Elas, as algemas, vistas por dois delegados - Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos

30/07/2016

Nas primeiras colunas, optamos por nos apresentarmos e convidarmos o leitor a conhecer alguns dos problemas que afligem o Maranhão e o Espírito Santo (e por que não todo o País?!). Para tanto, abrimos as portas da nossa cozinha, lugar agradável e propício para se banquetear qualquer tema, por mais áspero que possa ser. Nada que um bom prato, harmonizado com um, igualmente bom, vinho não possa resolver. O arroz de cuxá maranhense e a moqueca capixaba, portanto, foram apenas um pretexto, no duplo sentido da palavra: texto prévio e desculpa (Roland Barthes), para novas leituras.

Hoje trataremos do uso de algemas pelas forças policiais e seu regramento normativo. O título deste artigo é uma clara referencia ao livro Eles, os juízes, visto por um advogado, de Piero Calamandrei.

O Código de Processo Penal trata, de forma muito tímida, do uso de algemas, apenas proibindo, em seu art. 474, § 3º, seu uso no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes.

A mais recente oportunidade que o Poder Legislativo teve de regular a matéria foi com a Lei nº 12.403/2011. Contudo, infelizmente não o fez. Por sua vez, o PL 8.045/2010, que busca reformar inteiramente o CPP, trata do tema de forma mais detida, no art. 537 e seus parágrafos; art. 387, § 2; e art. 391, I.

O uso de algemas, como se sabe, já se encontra inclusive sumulada pelo STF (Súmula Vinculante nº 11), o que, entretanto, ao invés de trazer mais segurança jurídica à comunidade, gerou mais controvérsias institucionais, doutrinárias e jurisprudenciais.[1] Segundo o enunciado da referida súmula, “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado’.

Como referido, o projeto de reforma total do CPP é mais detalhado sobre a matéria. Segundo o art. 537, par. único, do PL 8.045/2010, a utilização de algemas constitui medida excepcional e que se justifica somente nas três hipóteses seguintes: a) em casos de resistência à prisão; b) se houver fundado receio de fuga; ou c) para preservar a integridade física do executor, do preso ou de terceiro.

Por outro lado, o parágrafo segundo estabelece os casos em que é expressamente vedado o emprego de algemas: a) como forma de castigo ou sanção disciplinar; b) por tempo excessivo (sem dispor, entretanto, o que constitui excesso nesta hipótese); c) quando o acusado ou o investigado se apresentar, de forma espontânea, à autoridade policial ou judiciária.

Por fim, o parágrafo terceiro indica a necessidade de registro do uso de algemas, determinando, ainda, a indicação de testemunhas na lavratura do que deve ser uma espécie de auto, aqui chamado de auto de uso de algemas.

Dessa forma, parece clarividente que o legislador, seguindo a orientação do já referido art. 474, § 3º do CPP, incluído pela Lei nº 11.689/2008, mostra-se muito mais coerente do que o STF, quando este decidiu tratar desta matéria na Súmula Vinculante nº 11.

Segundo com o Parecer nº 643 – PGR – RG, da Procuradoria-Geral da República, a referida Súmula Vinculante, a um só tempo e sumariamente: a) viola o princípio da isonomia, por priorizar o direito à imagem do preso em detrimento da liberdade de informação, menosprezando, assim, o direito à segurança, e à própria vida, dos agentes públicos que utilizam algemas em suas atividades; b) desconsidera a inarredável imprevisibilidade da conduta humana; c) ofende o princípio da separação dos poderes, pois cria condições para o uso de algemas sem previsão anterior na legislação ordinária, não cumprindo, desta forma, com suas finalidades, insculpidas no art. 103 – A, § 1º da CF; d) descumpre o requisito de reiteração de decisões sobre o tema (art. 103 – A, caput, da CF); e e) lesa a presunção de probidade dos atos dos agentes públicos e de legitimidade dos atos por eles praticados.

Não obstante isso, vale destacar que o mais acertado é o Delegado de Polícia ter cautela e fundamentar, em despacho específico, a necessidade do uso de algemas, em cada oportunidade que entender cabível, como deve ser sempre que houver restrição a direitos fundamentais do imputado.

Em verdade, não só a autoridade policial, mas qualquer agente de segurança pública que precisar usar algemas, deverá justificar sua necessidade. Sobre o tema, Rogério Greco (2011, p. 37) ensina que, “Assim, deverão registrar a sua utilização no Boletim de Ocorrência lavrado pela Polícia Militar, ou mesmo Registro de Ocorrência na Polícia Civil, ou, até no auto de prisão em flagrante confeccionado pela autoridade policial, que, necessariamente, apontará um dos motivos constantes da mencionada Súmula, vale dizer, se houve resistência por parte do preso, fundado receio de fuga no momento da prisão, ou perigo para a integridade física ou a vida dos policiais ou do próprio preso”.

O mesmo autor questiona se, presentes os requisitos da Súmula Vinculante 11 do STF, seria possível algemar um adolescente infrator. E sua resposta é, acertadamente, positiva. Diz ele: “não podemos agir com ingenuidade nessas situações, argumentando simplesmente com a menoridade daquele que praticou uma conduta considerada gravíssima, com risco, inclusive, para a integridade física ou a vida dos policiais que participaram da diligência que culminou na prisão”.

Deve-se estar atento, neste contexto, à advertência feita por Nereu Giacomolli (2014, p.102), para quem, “Além de ofender a dignidade da pessoa (art. 1º, III, CF), de representar uma forma degradante e desumana de tratamento (art. 5º, III, CF), de ofender a imagem do sujeito (art. 5º, X, CF) e de desrespeitar a integridade física e moral do detido (art. 5º, XLIX, CF), o uso imotivado ou com motivação indevida ofende a presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF). As algemas simbolizam a culpa firmada, independentemente de julgamento, ademais de enunciar a necessidade da prisão e a condenação pela periculosidade”.

Uma tal advertência, entretanto, não pode ser compreendida como de incidência automática nos casos de uso de algemas. Como destacou o STF, “O uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer, e para evitar agressão do preso conta os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo. O emprego dessa medida tem como balizamento jurídico necessário os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade”.

Outra medida que pode ser tomada, apesar da omissão legislativa, é a confecção de um auto, como antes referido. De todo modo, se não houver justificação da necessidade do uso das algemas, além das consequências constantes do próprio texto da referida Súmula, caberá Reclamação junto ao STF, em consonância com o que dispõe o art. 103-A, § 3º da CF.

Embora a citada súmula tenha silenciado, como bem lembrou Andrey Borges (2011, p. 219), a justificação da necessidade do uso de algemas pode ser feita após o ato, o que, aliás, ocorrerá na maioria dos casos.

De todo modo, “Quanto à fundamentação, por óbvio, não bastará repetir os termos da lei – ou da súmula –, ou invocar a gravidade abstrata do delito imputado ao acusado. Além disso, diante da expressão ‘absolutamente necessário’, no caso de simples dúvida sobre a necessidade do uso de algemas, não se poderá impor sua utilização” (BADARÓ, 2012, p. 506).

Além disso, segundo o STJ, não só a determinação do uso de algemas, mas também a recusa em tirá-las deve ser fundamentada.

O conteúdo sumular traz, como já se viu, diversas consequências para o uso indevido de algemas por agente de segurança pública, a saber: 1) para o Estado, responsabilidade civil; 2) para o agente de segurança pública que utilizar indevidamente as algemas: a) responsabilidade disciplinar; b) responsabilidade civil; e c) responsabilidade penal; e 3) nulidade da prisão ou ato processual vinculado ao uso indevido das algemas.

A consequência que mais controvérsia gera na doutrina, e que a jurisprudência será convocada a um posicionamento coerente, é a nulidade da prisão ou do ato processual.

No que toca à nulidade da prisão em flagrante, de maior interesse cognitivo nesta análise, como adverte André Nicolitt (2014, p. 473-474), esta consequência deve ser vista com cautela. Não se pode concluir que será uma consequência obrigatória do descumprimento da Súmula 11. “Não obstante, há casos em que tal fato seja possível. Pensemos na hipótese de utilização indevida da algema perante o Delegado de Polícia, no momento em que procede ao reconhecimento, ou colhe depoimentos de vítimas ou testemunhas, exibindo o acusado com algemas, com potencial de influenciar na formação dos indícios de autoria. Neste caso, o uso da algema cria relação direta com o conteúdo do auto de prisão em flagrante, podendo, desta forma, provocar o relaxamento da prisão”.

Por fim, a súmula sob análise prevê, como consequência do uso indevido de algemas, a já conhecida tríplice responsabilidade do infrator: civil, administrativa e penal. No que concerne à responsabilidade penal, é possível, mesmo que de forma genérica, a subsunção típica da conduta do infrator nos arts. 3º, “i” e 4º, “b”, da Lei nº 4.898/1965. Ou seja, tal conduta pode ser considerada atentatória à incolumidade física do indivíduo ou mesmo submissão de pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei.

Vale lembrar que o famigerado (gerado pela fama!) PLS 280/2016 estabelece, em seu art. 15, que configura o crime de abuso de autoridade “Submeter o preso ao uso de algemas, ou de qualquer outro objeto que lhe tolha a locomoção, quando ele não oferecer resistência à prisão, nem existir receio objetivamente fundado de fuga ou de perigo à integridade física dele próprio ou de terceiro”. Neste particular, podemos dizer que o texto está mais adequado a um direito penal que se pretenda legitimado democraticamente.


Notas e Referências:

[1] A CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DOS TRABALHADORES POLICIAIS CIVIS – COBRAPOL formulou pedido, junto ao STF (Relatora Ministra Hellen Gracie) de cancelamento da Súmula Vinculante nº 11, alegando, sumariamente: a) que a mesma viola o princípio da isonomia, pois, ao priorizar o resguardo do direito à imagem frente à liberdade de informação, teria negligenciado “(...) o direito à segurança e à vida dos Profissionais de Segurança Pública (...)”; b) que a conduta humana é imprevisível; c) que a súmula fere o princípio da separação dos poderes, em virtude da usurpação, pelo Supremo Tribunal Federal, da função precípua do Poder Legislativo de elaboração de leis; d) que não foi observado um dos requisitos para a edição de súmula vinculante, qual seja, a reiteração de decisões pelo STF de matérias constitucionais; e e) que houve ofensa à presunção de probidade do agente público e de legitimidade dos atos por eles praticados. A Procuradoria-Geral da República manifestou-se (Parecer nº 643 – PGR – RG) favoravelmente ao cancelamento da referida súmula.

GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014

GRECO, Rogério. Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. Niterói: Impetus, 2011.

MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo: Método, 2011.

NICOLITT, André. Manual de processo penal. São Paulo: RT, 2014.

STF, HC nº 89.429/RO; Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, Julgamento: 22/08/2006.

STJ, HC 140.718, rel. Min. Og Fernandes, 16.10.12, 6ª Turma.


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