Por Gabriela Gomes Soncini e Jhonatan Morais Barbosa - 23/04/2017
1 Introdução
Nos últimos anos estamos presenciando uma avalanche de espetáculos dantescos no sistema carcerário brasileiro, e neste enredo genocida em que vivemos há uma discussão que merece um espaço maior e precisa muito ser colocado em destaque, são vozes que sustentam os pilares da democracia, do Estado de Direito e das garantias ainda não perdidas, e que lutam cada vez mais por acontecimentos dignos na realidade prisional: A condição da mulher encarcerada no Brasil. Há de se considerar que o cárcere é um ambiente que, por si só, favorece a violação de direitos. Não estamos falando apenas da perda da liberdade, mas de todo um enredo e uma condição de vulnerabilidade que torna a prisão um espaço de despersonificação e rotulação constante. O indivíduo que ali está, perde a cada dia a capacidade de autodeterminação. Este processo revela a prisão como um espaço de “mutilação do eu” de etiquetamento social – situação na qual a pessoa perde o próprio conceito de identidade.
Ocorre, que as mulheres, enquanto seres docilizados e estigmatizados por toda uma sociedade carrega consigo uma maior incidência de objetivos moralizadores; fato que as tornam alvo de maiores preconceitos e desprezo pelo Estado. Perceber a mulher no sistema penitenciário é criar um paradoxo social, pois a ela sempre coube o cuidado com o lar, a proteção da família, a fragilidade, a doçura, como se apenas lhe pertencesse os ideais moralistas e a boa conduta. É inadmissível que um ser tão oprimido e submisso, diante de uma sociedade patriarcal, venha a descumprir regras (LIMA, 2006).
“O histórico de evolução das formas punitivas, em uma visão ocidental, tendo elas cunho estatal ou privado, sempre foi preordenado e estudado a partir da lógica da transgressão masculina. Considerando que a socialização feminina apresenta caráter cerceador e docilizador, as transgressões às normas legais cometidas por mulheres representam número inexpressivo em relação às cometidas pela parcela masculina”[1].
As mulheres já chegaram a ser inimputáveis pelo simples fato de sua condição feminina, e aquelas que violavam as leis eram enviadas para as casas de correção da igreja católica e todo encargo punitivismo era aplicado pela própria igreja. Foi só a partir do século XX onde teve um grande avanço da atuação feminina na sociedade como um todo e principalmente nas condutas delituosas que o Estado começou a intervir na execução da pena das mulheres desviantes.
Desde as casas de correções da igreja católica até os dias de hoje as mulheres sempre tiveram um NÃO favorecimento quanto ao cumprimento das penas a elas submetidas. O Brasil mesmo sendo partícipe de diversos tratados internacionais que versam sobre temas de direitos humanos e direitos das mulheres, permanecem inertes diante de tantas violências relacionadas às mulheres em condição de cárcere.
A prisão configura um ambiente opressor e no que tange ás mulheres acaba por agravar ainda mais esta condição. São tamanhas as violações decorrentes da falta de estrutura para atender as mínimas necessidades do gênero. Neste diapasão podemos citar quanto o instituto da visita íntima, as necessidades ligadas à gestação, maternidade e as condições de higiene e salubridade a elas impostas.
É importante trazer a baila que o sistema carcerário discrimina a condição das presas enquanto mulheres e a vulnerabilidade em que por vezes se encontram, diante da necessidade que a natureza feminina apresenta. Consoantes informações do Departamento Penitenciário Nacional existem em torno de 60 presídios no país destinados somente à detenção de mulheres. Nos demais, que englobam a maioria, não há um espaço adequado para amparo e tratamento voltado para assegurar a dignidade contida em nossa Constituição Federal e nem tampouco se pensar em uma futura ressocialização.
As políticas públicas e penitenciárias foram pensadas pelos homens e para os homens. As mulheres são, portanto, uma parcela da população carcerária situada na invisibilidade, suas necessidades por muitas vezes não são atendidas, sua dignidade é constantemente violada. O poder público oferece a elas, um pacote padrão, igualando suas realidades com a dos homens, as colocando em situações precárias.
A mulher então, diante sua condição de submissão, opressão e estigma que a acompanha por séculos, é apresentada a um tratamento prisional distinto ao dos homens – que também são submetidos às mazelas do sistema carcerário e a ausência de vontade governamental no trato dos problemas penitenciários, mas se faz pertinente apontar as peculiaridades e necessidades condizentes com seu biológico. Cada fato ou delinquente possui peculiaridades dependentes de um tratamento diferenciado (CASTRO, 2010).
Diante do descumprimento de regras constitucionais na prática prisional brasileira, dele decorre a discriminação e opressão da mulher encarcerada, porquanto, conforme explica Castilho (2007), citando GARCIA: “... a prisão para a mulher é um espaço discriminador e opressivo, que se expressa na aberta desigualdade do tratamento que recebe, no sentido diferente que a prisão tem para ela, nas consequências para sua família, na forma como o Judiciário reage em face do desvio feminino e na concepção que a sociedade atribui ao desvio”.[2]
2 A situação do sistema carcerário feminino brasileiro
De fato, o sistema carcerário foi construído sob a lógica masculina, porém nos últimos anos houve um aumento muito grande na população carcerária feminina, de acordo com a INFOPEN- MULHERES esse aumento foi de “567,4% de 2000 a 2014”,[3] chegando ao número de 37.380 mulheres encarceradas dando ao Brasil o 5º lugar no Ranking Mundial. Em geral as mulheres são jovens, possuem filhos, são responsáveis pelo sustento familiar, apresentam um índice baixo de escolaridade e exercem até o momento da prisão atividades informais, na sua grande maioria envolvida com o tráfico de drogas. Importante salientar que a criminalidade combatida pelo Estado possui fundos sociais. Não é por nada que os crimes que representam a maior parcela da população carcerária no Brasil seja o de tráfico de drogas, furto ou roubo.
As condições precárias em que são submetidas refletem diretamente na má-gestão e na corrupção presentes dentro do sistema penitenciário como consequência de políticas estatais. As apenadas que ali estão dispostas ingressam com um quadro bastante delicado em sua maioria. Algumas, já grávidas, adentram a penitenciária em estados lamentáveis de saúde - advindas de uma classe baixa e periférica, em sua maioria- necessitada de um tratamento médico, muitas vezes já possuem doenças sexualmente transmissíveis – DSTs, outras tantas nunca realizaram um pré-natal, ou são dependentes químicas.
Quando iniciam suas vidas no cárcere, encontram dificuldades em receber atendimento médico preventivo, e enfrentam questões relacionadas ao parto, em inúmeros casos dando a luz sem qualquer atendimento e estrutura, dentro das celas; pois os policiais e carcereiros preferem se abster. Nota-se como a mulher é vista socialmente, ainda que dentro de um estabelecimento a margem e esquecido pelos cidadãos “de bem”, que não enxergam essa estrutura como um instituto que também faz parte da sociedade e necessita de investimentos.
A partir dessa previsão, podemos problematizar questões que consubstanciam o enraizamento do estigma social direcionado à mulher e adjetivos que não poderiam “escapar” de suas reputações, desta forma traduzindo e reforçando as desigualdades de gênero. Um exemplo de moralidade imposta a mulher será caracterizada pelo instituto da visita íntima nos estabelecimentos prisionais, enquanto para os homens essa modalidade é permitida desde 1984 pela “Lei de Execuções Penais art. 41, X”,[4] para as mulheres foi implementada apenas em 1999 e regulamenta pelo Programa de Visita Íntima para Mulheres Presas, através da resolução 1/99 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
Mesmo assim o legislador ainda encara esse feito nos estabelecimentos prisionais como uma regalia e não um direito, “Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, a porcentagem de mulheres que recebem a visita íntima é baixíssima – apenas 9,68% das encarceradas. Um percentual significativo afirma não receber por ser muito difícil de conseguir autorização dos estabelecimentos prisionais. Essa obstrução da visita mostra, senão, um abuso de poder, sob o pálio de um protecionismo discriminatório notadamente sexista”.[5]
Em grande maioria o discurso produzido pelos diretores dos estabelecimentos prisionais para explicar o motivo da diferença entre homens e mulheres no tocante a visita íntima, é de que as mulheres acabam engravidando e tem necessidades sexuais diferentes dos homens, tendo como sustentáculos argumentos de que a maioria das mulheres encarceradas não tem parceiros. Em razão disso, a realidade das mulheres jogadas ao ineficiente sistema prisional faz com que elas sejam criminalizadas não só por sua conduta ilícita como também estigmatizadas pela inadequação ao comportamento esperado.
Conveniente apontar que, as maiorias das encarceradas sofrem um processo de desestruturação diário. Muitas deixaram seus filhos com familiares, e outras nem isso possuem. O abandono em que elas se encontram é notório, seja pela falta dos filhos, seja pela ausência de seus companheiros, seja por não receberem ninguém no horário de visitas.
Nesse sentido, nosso papel não é o de concordar, julgar ou estabelecer discordâncias com o sistema, bem como com as condutas das presidiárias. A compreensão de que estamos inseridos num sistema social que estabelece normas, regras e modelos de comportamentos como corretos e compatíveis com o ordenamento atual, faz com que possamos entender somente – e não julgar – os reais motivos de tamanhas leis e sanções, a fim de manter a harmonia e a ordem social. (ROUSSEAU, 1986).
Também presenciamos uma parcela de juízes, operadores do direito e até mesmo o legislador perpetuar e colonizar a penalidade de prisão como sendo a solução dos vários problemas, mantendo todo sistema prisional como mecanismo de controle de classe, raça e gênero, onde só se pune os mais fracos.
3 Necessidades e condições no sistema prisional feminino
As necessidades ligadas à gestação e maternidade pode-se constatar que também o Estado é negligente perante as mulheres presas, o referido §2 do Art. 83 da Lei de Execuções Penais diz “Os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade”,[6] porém a realidade no cárcere brasileiro é outra.
Segundo relatório da Infopen 2014 apenas 34% das unidades femininas no Brasil existe celas ou dormitórios adequados e condicionados para mulheres gestantes, em unidades mistas o número cai para 6%. Segundo a Organização Mundial de Saúde e o Mistério da Saúde a amamentação deve ser ofertada no mínimo durante os seis primeiros meses de gestação, para que ela possa ter garantidas importantes fontes de nutrientes que são fundamentais para seu desenvolvimento.
As condições e a falta mínima de garantias fundamentais assolam o cenário carcerário feminino, e perante este desrespeitoso acontecimento podemos citar o caso da Elisângela Pereira da Silva, que foi algemada pelo pé e pela mão após o parto na Santa Casa, em São Paulo no início de 2012. Em outubro de 2015 na Penitenciária feminina Talavera Bruce no Rio de Janeiro foi à vez de Bárbara Oliveira de Souza passar momentos de condições desumanas e que fere um dos fundamentais princípios constitucionais, que é a dignidade da pessoa humana, em estágio avançado de parto e pedindo por ajuda um bom tempo acabou dando a luz sozinha na solitária que é um local destinado ao isolamento, muito comum nos estabelecimentos prisionais, só algum tempo depois de ter seu bebê sozinha na cela é que foi conduzida a um hospital, porém quando retornou foi direcionada novamente ao isolamento, e seu bebê a um abrigo municipal.
São inúmeros os episódios de indignidade que ofendem as garantias mínimas das mulheres mães no cárcere brasileiro, as mudanças deveriam ser reclamadas com mais compromisso e responsabilidade perante o Estado de Direito, porém a verdade é que poucos são aqueles que vivem em um chamado Estado de Direito Constitucional, na concepção do mestre Juarez Cirino dos Santos, o único direito estabelecido para aqueles que caíram por uma mazela da vida nas entranhas do sistema prisional é o Estado de Polícia, ou Estado de Exceção.
O que Bárbara e Elisângela passaram provoca uma sensação de total ruptura com o mínimo essencial que torna a vida humana possível em sociedade, à violência contra mulheres mães no cárcere não é algo novo, são enraizadas nas desigualdades de gêneros fundadas no machismo patriarcal que criaram um sistema de sujeição subordinação e dominação da mulher, capaz de considerar natural situações como esta.
Nesse arrolar de desespero que é o cárcere encontramos diversas identidades que estão vivenciando a mesma experiência, umas estão ali pela primeira vez, outras acostumadas com vida delituosa, porém como ressalta Espinoza “As interações no cárcere, mesmo feminino, se reproduzem pela regra do medo, ou seja, a doutrina de prêmios e castigos é reconstruída na sua versão mais perversa, visto que não se apela ao estímulo, mas à coerção, para produzir alterações na conduta das pessoas. A disciplina converte-se então em mecanismo justificado para o incremento do sofrimento”.[7]
As mulheres encarceradas também precisam de atenção no anseio pessoal, mulheres são mulheres dentro ou fora do cárcere. Isso significa que a mulher encarcerada deve ter oportunidade e condições para cuidar de si e sua beleza, fazer o cultivo da beleza é essencial e universal fora ou dentro do cárcere. Em alguns estabelecimentos prisionais chegam a ser feitos concursos de beleza entre as presas, inclusive com jurados que fazem parte da administração prisional, porém ganham o concurso àquelas que têm condições de manter um padrão de beleza dominante, com unhas bem feitas e cabelos bem cortados.
Outra problemática é que há uma deficiência por parte do Estado em disponibilizar nos sistemas prisionais materiais de higiene pessoal essenciais às mulheres, como absorventes íntimos e schampoo, poucas são as presas que são atendidas por ginecologista e outro profissional da saúde, ficando a mercê nessas condições em um cenário desolador, e nessa lógica Nana Queiroz diz “É fácil esquecer que mulheres são mulheres sob a desculpa de que todos os criminosos devem ser tratados de maneira idêntica. Mas a igualdade é desigual quando se esquecem as diferenças. É pelas gestantes, os bebês nascidos no chão das cadeias e as lésbicas que não podem receber visitas de suas esposas e filhos que temos que lembrar que alguns desses presos, sim, Menstruam”.[8]
As mulheres e suas necessidades são literalmente esquecidas pelos próprios sistemas carcerários, suas especificidades de gênero são ignoradas e o Estado esquece-se de que elas precisam de absorventes, e até mesmo papel higiênico. Nos presídios mais precários chagam a utilizar miolo de pão velho, amassando para que fique no formato de um O.B e colocam dentro da vagina para conter o fluxo menstrual, situações como esta é comum pelo Brasil a fora, muitos dos itens de higiene pessoal é de responsabilidade da própria detenta, ou seja, se os familiares a levam.
Mesmo o Brasil participando de tratados e convenções internacionais dotados de cumprimento e respeitos às garantias fundamentais, não se pode esperar muito, pois toda a pretensão vinda em relação aos direitos humanos tende ao fracasso, a preocupação de sistematização e efetivação dos direitos fundamentais ou então chamados por Ferrajoli “Lei dos mais fracos”[9] é de responsabilidade do Estado, e esse nada faz.
Nessa miséria estão nossas mulheres, merecedoras de um mínimo existencial de dignidade, com isso João Marcos Buch diz:
“Num céu de tempestades, os raios das prisões talvez sejam os que mais racham e ferem nosso país. A mulher, nessas tormentas, é a que mais sofre. Que então ao menos se permita a ela que continue sendo mulher, linda mulher, no sentido mais profundo e histórico que isso significa. É assim que se resgata a dignidade humana, é assim que se resgata a dignidade de toda uma nação”.[10]
Notas e Referências:
[1] Correa Osório, Fernanda. Gigante Albuquerque, Laura. Assis Goulart, Domenique. O Sistema prisional construído sob a lógica masculina e as violações contra a mulher em situação de cárcere. Pág. 6. Boletim IBCCRIM fevereiro 2017.
[2] GARCIA, Carmen Antony. Mujer y cárcel: el rol genérico em la ejecución de la pena. In: OLMO, Rosa dei (coord.). Criminalidady criminalización de La mujer em La región andina. Caracas/Venezuela: Nueva Sociedade, 1998.
http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leisjurisprudencia/59/sistemacarcerario-brasileiro-a-ineficiencia-as-mazelas-e-o-213019-1.asp
[3] Relatório Infopen Mulheres, Jun 2014. Departamento Penitenciário Nacional/ Ministério da Justiça.
[4] Lei Execuções Penais, Art. 41, X.
[5] kert, Kellen. É urgente regulamentar a visita íntima das presas em nível nacional. Junho de 2016.
[6] Lei de Execuções Penais, Art. 83, §2.
[7] ESPINOZA, Olga. A mulher encarcerada em face do poder punitivo. IBCCRIM: São Paulo, 2004.
[8] Queiroz, Nana. Presas que menstruam. Editora Record, 2015.
[9] Ferrajoli, Luigi. Garantismo, Uma discussão sobre direito e democracia. Prefácio. Editora Lumen Juris.
[10] Marcos Buch, João. A mulher que está encarcerada, março de 2015.
http://justificando.cartacapital.com.br/2015/03/26/a-mulher-que-esta-encarcerada/
. Gabriela Gomes Soncini Possui graduação em Pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2012), tem experiência na área da educação, com ênfase em supervisão escolar. É acadêmica da 6ª fase do Curso de Direito da Faculdade Estácio em São José, Santa Catarina. .
. Jhonatan Morais Barbosa é acadêmico da 5ª fase do curso de Direito da Faculdade Estácio em São José, Santa Catarina. É acadêmico associado da AACRIMESC - Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina. . .
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