ELEIÇÕES: DEEM A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR E A DEUS O QUE É DE DEUS

26/10/2020

O Evangelho de Mateus traz uma curiosa passagem no capítulo 22, do versículo 15 ao 22[1]. Os fariseus e os partidários do Rei Herodes, ansiosos para apanhar Jesus em alguma contradição que descredibilizasse a sua imagem de sábio Mestre, o indagaram: “Dize-nos, então, o que pensas: É lícito ou não é, pagar imposto a César?”. Jesus, ao perceber a maldade em seus corações, pediu que lhe fosse entregue a moeda do imposto e indagou: “De quem é a figura e inscrição nesta moeda?” Eles responderam: “É de César”. Eis que, magistralmente, Jesus disse: “Pois deem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.

Deus representa o Divino, o Supremo Bem. As religiões possuem o papel de nos religar ao Sagrado. São pontes de congregação dos crentes na busca do sobrenatural. É o caminho guiado pelo metafísico, por valores superiores não pertencentes ao mundano. César representa o mundo secular. Representa a nossa organização social, mais ou menos justa, que deve ser organizada politicamente com a finalidade do bem comum. A moeda de César nos impulsiona a participar da vida pública, exercendo o direito ao sufrágio universal, nas eleições periódicas. O instrumento do voto direto e secreto é a “procuração” que confiamos aos nossos representantes eleitos para que no exercício de seus mandatos trabalhem pelo interesse público.

No Brasil, cada vez mais, vem sendo observado que o Sagrado e o mundano estão sendo mescladas por ocasião dos pleitos eleitorais. Integrantes de seguimentos religiosos, com destaque para os cristãos evangélicos neopentecostais, seguidos por cristãos católicos e outros credos religiosos, vêm “investindo” na constituição de bancadas parlamentares federais, estaduais e municipais, a exemplo da conhecida “Bancada Evangélica”[2]. Também vêm conseguindo, com algum sucesso, emplacar nomes de pastores e de bispos evangélicos em prefeituras do país. Conforme noticiado pela mídia nacional[3], candidatos registrados nas eleições municipais de 2020 com as palavras “pastor”, “padre” e “missionário” somam 4.998 nomes. Dezesseis candidatos a vereador registraram a sua candidatura fazendo referência ao nome do médium “João de Deus”.

Haveria algum problema do fiel votar conscientemente em algum candidato de sua confissão religiosa? Há algum impedimento da candidatura de líderes religiosos ou mesmo que estes mostrem apreço por determinado candidato? A resposta a todas essas perguntas é não! É natural que o eleitor vote, livre e conscientemente, naquele candidato que apresenta propostas que se identifiquem com a sua ideologia ou mesmo com a sua fé. Voto é confiança, é representatividade de ideias, não sendo por acaso que o voto é comparado a uma procuração confiada a um advogado. Eleitores, candidatos e partidos políticos apenas não devem perder de vista que na política deve-se buscar o bem comum e o interesse público.

Também não se diz aqui, em momento algum, que as diversas denominações religiosas e credos professados não devem se inserir na sociedade como agentes de transformação da realidade social. Grande problema ocorre quando líderes religiosos, sejam eles candidatos ou apoiadores de candidatos, utilizam-se do sentimento religioso, da pregação e da firme crença na fé para direcionar a votação dos fiéis eleitores. Por vezes, os crentes na fé são guiados a votar apenas por motivos religiosos, não sabendo ao certo quais são as propostas do candidato, as suas intenções e se eles irão, de fato, buscar o interesse público no exercício da atividade política. Em algumas situações, quem vota em outro candidato é considerado um herege, um traidor do credo, quase que um pagão, um infiel, um pecador. Em última análise, quem vota no opositor ao candidato “ungido” vota contra a divindade da qual ele diz ser representante. Há, em alguns casos, uma verdadeira coação moral de fundo religioso a macular a liberdade de escolha do eleitor.

Não se deve, de nenhuma forma, instrumentalizar o poderoso sentimento religioso para fins políticos por meio de abuso da boa-fé e da crença dos fiéis, visto que tal prática desbalanceia o pleito eleitoral em favor do candidato escolhido/apoiado pela denominação religiosa. A história mundial demonstra que quando o sentimento religioso foi utilizado para fins políticos, o resultado, quase sempre, não foi bom. Os exemplos são muitos e facilmente podem ser constatados pelo leitor numa rápida pesquisa pela rede mundial de computadores.

Nesse sentido, cresceram as discussões na doutrina e na jurisprudência eleitorais do país no que diz respeito à construção da figura do abuso do poder religioso para que, a exemplo do abuso do poder político e econômico que desbalanceiam sobremaneira o pleito eleitoral, tal figura pudesse ser objeto de sanção por parte da Justiça Eleitoral. Os instrumentos de apuração e punição seriam a ação de investigação judicial eleitoral (AIJE – art. 22 da LC 64/90), que pode ser ajuizada até a data da diplomação dos eleitos, ou a ação de impugnação de mandato eletivo (AIME – art. 14, § 10, da CF/88), manejada em até 15 dias após a diplomação.

Em 18 de agosto de 2.020, o Tribunal Superior Eleitoral, em sede julgamento do Recurso Especial Eleitoral nº 82-85.2016.6.09.0139/GO[4], com placar de 6 votos a 1, vencido o relator Ministro Edson Fachin, rejeitou considerar o abuso do poder religioso como uma espécie autônoma e distinta de perda do mandato eleitoral[5]. Seguindo a divergência inaugurada pelo Ministro Alexandre de Moraes, o tribunal fundamentou a sua decisão ao argumento de que cabe ao Congresso Nacional legislar sobre a temática, não competindo ao Poder Judiciário criar uma hipótese específica voltada ao abuso religioso no pleito eleitoral[6]. Também foram argumentos secundários para a rejeição da tese de criação, via jurisprudência, do abuso do poder religioso como ilícito eleitoral autônomo: a) a legislação eleitoral já possui mecanismos específicos para coibir influências religiosas indevidas nas eleições; b) em determinados casos, a atuação abusiva das instituições religiosas pode ser enquadrada como abuso do poder econômico; c) as entidades religiosas estão inseridas na sociedade, podendo participar, de maneira legítima, dos pleitos eleitorais, a exemplo de outras entidades da sociedade civil.

Contudo, é interessante notar do teor da decisão do Tribunal Superior Eleitoral que, em nenhum momento, foi dito que não existe abuso do poder religioso com a potência de desbalancear o pleito eleitoral. Ou seja, não se disse que não existe a manipulação da fé alheia com objetivos eleitoreiros. O TSE apenas deixou claro que a figura deve ser criada pelo Congresso Nacional. Porém, mesmo não tendo prevalecido a tese do Ministro Edson Fachin, não há autorização para que candidatos, partidos políticos e líderes religiosos abusem do sentimento religioso dos eleitores ou utilizem das estruturas e eventos ligados à crença para proselitismo político-eleitoral. E a legislação eleitoral já prevê proibições/restrições quanto à temática em questão.

O artigo 24, VIII, da Lei 9.504/97[7] já vedava que partidos e candidatos recebessem direta ou indiretamente doações em dinheiro ou estimáveis em dinheiro (a exemplo de publicidade) que procedam de entidades religiosas. A Lei 13.165/15[8] sepultou a questão ao proibir qualquer financiamento de campanhas por pessoas jurídicas, consolidando, definitivamente, o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4650[9]. Ou seja, as confissões religiosas, como pessoas jurídicas de direito privado que são (art. 44, IV, do CC/02), não podem influenciar economicamente o pleito eleitoral em favor de qualquer candidato ou partido político, sob pena de caracterização de abuso do poder econômico.

Outra restrição que envolve política e religião é a prevista no artigo 37, caput e § 4º, da Lei 9.504/97[10]. Tal dispositivo estabelece a proibição de utilização de bens de uso comum para veiculação de propaganda eleitoral de qualquer natureza, incluindo no conceito de bens uso comum os templos religiosos, sejam eles catedrais, basílicas, igrejas, mesquitas, sinagogas, centros, terreiros, dentre outras denominações. E no conceito de templo religioso devem ser compreendidas as atividades “campais” como as missas, cultos e atividades religiosas ecumênicas realizadas em locais abertos que, muito embora desenvolvidas fora do templo físico oficial, devem ser compreendidas no conceito de bens de uso comum. A toda evidência, a lei eleitoral veda que, por exemplo, o candidato “ungido” pela denominação religiosa ou mesmo o líder religioso utilize o altar ou o púlpito como lugar de comício e proselitismo político.

Infringidas as vedações eleitorais citadas nas linhas anteriores, o candidato poderá ser representado à Justiça Eleitoral por qualquer partido político, coligação, candidato ou pelo Ministério Público Eleitoral, nos termos do artigo 22 da Lei Complementar nº 64/90[11]. Será objeto de apuração da prática de desvio de finalidade, a utilização indevida de veículos ou meios de comunicação sociais ligados à religião, o abuso do poder econômico ou do poder político/autoridade. Evidencia-se aqui a deturpação da autoridade moral/religiosa exercida por um líder espiritual que, desvirtuando os objetivos da fé, transforma o culto num palanque político, abusando da boa-fé e do sentimento religioso dos fiéis para desbalancear a disputa eleitoral.

Para que a política não atenda apenas a certos interesses sectários, mas, sim, atinja o bem comum e o interesse público, e que a religião seja, realmente, um instrumento que religue o ser humano ao Sagrado, ao Supremo Bem, os líderes religiosos e os candidatos a cargos eletivos, independentemente de suas crenças, deveriam observar a passagem do Evangelho de Mateus, capítulo 22, versículo 21, na qual se encontra a seguinte afirmação de Jesus: “Pois deem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.

 

Notas e Referências

[1] Bíblia Sagrada: Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 2002. Disponível em: <http://www.paulus.com.br/biblia-pastoral/_PVS.HTM>. Acesso em: 23 out. 2020.  

[2] BARBOSA, Bernardo. UOL – O Melhor Conteúdo. Fé no voto. Em um país em que 90% têm alguma religião, ela pode fazer a diferença na urna. Disponível em: <https://www.uol/eleicoes/especiais/politica-e-religiao.htm#fe-no-voto>. Acesso em: 23 ago. 2020.

[3] TORRENTE, Andrea. Gazeta do Povo. De “Donald Trump Bolsonaro” a “João Cloroquina”: candidatos apostam em nomes de urna inusitados. Data da Publicação: 29 set. 2020. Disponível em:https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2020/nomes-inusitados-candidatos-eleicoes-2020/>. Acesso em: 23 out. 2020.

[4]   TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. TSE rejeita instituir abuso de poder religioso em ações que podem levar a cassações. Data da publicação: 18 ago. 2020. Disponível em: <https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Agosto/tse-rejeita-instituir-abuso-de-poder-religioso-em-acoes-que-podem-levar-a-cassacoes>. Acesso em: 23 out. 2020.

[5]   TEIXEIRA, Matheus. Folha de São Paulo. TSE rejeita criação de punição para abuso de poder religioso na eleição. Data da Publicação: 18 ago. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/08/tse-forma-maioria-contra-punicao-por-abuso-de-poder-religioso.shtml>. Acesso em: 23 out. 2020.

[6]    AMORIM, Felipe. UOL – O Melhor Conteúdo. TSE rejeita criar punição por abuso de poder religioso nas eleições. Data da publicação: 18 ago. 2020. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/08/18/tse-tem-maioria-contra-punicao-por-abuso-de-poder-religioso-nas-eleicoes.htm>. Acesso em: 23 ago. 2020.

[7] BRASIL. Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm>. Acesso em: 24 out. 2020.

[8] BRASIL. Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13165.htm>. Acesso em: 24 out. 2020. 

[9]      SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Notícias STF. STF conclui julgamento sobre financiamento de campanhas eleitorais. Data da Publicação: 17 set. 2015. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=300015>. Acesso em : 24 out. 2020.

[10] BRASIL. Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm>. Acesso em: 24 out. 2020.

[11] BRASIL. Lei Complementar nº 64 de 18 de maio de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp64.htm >. Acesso em: 24 out. 2020.

 

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