Elemento subjetivo da interpretação judicial

02/03/2016

Por Samira Schultz Mansur – 02/03/2016

A interpretação tem como objeto as normas, como sujeito o intérprete e como resultado a própria interpretação. Seja ela de conteúdo escrito ou falado, vale-se de considerações gramaticais, tratando de descobrir o sentido próprio das palavras; lógicas, ao não infringir o raciocínio argumentativo; histórico, pelo estudo do contexto no qual ocorreu a situação a ser interpretada; objetivo, visando o nexo causal do fato. Todas essas atribuem valores a causa interpretada e auxiliam a relacionar a “parte" com o “todo”, mantendo a correspondência e a harmonia entre ambos. Ocorre que por trás de cada teoria e método interpretativos encontra-se velada uma tendência filosófica e política do intérprete, seja ele o legislador, o advogado/professor ou o juiz, os mais qualificados intérpretes quando se trata de lei distinguindo respectivamente as interpretações legislativa, doutrinária e judicial (Couture, 1994).

Na interpretação de um juiz, há elementos específicos que se apresentam em paralelo ao desenvolvimento da análise dos fatos. Podem-se citar os elementos: confiança, responsabilidade, ética, compromisso, praticidade, época, objetivo e subjetivo, que serão identificados a seguir de forma sucinta, segundo Pargendler (2013). Elemento confiança: arroga ao juiz uma interpretação que corresponda à expectativa de quem agiu no pressuposto de que lhe era lícito fazê-lo. Elemento responsabilidade: confere ao juiz uma interpretação diferente das outras, uma vez que ele transforma a vida das pessoas, já que decide se o réu será preso ou não, se a propriedade será mantida ou perdida, se os litígios familiares serão resolvidos de um modo ou de outro. Elemento ética: exige uma solução universal a que estejam sujeitos todos os casos da mesma espécie. Elemento compromisso: requer o atendimento à lei, à doutrina e à jurisprudência. Elemento praticidade: traduz-se na obrigação de decidir à luz de circunstâncias peculiares. Elemento época: é a influência advinda do direito consuetudinário. Elemento objetivo: podendo as palavras ter mais de um significado, o sentido apreendido por quem escutou pode não ser aquele pretendido por quem falou. Elemento subjetivo: o sujeito/intérprete é o homem/mulher no entanto o juiz é o homem/mulher junto de circunstâncias que abarcam sua história de vida, convicções, sentimentos, preconceitos, vaidades, vícios de comportamento, etc.

Nota-se que esse último elemento parece ser o precursor de todos os outros que conduzem à interpretação judicial, uma vez que com a subjetividade ela recebe os resquícios da personalidade do intérprete. Frise-se que a interpretação é um ato cognitivo que considera, analisa e pondera alegações e provas produzidas pelas partes, vale dizer, as questões de fato e de direito deduzidas no processo e cujo resultado é o alicerce do julgamento do objeto litigioso (Watanabe apud Didier, 2015). Surgem por sua vez diversos tipos de juízes: o funcionário, para quem seu ofício é aplicar a lei da maneira mais fácil e simples; o burocrata, que não tem aptidão para processar ações e proferir sentenças; o justiceiro, ser imaturo ou psicopata, que vive no universo de suas fantasias; o estrela, empenhado em ser notícia diária e nisso tem sucesso graças a suas surpreendentes decisões (Francesco Carnelutti cita que “quanto mais notário menos juiz”); o político, aquele que se presta a ser instrumento de interesses políticos; o bom, sem qualquer compromisso com o ordenamento jurídico e que faz favores com recursos alheios; o individualista, quem a pretexto da independência funcional age com desprezo à jurisprudência dos tribunais; mas também, o justo, esclarecido o suficiente para saber que a tarefa do juiz não consiste só em aplicar a lei, mas em fazer justiça de acordo com a lei e inclusive apesar dela e até na sua ausência, embora nunca contra ela (Nieto apud Pargendler, 2013; Pargendler, 2013).

Haja vista os caracteres supramencionados é de suma relevância destacar que incumbe ao juiz assegurar às partes igualdade de tratamento, prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça, indeferir postulações meramente protelatórias, determinar todas as medidas que assegurem o cumprimento da ordem judicial, entre outras disposições expressas no artigo 139 (Novo CPC). Afinal, na concepção de Calamandrei (apud Dalari, 2007, pag. 61), não se conhece "qualquer ofício em que, mais do que no de juiz, se exija tão grande noção de viril dignidade, esse sentimento que manda procurar na própria consciência, mais do que nas ordens alheias, a justificação do modo de proceder, assumindo as respectivas responsabilidades". Acrescente-se a essa ideia a de que um julgador só poderá ser justo se não for subserviente de ninguém e de nada, até mesmo da lei, ou seja, se for independente (Dalari, 2007) na verdadeira acepção da palavra, tendo como corolário a efetivação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Mas qual a conduta para obtenção dessa independência? Imparcialidade acrescida de valor moral.

Dessa forma, o pensar de modo crítico e o conhecimento aprofundando da causa que se julga irão impulsionar a decisão livre e justificada, uma vez que a raiz do fato está revelada e compreendida. É preciso primeiro compreender e aproximar-se genuinamente da situação em foco para poder julgar. Parafraseando Bacon, deve-se ler -  entenda-se aqui não apenas a leitura no sentido literal, mas o entender de um fato - , não para contradizer ou refutar, para acreditar ou admitir, para achar assunto de conversa ou discurso, mas para pesar e considerar, pois uma boa história pode ser estragada por um mau narrador (Adler e Doren).

É lógico que há outros caminhos a serem seguidos e respeitados durante a interpretação judicial, conforme os princípios constitucionais expressos no artigo 5º, como da isonomia, legalidade, inafastabilidade do poder judiciário, inadmissibilidade de prova ilícita, presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa, entre outros, porém, é a imparcialidade com moralidade, que parece ser a matriz da maioria dos outros princípios. Basta lembrar a imagem da deusa grega da justiça - Themis – a qual se mostra com uma venda nos olhos, traduzindo a imparcialidade, a fim de que todos sejam tratados com as mesmas condições de equidistância da justiça; com uma espada, representativa da força coercitiva do Estado-juiz que age obedecendo aos preceitos constitucionais e em prol de sua função pacificadora de conflitos; com uma balança, indicativa do tratamento isonômico a todos, na medida de suas diferenças e conforme as normas; e pelo fato de ser mulher, representando a sensibilidade da justiça.

Ao se deparar com o livro de orações do criador do período oratório na língua latina, Marco Túlio Cícero, encontram-se os seguintes dizeres: "Quousque tandem, Catilina, abutére nostra patientia? Quamdiu estiam iste tuus furor eludet nos? Ad quem finem audácia effrenata sesejactabit?…”. Da tradução temos: "Até quando enfim, Catilina, abusarás de nossa paciência? Por quanto tempo ainda este teu rancor zombará de nós? Até que ponto esta audácia desenfreada se gabará?…”

Quem Cícero colocaria hoje no lugar de Catilina?


Notas e Referências:

ADLER, Mortimer J.; DOREN, Charles Van. A arte de ler. 277p. Tradução de Inês Fortes de Oliveira, do original How to read a book. 1972.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Obra coletiva de autoria da Revista dos Tribunais.15 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 269 p.

COUTURE, Eduardo. Interpretação das leis processuais. Rio de Janeiro: Forense. 1994.

DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva. 3º ed. 2007. 166 p.

DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm. 17º ed. 2015. 786 p.

PARGENDLER, A. A interpretação judicial. Justiça & Cidadania. 153º ed. maio 2013. p. 32-35.


Samira Mansur. Samira Schultz Mansur é Doutora em Neurociências (UFSC), Professora de Anatomia Humana (UFSC), Mestre em Ciências do Movimento Humano (UDESC), Bacharel em Fisioterapia (UDESC), graduanda em Direito (UNISUL). Acesso para o currículo lattes:  http://lattes.cnpq.br/8728925060560002. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

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