ELAS NO CÁRCERE

05/07/2019

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

A mulher historicamente sempre foi considerada submissa ao homem, devendo respeitar e se submeter as suas vontades, qualquer que fossem elas, o papel da mulher sempre foi inteiramente de servir o sexo oposto.

Em razão dessa submissão vivida pela mulher, durante muito tempo foram restritos a elas os seus direitos, sendo que o exercício destes, quando existiam, dependiam exclusivamente da anuência do homem ao qual ela deveria obedecer, sendo assim, a vida da mulher e todos os seus direitos eram condicionados ao homem que exercesse essa autoridade sobre ela, seja seu pai ou seu marido.

A submissão vivida pela mulher fez com que em um dado momento elas se revoltassem e buscassem não apenas medidas que pudessem promover a igualdade entre elas e os homens, mas ações para se impor diante de um cenário machista, onde encontrar um espaço era a maior dificuldade e ainda é.

A relação das mulheres com o cárcere, não é diferente da situação que elas enfrentam socialmente. A ausência ou desrespeito de direitos, o tratamento inadequado e a desigualdade com relação aos homens na mesma situação, também estão presentes no sistema penitenciário feminino.

Mesmo com a busca das mulheres pela emancipação, a característica de cometer crimes, nunca foi uma questão feminina[1], quando se trata de criminalidade, até mesmo por uma questão moral espera-se que seja referindo- se a um homem.

O sexo feminino sempre foi considerado ilegítimo de praticar determinadas atividades que eram exercidas por homens, o papel da mulher sempre foi relacionado a casa, filhos ou a cargos menores, enquanto ao homem, era destinada a função de sustentar a família, não somente por uma questão de sexo, mas por considerar o contexto de criação ao qual a mulher é submetida, até cometer crimes ainda é algo considerado só para os homens.

Após encarar uma luta para se livrar da submissão e todas as questões impostas pelos homens, as mulheres tem enfrentado, um sistema que as obrigam serem mães, trabalhadoras, donas de casas, bem sucedidas e com uma beleza impecável, ou seja, querem que as mulheres sejam perfeitas, enquanto os homens continuam precisando apenas se preocuparem em trabalhar para manter o lar.

Assim, encarceramento feminino tem crescido de acordo com a ocupação das mulheres nos espaços e o cárcere tem sido a consequência[2] das mulheres que buscam, a qualquer custo, abarcar todas essas tarefas.

A falha do judiciário ocorre exatamente no momento em que não se analisa as circunstâncias em que essas mulheres estão sendo presas, tendo em vista que na maioria das vezes divergem completamente dos motivos pelos quais os homens são detidos, considerando, nesse caso, a condição em que  as mulheres vivem e são inseridas no mundo do crime, geralmente o que elas buscam é sobrevivência ou estão sendo enganadas pelos próprios maridos ou amantes sobre as supostas vantagens do crime.[3]

O INFOPEN mulheres de 2016[4] registrou que, a população prisional feminina brasileira corresponde a 42.355, devendo ser observado que a quantidade de vagas disponíveis é de 27.029, com esses números é possível concluir que o Brasil está entre os doze países que mais encarceram mulheres no mundo[3].

Além disso, o INFOPEN ainda analisou o perfil das mulheres privadas de liberdade no Brasil que, corresponde a 27% com idade de 18 a 24 anos, 62% delas são negras e 74% tem filhos, além disso, 45% delas tem baixa escolaridade, ou seja, ocorre o que chamamos de feminização[5] da pobreza, essas mulheres cometem crimes por não ter outra solução de sobrevivência, assim, considerando que geralmente elas são mães, negras, novas, solteiras e com baixa escolaridade, qual outra opção as restaria?

Ainda que as mulheres sejam mais livres hoje, a desigualdade, a falta de equiparação salarial, juntamente com as responsabilidades geradas pela manutenção da família, faz com que elas cometam crimes com o intuito de suprir as suas necessidades.

Essa questão também foi comprovada pelo INFOPEN mulheres de  2016, demonstrando que o tráfico de drogas, corresponde a causa da prisão de mais da metade das mulheres reclusas no Brasil. Ao considerar a rentabilidade que é proporcionada pelo tráfico, fica evidente a razão pela qual as mulheres se submetem a prática do referido delito, mas é importante ressaltar que na maioria das vezes a mulher faz parte daquela parcela do tráfico de drogas que é mais vulnerável e mais visível[6] e por isso estão sendo presas, elas são colocadas lá para isso.

Outra grande parcela de crimes cometidos por mulheres, está o furto, esse geralmente de itens femininos e para uso próprio, em que a mulher furta para satisfazer os estereótipos culturais impostos a ela[7] e em outros casos, o furto de alimentos ou coisas infantis, podendo concluir que o furto decorreu das necessidades da família.

Nesse contexto é possível observar o fenômeno da seletividade penal. Não são todos os perfis de mulheres que estão presentes no sistema penitenciário brasileiro, são somente aquelas que estão à margem da sociedade e vulneráveis a aplicação das regras do sistema.

Ocorre que o judiciário não analisa essas circunstâncias, não consideram se a mulher “traficava” para sobreviver, sustentar o filho menor, manter a casa, por ilusão de uma vida melhor, ou como ocorre na maioria dos casos ela é a esposa, companheira ou amante do traficante, o que é extremamente comum considerando o contexto de vida do perfil das mulheres que são presas. Além disso, cerca de 45% das mulheres presas, estão encarceradas ainda sem julgamento, segundo dados do INFOPEN mulheres de 2016[8].

O sistema penitenciário é perverso e provoca danos irreparáveis, as mulheres quando são presas perdem completamente a vida que tinham fora da prisão, enquanto os homens, mantém a vida pessoal quase que intacta, com mulher e filhos o aguardando e mantendo visitas regulares. Não são raros os casos de mulheres que após serem presas, perdem o contato com o marido, filhos e família.

Há inúmeras mulheres que esperam incansavelmente a visita dos maridos, aqueles, que em muitos casos foram responsáveis pelas suas prisões, aqueles, que elas dedicaram toda sua vida, aqueles que inclusive prometeram que não a as abandonariam, e estariam lá em todas as visitas. Esses maridos não aparecem, pois em sua maioria estão seguindo a vida, constituindo outra família, enquanto alguém paga pelo crime deles.

Além disso, em razão da escassez de presídios femininos, as mulheres geralmente são presas em presídios distantes da família, o que dificulta as visitas e facilita o abandono, mas isso é só no caso das mulheres, pois quando se trata de um homem preso, o esforço da família para fazer visitas regulares é imenso, ainda que ele esteja em um local de difícil acesso.[9]

Não bastasse ser invisível para o estado com relação as circunstâncias da prática do crime, ser detida longe da sua família, a mulher ainda precisa lidar com as condições precárias de um presídio feminino, que não possui condições de promover a sobrevivência digna de um mulher[10], tendo em vista o padrão serve para atender as necessidades masculinas e há apenas algumas adaptações para atender as mulheres.

Diante das condições precárias de julgamento e encarceramento, o estado estimula automaticamente a reincidência, e no caso das mulheres, a situação ainda é agravada, pois ainda que as mulheres não possuam antecedentes criminais, diante das circunstâncias, quando saem da prisão, estão sem nenhum amparo familiar e ainda julgadas socialmente, pois o cometimento de crime pela mulher é considerado um ataque moral, se a ressocialização para o homem é difícil, para a mulher é pior, só pelo fato de ser mulher, não importa o crime cometido ou motivo do cometimento.

Todas essas questões relacionadas ao encarceramento feminino estão presentes nas Regras de Bangkok[11], um tratado internacional que estabelece regras que deveriam ser cumpridas quando tratar-se de mulheres presas. O tratado reconhece a vulnerabilidade das mulheres que são presas, suas necessidades, e ainda reconhece que uma parcela dessas mulheres não apresentam riscos à sociedade.

As regras tratam de questões como a necessidade de manter a mulher reclusa próxima da sua família, atendimento específico para mulheres, e dispõe também sobre a proibição de instrumentos de contenção, como algemas, em mulheres que estão em trabalho de parto. O tratado também aborda a  necessidade de atendimento médico a mulher no momento em que ela ingressa no sistema prisional, no intuito de manter um controle da saúde nos presidios, considerando o alto indice de mulheres reclusas com HIV. 

Além dessas, ainda há regras especificas para promoção de pesquisas que analisam os delitos cometidos por mulheres e as razões do cometimento, devendo essas questões ser consideradas no momento da denúncia e julgamento dessas mulheres.

As Regras de Bangkok, são necessárias tendo em vista que parte dessas mulheres ainda são presas longe de suas familias, ficando muitas vezes os filhos dessas mulheres desamparados após a prisão da mãe, e restando a essas presas, custódiádas em presídios muitas vezes construídos para abrigar homens, um tratamento inadequado e desumano.

Porém, essas regras, em sua maioria, não são cumpridas. Mesmo após compromisso do Brasil no cumprimento do tratado, as mulheres continuam vivendo uma vida prisional caótica, sendo presas sem ter analisadas as condições que as levaram ao crime, sem ter respeitado o princípio constitucional da intranscendência da pena, e se não bastasse tudo isso, quando se trata de instrumentos de contenção, elas ainda são algemadas no momento do parto, sob alegação do risco de fuga [12].

O encarceramento feminino é problema que precisa ser debatido e analisado. O Estado precisa dar visibilidade para essas mulheres para que elas tenham os seus direitos reconhecidos e, além disso, é necessário que haja uma análise sobre as causas do cometimento de crimes por essas mulheres, em busca de uma solução para o crescimento desenfreado da população carcerária feminina.

 

Notas e referências

[1] Boletim IBCCRIM. n. 314, v. 26, 2019. p. 17-19

[2]Boletim IBCCRIM. n. 314, v. 26, 2019. p. 17-19

[3] QUEIROZ, NANA. Presos que menstruam – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2015. p. 73

[4] NFOPEN Mulheres – 2ª Edição, Brasília: Ministério da Justiça e Segurança.

Departamento Penitenciário Nacional, 2017. p. 10-11

[5] Boletim IBCCRIM. n. 314, v. 26, 2019. p. 17-19

[6]Boletim IBCCRIM. n. 288, v. 24, 2016. p. 14-15

[7] OLIVEIRA, Camila Belinaso. A mulher em situação de cárcere: uma análise à uz da criminologia feminista ao papel social da mulher condicionada pelo patriarcado. Porto Alegre, RS: Editora FI, 2017. p. 106

[8] QUEIROZ, NANA. Presos que menstruam – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2015. p. 44

[9] INFOPEN Mulheres – 2ª Edição, Brasília: Ministério da Justiça e Segurança.

Departamento Penitenciário Nacional, 2017. p. 19

[10] QUEIROZ, NANA. Presos que menstruam – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2015. p. 74

[11] Brasil. Conselho Nacional de Justiça. Regras de Bangkok: Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras – 1. Ed – Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2016.

[12] QUEIROZ, NANA. Presos que menstruam – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Record, p. 42

ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é Feminismo. Ed. Brasiliense. 1985.

VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. São Paulo: Schwarcz. 2017.

 

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