Em defesa da dogmática jurídico penal: O Direito Penal entre o real e o racional

09/03/2016

Por Victor Rodrigues da Silva Costa - 09/03/2016

O fundamento e a legitimidade do direito de punir do Estado não são, de todo modo, autoevidentes. Como bem salientou Jiménez de Asúa em seu monumental Tratado, não basta afirmar que o Direito Penal sempre existiu para que seja considerado justo, ou tampouco lícito. Esta foi a conclusão dos partidários do tecnicismo jurídico, por exemplo, dentre os quais se pode citar Arturo Rocco e Vincenzo Manzini. Pretendiam eles afastar do domínio dogmático qualquer investigação filosófica, considerada supérflua ou ainda, danosa à resolução de problemas práticos atinentes ao direito posto.[1] A pena não se justificaria por ideias filosóficas, mas sim por critérios de necessidade e utilidade.

Rocco afirmava ser função da ciência jurídico penal “la elaboración tecnicojurídica del derecho penal positivo y vigente, el conocimiento científico y no simplemente empírico del sistema de derecho penal[2], relegando à dogmática uma tarefa descritiva e expositiva dos princípios fundamentais do direito positivo, em sua coordenação lógica e sistemática.

Adotar uma concepção como esta é o mesmo que deslocar o ônus do controle da racionalidade do sistema penal do jurista para o legislador, como ato político, com todas as consequências daí advindas. Explica-se. Uma singela amostra é a adoção do critério do bem jurídico apenas como parâmetro interpretativo da lei penal, como propuseram os seguidores da chamada Escola de Baden.[3] Ao legislador seria livre escolher quais os bens jurídicos seriam merecedores de tutela penal, perdendo estes qualquer eventual potencialidade crítica de legitimidade da incriminação que pudessem apresentar. No entanto a realidade mostra ser tendência dos manuais da parte especial a indicação do objeto de tutela indicado pelos congressistas, sem nenhum questionamento. Em que pese o processo legislativo ser justificado pelo procedimento formal-constitucional, o controle material de constitucionalidade não existe à toa.

A situação se torna ainda mais problemática quando, como se vê atualmente, a sanha punitiva dos meios oficiais de controle passa a considerar o garantismo penal como privilégio ou “coitadismo” em relação a um acusado. É tendência, do senso comum, considerar os discursos midiáticos, ligados ao desprezo pela pessoa humana, como substitutos aos mais de 200 anos de história e de luta da dogmática penal contemporânea por um direito penal liberal e racional.

Nesse sentido, há muito se nota que o direito penal real – praticado diariamente tanto por meio da política criminal, no Congresso Nacional, quanto na prática diuturna do foro – já se encontra muito afastado daquele direito penal racional, pensado pela dogmática crítica, com todas as garantias e prerrogativas a ele inerentes.

A analogia aqui operada remonta à Hegel. No conhecido prefácio aos Princípios da Filosofia do Direito, o filósofo alemão afirma: “o que é racional é real e o que é real é racional[4]. A filosofia parte, assim, da convicção de uma consciência livre de preconceitos, tendo por missão conceber o que é, e porque o que é, a razão.[5] O pressuposto fundamental para que assim o seja não parece estar sendo respeitado em relação ao Direito Penal.

Desvela Hegel os perigos da subjetividade no Direito. Segundo ele, o Direito e a realidade jurídica delineiam-se por meio do pensamento, adquirindo assim sua forma racional, isto é, universal e determinada. No sentimento e na subjetividade é onde se circunscreve o arbítrio, fazendo com que a forma pela qual o Direito assume na lei e no dever se transformem em letra morta. O Direito é a razão em cada coisa, não permitindo que o subjetivo se degenere em particularismos. A lei é a “pedra de toque com que se distinguem os falsos amigos e os pretensos irmãos[6].

Tais particularismos, ou decisionismo na expressão de Luigi Ferrajoli, vislumbram-se tanto no processo legislativo, quanto no cotidiano do processo penal. No primeiro, encontram-se as representações do direito penal de autor, a criminalização de atos imorais ou meros fatos antissociais, a criação de impossibilidades fáticas de prescrição, a restrição ou eliminação de meios recursais e o expansionismo desmesurado quanto às funções da punição.[7] No segundo, o caráter não cognitivo, mas potestativo do juízo e da aplicação da pena. Além da desnaturação das medidas cautelares, utilizadas como forma de coerção[8], transforma-se a decisão em ato de poder quando lhe faltam elementos empíricos precisos e suficientes para a condenação. A racionalidade dá lugar à subjetividade, sob o suposto discurso de defesa social.[9] A aparente impessoalidade do julgador cai por terra.

O desconforto existente entre a desproporção do trabalho científico da dogmática e suas consequências práticas, denunciada por Claus Roxin em 1970, ainda hoje permanece.[10] É certo que o papel estático da doutrina em estruturar sistematicamente os conceitos fundamentais da disciplina, a fim de garantir sua aplicação racional e uniforme já se encontra há muito esgotado. A adequação de uma decisão ao caso concreto parte da aplicação dos princípios normativos político criminais à matéria jurídica e, em consequência, aos dados empíricos.[11] Trata-se de não reduzir a dogmática à meras abstrações sem sentido, alheias à realidade, mas sim de pensar a dogmática a partir de um problema real.

Note-se que não se prega o abandono completo do pensamento sistemático, até porque há uma vinculação constitucional de que a responsabilização criminal esteja sempre vinculada à lei. A legalidade, nesse ponto, imporá ao pensamento preocupado com os casos concretos, todos seus corolários, como a proibição da analogia in malam partem, da criminalização praeter legem ou ainda por costumes. Como sintetiza Roxin: “El mandado de precisión de la ley le proporciona de antemano la preeminencia al pensamiento sistemático. No obstante, a menudo se pasa por alto que es fructífera y posible hasta un cierto grado una síntesis entre el pensamiento sistemático y el problemático[12]

É a partir deste encadeamento entre Constituição, Direito Penal e realidade fática que a dogmática contemporânea deve se construir, sempre tendo em vista a redescoberta da racionalidade perdida do sistema penal liberal. Os princípios e garantias fundamentais, na linha do que defende Ferrajoli, proporcionam a “tutela da pessoa contra a arbitrariedade[13]. O jurista, enquanto concretizador do Direito, assegura a aplicação de tais axiomas ao caso concreto. Enquanto não seja possível conceber algo melhor que o Direito Penal, para lembrar Gustav Radbruch, deve-se conviver com ele. Melhor, ao menos, que seja controlado, racional e democrático ou, em outras palavras, que o real seja o racional!


Notas e Referências:

[1] JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Tratado de Derecho Penal: Filosofía y Ley Penal. Tomo II. Buenos Aires: Editorial Losada, 1950, p. 13.

[2] ROCCO, Arturo. El problema y el método de la ciencia del  Derecho Penal. Bogotá: Editorial Themis, 1982, p. 15.

[3] Cf. FIGUEIREDO DIAS, Jorge. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 64.

[4] HEGEL, G. W. F. Princípios de Filosofia do Direito. Trad. Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores, 1990, p. 13.

[5] HEGEL, Princípios de Filosofia..., p. 15.

[6] HEGEL, Princípios da Filosofia..., p. 9.

[7] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 4ª ed. Trad. Juarez Tavares et. all. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 45.

[8] Vide a proposta número 9 das Medidas contra a corrupção do Ministério Público Federal. Pretende-se alterar o art. 312 do Código de Processo Penal, a fim de criar uma hipótese de prisão preventiva para evitar a dissipação do dinheiro ilícito ganho com crimes. Disponível em http://www.combateacorrupcao.mpf.mp.br/10-medidas

[9] FERRAJOLI, Direito e Razão..., p. 46.

[10] Cf. ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 6.

[11] ROXIN, Claus. Normativismo, política criminal e dados empíricos na dogmática do Direito Penal. In. ROXIN. Claus. Estudos de Direito Penal. 2ª ed. Org. e Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 61.

[12] ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Tomo I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña; Miguel Díaz y García Colledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2001,, §7º, p. 216.

[13] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão..., p. 38.


Victor Rodrigues da Silva Costa. . Victor Rodrigues da Silva Costa é Mestrando em Direito Penal pela UFMG. Bacharel em Direito pela PUCPR. Advogado criminalista.. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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