das referências e pautas do Norte.

Roger Rios, por exemplo, há tempos vem destacando que as lutas LGBTs, mesmo as hegemônicas, invertem a “lógica das três gerações”, ao judicializar primeiro as questões previdenciárias, para somente, depois, as de direito civil ou de família.

Rita Segato, no discurso proferido na Feira do Livro de Buenos Aires[8], clamou por se criar “nossa própria desobediência”, sem confundir “Ni una menos” com “Me too”, nem com o manifesto das intelectuais francesas, pois “cada movimento e cada feminismo só pode ser construído com os elementos de sua história”, e desse lado do Atlântico (e também Pacífico), não se busca um terceiro “como árbitro indispensável das relações”, mas um mundo onde “a vincularidade é vital e pode e deve ser conservada pelo amparo que nos brinda e a felicidade que nos traz”.

Recentemente, Brenna Bhandar e Denise Ferreira da Silva[9], comentando Nancy Fraser, destacavam: a)  o quanto é “cansativo quando feministas brancas falam da ‘segunda geração do feminismo’ como se fosse o único ‘feminismo”; b) como os esquemas conceituais anglófonos compartilham o mesmo núcleo liberal, que boa parte das feministas negras e terceiromundistas identificaram, expuseram e criticam muito cedo; c) a necessidade de feministas brancas reconhecem quando se envolvem em estratégias políticas que já foram teorizadas e praticadas por feministas negras e terceiromundistas.

Neste ponto, é interessante, inclusive, verificar como, na discussão sobre o contrato sexual ( Pateman), a teoria hegemônica no Brasil, não faz o debate conjunto- que era o dos EUA- sobre o contrato de “dominação” ou “racial” (Charles Mills) e nem como as esferas do contrato e do status estão colonialmente estruturadas. Que pensar, a partir disso, sobre o contrato heterossexual, na chave explicativa de Ochy Curiel?[10]

Que avançar a partir da ideia de “antropologia da dominação”, para fazer etnografias de “nossas práticas acadêmicas, metodológicas e pedagógicas que contém a ideia de desenvolvimento, de solidariedade transnacional baseada em privilégios”?[11]

Até que ponto as discussões mantém um paradigma liberal, compatível com discussão de mercado, seja em termos de antirracismo, feminismo e lutas lgbt? Quais são as compatibilidades da descolonialidade com versões antirracistas, feministas e lgbtis com os parâmetros de mercado “de diversidades, sexualidades e raças”?

 Como as colonialidades de gênero/sexualidade são explicitadas nos movimentos institucionais feministas e LGBTs? Quais as lutas que são invisibilizadas ou ignoradas, a partir da chave explicativa hegemônica? Se nem sempre o parentesco é heterossexual ( Butler), quais as novas formas afetivo, sexuais e reprodutivas, eventualmente, podem desafiar a colonialidade das relações hetero ou lgbts? É possível ou necessário falar em “novas conjugalidades”?

O que se perde quando se abdica de uma categoria? O que significa renunciar a uma categoria (Ochy Curiel)?[12] Como o “mandato de masculinidade” impacta sexualidades dissidentes, eurocentradas ou não?[13] Que dizer sobre sexualidades dissidentes não ocidentais? Que pensar da associação queer e quilombo, a partir da tradução sudaca feita por Tatiana Nascimento[14], de “cuirlombo” ou “queerlombo”, ressignificando “itans” dos orixás, suas sexualidades e compartilhando a noção de que “um dos pilares mais rígidos e antigos do racismo diz respeito às expectativas sexuais que recaem sobre nossos corpos negros”, aquelas não apenas “hiperssexualizadantes”, mas também hiperheterocissexualizantes”?

Direitos humanos.  Centroamerica e México, mas também Colômbia e Brasil, têm mostrado novas formas de guerra, exasperação de políticas de genocídio das populações racializadas (em especial, negras), políticas de guerra de extermínio, militarização das forças de segurança (vide o orçamento do Ministério da Justiça, desde os tempos de Eduardo Cardozo), novas formas de milícias e “maras”.

E com isso, a necessidade de ressignificação de direitos humanos, em tempos de política de morte, como o faz Rita Segato, para além do “diferentes, mas iguais”, que, ao mesmo tempo, que encobre a “assimetria binária de um sujeito masculino que se pretende universal”[15], também mascara a colonialidade das relações jurídicas e sociais.

Daí sua ideia de “desiguais, mas diferentes”, com base na “estrutura explicitamente hierárquica dos mundos comunitários”, mas “radicalmente pluralista”, que abre uma rota para “um estilo próprio da politicidade das mulheres” e também racializado, em termos não hegemônicos. Desta forma, mais que uma fé “cívica” ou “estatal”, a possibilidade/necessidade de  reconhecimento da pluralidade dos “espaços e politicidades de diferente estilo que a vida comunal oferece”.  Que possibilidades surgem se, no lugar de um Prometeu acorrentado, surge o Caronte liberado de Zapata Olivella?

Ressaltaria, ainda, que o comunitário amefricano não se confunde com a comunidade de Rousseau, e o reconhecimento deste ponto permite, também, deslocar a discussão para o “lado de cá”.  Num caminho- e aqui voltando a Quijano- dentro e fora do campo estatal- e, muitas vezes, também contra, com esferas intra e extra estatais.

Um movimento que as mulheres indígenas, negras e também islâmicas têm realizado, em chaves inovadoras, a partir de outras epistemes (não necessariamente “logias”, porque a razão ocidental está, aqui, justamente em questionamento), de outras cosmosensações, de outras formas de viver, fazer e criar gramáticas, vocabulários e práxis.  De reinventar possibilidades em tempos de destruição, como consta o subtítulo da coletânea de Beatriz Nascimento. De intensificar a teoria e a práxis decolonial, a partir realmente do Sul, com novas formas de “desobediência” e não as “obediências” euro/norcentradas de sempre.

Porque- de novo, Rita Segato- para o “patriarcado, o capital e os monoteísmos fundamentalistas há uma única verdade, uma única forma de bem, um único Deus, uma única forma de futuro, uma única justiça”. [16] Contra a lógica monológica e monopólica, há que desafiar com a pluralidade e com intensidade da desobediência. E mesmo na narrativa cristã hegemônica, a humanidade surge não somente com a “queda do céu”, mas fundamentalmente com a desobediência- “se comerdes da maçã, vós sereis como deuses”.

 

Notas e Referências

[1] As citações a seguir estão em WALSH, Catherine.  Disponível em: file:///C:/Users/tr3Reflexiones en torno a la colonialidad/descolonialidad del poder en América Latina hoy. Una carta a Aníbal Quijano.  00950/Downloads/Reflexiones%20en%20torno%20a%20la%20colonialidad%20-%20Carta%20a%20Aníbal%20Quijano.pdf

[2] WALSH, Catherine, SCHIWY, Freda & CASTRO-GOMÉZ, Santiago. Introducción. IN: Indisciplinar las ciencias sociales. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar/ Abya Yala, 2002, p. 13-14.

[3] ESPINOSA MIÑOSO, Y. Etnocentrismo y colonialidad en los feminismos latinoamericanos: Complicidades y consolidación de las hegemonías feministas en el espacio transnacional. Revista Venezolana de la Mujer, 2010, 14(33), 37-54. Vide, também: http://revistasolar.org/wp-content/uploads/2017/07/9-De-por-qu%C3%A9-es-necesario-un-feminismo-descolonial...Yuderkys-Espinosa-Mi%C3%B1oso.pdf

[4] SEGATO, Rita. Manifiesto en cuatro temas. Disponível em: https://ctjournal.org/index.php/criticaltimes/article/view/30

[5]  Idem.

[6] Idem.

[7] Idem.

[8] https://www.infobae.com/cultura/2019/04/25/el-discurso-desobediente-y-feminista-de-rita-segato-en-la-feria-del-libro-2019/

[9] https://www.geledes.org.br/sindrome-cansei-da-feminista-branca-uma-resposta-nancy-fraser/

[10] CURIEL, O. La nación heterosexual. Análisis del discurso jurídico y el régimen. Bogotá, Colombia: en la frontera- Brecha Lésbica, 2013.

[11] CURIEL, O. Construyendo metodologías feministas desde el feminismo decolonial. En: I. MENDIA AZKUE, M. LUXÁN, M. LEGARRETA, G. GUZMÁN, I. ZIRION, & J. AZPIAZU CARBALLO (Edits.), Otras formas de (re)conocer. Reflexiones, herramientas y aplicaciones desde la investigación feminista. Donostia, País Vasco: Universidad del País Vasco/ HEGOA, 2015, pp. 45-60. Obtenido de http://publicaciones.hegoa. ehu.es/assets/pdfs/329/Otras_formas_de_reconocer.pdf?1429005444

[12] CURIEL, Ochy. Género, raza y sexualidad, debates contemporâneos. Disponível em: https://www.urosario.edu.co/Subsitio/Catedra-de-Estudios-Afrocolombianos/Documentos/13-Ochy-Curiel---Genero-raza-y-sexualidad-Debates-.pdf

[13]  SEGATO, Rita. Manifiesto en cuatro temas. Disponível em: https://ctjournal.org/index.php/criticaltimes/article/view/30

[14] https://palavrapreta.wordpress.com/2018/03/12/cuierlombismo/

[15]  Idem.

[16] Idem.

 

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