Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: um problema às reformas processuais

23/04/2015

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Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho - 23/04/2015

A importância de discutir as tentativas de reformas

Em um regime democrático, discutir as questões de interesse público é mecanismo essencial; não fosse a expressão primeira do grau de civilidade de um povo. É aí, por elementar, que se forjam os instrumentos mais adequados a garantir os direitos individuais, na medida em que todos se vêem na contingência de respeitar a diferença, a começar pela efetivação das garantias constitucionais, paulatinamente agregadas à cultura de modo a chegar-se a um ponto onde sequer são colocadas em dúvida.

A discussão, assim, no império da palavra, funciona como limite à possibilidade de alguns chamarem para si a detenção de uma verdade “toda”, algo não muito difícil de suceder quando, em pauta, estão argumentos de interesse de toda a coletividade e, não raro, plenos de complexidade, por infindáveis motivos, o que aguça a impressão de não ter os outros a real compreensão dos problemas e os caminhos às corretas soluções. O engano, aqui, é evidente, primeiro, porque não há uma verdade “toda” para ser apreensível (o real é impossível) e de conseqüência e muito menos em alguém, sempre marcado por algo que lhe falta, de modo a arrogar-se no direito de a possuir e, segundo, porque todos, na medida das suas possibilidades, podem ter algo de imenso valor a agregar. Há, então, de buscar ouvir a tantos quantos possam opinar, em todos os cantos do país, quiçá para retirar-se de todos a impressão de que Brasília é longe demais do Brasil.

Quando a matéria é de extrema relevância, como a reforma de um código de processo penal, a situação requer ainda mais atenção, porque os efeitos negativos de um passo em falso podem ser desastrosos, como tem sucedido com uma grande quantidade de leis que estorvam o país.

Não é despiciendo, ademais, retomar, ainda que brevemente, o argumento referente à qualidade das reformas globais ou parciais, mesmo porque traz à baila a questão principiológica. Com efeito, em favor da parcialidade fala uma desconfiança – não de todo improcedente – na direção do Parlamento, principalmente em se tratando do nosso. De qualquer sorte, as reformas parciais não têm sentido quando em jogo está uma alteração que diga respeito à estrutura como um todo, justo porque se haveria de ter um patamar epistêmico do qual não se poderia ter muita dúvida. Isso, todavia, não é o que se passa com o sistema processual penal onde, antes de tudo, não se consegue sequer delimitar corretamente o conceito de sistema que, a toda evidência, deveria, no nosso campo, partir da noção kantiana, ou seja, fundada na noção de princípio unificador, por sinal protocelular. Assim, princípio, sistema, conteúdo do processo (qualquer um mais perquiridor sabe não existir lide no processo penal[1]), são conceitos/matérias que não encontram a necessária paz suficiente na teoria do direito processual penal, antes de tudo por falta de fundamentos extradogmáticos, a começar pelo mau vezo de se querer impor uma teoria geral do direito processual que, para nós – há de se insistir –, nada mais é que a teoria geral do direito processual civil aplicada, desmesuradamente, aos outros ramos e com maior vigor ao direito processual penal e ao direito processual do trabalho. Por primário, não se há de construir uma teoria, muito menos geral, quando os referenciais semânticos são diferentes e, de conseqüência, não comportam um denominador comum. Pense-se só nos casos citados, ou seja, entre Direito Processual Penal e Direito Processual Civil o princípio unificador, o sistema e o conteúdo do processo são distintos, resultando daí uma Teoria Geral do Processo plena de furos e equívocos, alguns instransponíveis, no Direito Processual Penal naturalmente. Urge, portanto, uma teoria geral do direito processual penal arredia à falta de ensancha da teoria geral do direito processual civil, pelo menos para poder-se ter uma base mais coerente no momento de uma reforma que pretenda não ser só de verniz.

Ademais, a Constituição da República de 88 traçou, como se sabe, uma base capaz de, sem muito boa vontade, enterrar grande parte do atual CPP, marcado pela concepção fascista do processo penal e ancorado na tradição inquisitória, inclusive da fase processual da persecução, só não percebida por todos em razão da pouca perquirição que se faz das suas matrizes ideológicas e teóricas, a começar pelo velho código de processo penal italiano e seu inescrupuloso difusor e defensor, camìcia nera de todos os instantes, Vincenzo Manzini. Que ele foi um vigoroso articulador teórico do processo penal italiano não se pode negar; mas que era um terrível fascista – e expressa isso em sua obra – também não. Pior, porém, é o que se passa com a doutrina nacional, alienada em relação a problema do gênero, como sucedeu, por infelicidade – não se pode crer em outro fundamento – com José Frederico Marques, o primeiro grande escritor, no Brasil, de um direito processual penal que queria superar a base praxista da ritualística de antes da polêmica Windscheid versus Muther e, por isso, ajudou a formar toda uma geração de processualistas que, não se dando conta das raízes espúrias do ramo, não poucas vezes pregam uma democracia processual com um discurso fundamentalmente antidemocrático. Assim, não é fácil evoluir; não é fácil avançar na direção da concreção da democracia processual; não é possível proceder ao necessário corte epistemológico; e as mudanças – qualquer uma – tendem a manter, como sugeriu Lampedusa, tudo como sempre esteve.

Talvez seja este, afinal, o grande motivo pelo qual vai-se para mais de quarenta anos de tentativas de mudanças (não esquecer que o Anteprojeto Tornaghi era de 1963) e elas não se consumam, dado encontrarem resistências pontuais fundadas em argumentos de tal relevância que se tornam de difícil resposta. Ora, ou se demarca, da melhor maneira possível, pela base epistemológica, o campo de incidência do objeto da reforma, ou não se retiram as premissas (algumas absolutamente falsas) aos ataques sofridos por ela, a começar daqueles que partem da angústia gerada pelo novo aos castelos da segurança calcada no conforto do velho. De Bachelard a Freud, de Khun a Lacan, de Foucault a Barcellona, de Habermas a Dussel, de Hayek a Hinkelammert, de Carnelutti a Cordero, muita gente teria muito a dizer sobre o tema.

Neste diapasão, é necessário discutir imensamente antes de tentar mudar – de verdade! – a estrutura; e não há que temer as eventuais deficiências do Parlamento e os jogos políticos, muito menos fazendo de conta que eles não existem ou não têm importância porque não dizem respeito à questão. Por esta dimensão, é inescurecível discurso político aquele que avança contra uma reforma global com a ideia da dificuldade prática de se conseguir, no Parlamento, uma mudança do gênero. Mas nenhum mal há nisso, em se fazer um discurso político; muito pelo contrário. No atual estágio do direito, espaço não há para propostas neutrais e alheias às ideologias. Com isso, todavia, desloca-se o eixo do argumento, passando a ser, antes de tudo, uma opção política o modelo da reforma. E aí é preciso ter confiança na força qualitativa e técnica dos juristas, capazes (por que não?) de armar, desde premissas sólidas, uma estrutura que se não consiga mexer, quanto à substância, por interesses antidemocráticos.

Eis a razão pela qual não se pode deixar de sustentar que um projeto global consistente, refletindo seu tempo, há de vingar como, diga-se de passagem, ocorreu na Itália, em que pese os vinte e cinco anos de discussões, com inúmeras atualizações, sem se perder o rumo, justo porque se manteve a unidade. Há de se abrir mão (algo não muito fácil em um país como o nosso, sempre marcado pelo imediatismo da glória, mormente em tempos de extremado individualismo narcíseo), por evidente, do açodamento, da pressa de se produzir uma reforma para o dia anterior. Pisapia, para infelicidade de todos, não teve tempo para desfrutar o CPP italiano de 89; mas não será menos laureado por isso. Quanto aos Guardasigilli, foram tantos no longo período da gestação do código, mas não importavam realmente enquanto o valor primeiro fosse a nação italiana, sem embargo de que Giuliano Vassali, o Ministro da época da promulgação, não só fosse extremamente respeitado por ser um grande político como, sobretudo, porque era e é um penalista de primeira linha, que pode, com toda a tranqüilidade, ser esquecido como o ocupante momentâneo do cargo naquele momento. Serve, aqui, como advertência, antológica análise de Cordero sobre as “macchine giudiziarie”: “... ogni causa è politica, inutile dirlo. Organo e funzione sviluppano delle strutture. Era tutto contenuto nella protocellula. Qui non attecchiscono invenzioni stravaganti: gli istituti distinati a lunga durata nascono organicamente dal metabolismo político; ogni sistema sottintende uma cultura, buona, scadente o perversa. Ma l’analisi sulle norme non svela l’intero fenomeno giudiziario. Restano fuori le prassi, su cui capiremmo poco se ignorassimo i meccanismi infralegali del potere: l’apparato penale ne cova uno temibile; che sia esercitato in forme più o meno asseticamente disinteressate, dipende dalla qualità delle persone e dall’imprinting corporativo. Naturale che ogni tanto qualche stregone político tenti interferenze.[2] Se é assim com os órgãos jurisdicionais, por que haveria de ser diferente com a elaboração legislativa, onde são chamados diretamente a dizer sobre o assunto? É preciso, então, cautela; muita cautela, ou seja, reduzir os espaços de interferência ao máximo possível, o que só se alcança com uma maior solidez da base epistêmica.

Efetividade não é eficiência

O discurso da globalização e de sua matriz economicista, o neoliberalismo, já começa a enfadar. Em alguns campos, porém, ele é de tal forma incipiente – e o direito é um exemplo claro – que se torna imprescindível, em matéria de tamanha relevância como a das reformas do código de processo penal, fazer um esforço para pautar a discussão também por tal viés.

A ninguém, dentre os operadores jurídicos, é dado o direito de se eximir da responsabilidade de um domínio elementar desta temática, dada à relevância transcendental que assume não só ao direito como a todos os campos do conhecimento. A insipiência, aqui, demandaria uma análise mais articulada e profunda, mas não havendo espaço para tanto, faz-se mister tão-só um alerta, isto é, aquele de que se deve atentar para o fato do ensino jurídico seguir, em larga escala, fazendo vistas grossas aos efeitos que ela tem produzido no âmbito do direito. Por suposto cabe, em arremedo, uma autocrítica: trata-se de problema vinculado aos docentes (antes de todos os demais vinculados à área), responsáveis primeiros pela condução da formação e a quem não se pode ser condescendente em matéria tão delicada. Afinal, o desconhecimento leva à alienação e, não raro, alija; aos alunos, por óbvio, em um primeiro momento, e assim por diante, numa onda da qual não escapa ninguém, mas da qual as grandes vítimas são os menos favorecidos. O pior, contudo, é que, desde a posição de desconhecimento (em verdade um conhecimento outro), estabelece-se uma resistência tenaz, difícil de ser superada. Ser alienado, neste sentido e, enfim, resistir (não ao novo, mas às mazelas trazidas por ele), é andar de braços dados com o discurso dominante, hoje como nunca demarcado pela mídia. É preciso, enfim, estar atento ao fato de estarmos diante de uma nova ordem mundial.

Neste quadro, não é admissível, em hipótese alguma, sinonimizar efetividade com eficiência, principalmente por desconhecimento. Afinal, aquela reclama uma análise dos fins; esta, a eficiência, desde a base neoliberal, responde aos meios.

Com efeito, Hayek foi por demais ousado, talvez como poucos antes tiveram sido, mas encontrou momentos propícios na crise principiológica do Estado moderno, o qual, por infindáveis razões, já não conseguia cumprir as suas promessas. Atacá-lo, nesse instante, não foi tarefa simples porque soava sempre antidemocrático, enfim, discurso ultradireitista, como de fato era mesmo. Ora, ninguém, há cinco décadas – ou daí em diante –, quando a Europa esfomeada saia da segunda grande guerra, poderia crer que alguém, sem ser insano, pudesse renegar o Estado de bem-estar social. Pois foi exatamente isso que fez Hayek e seus pares da hoje famosa Sociedade de Mont Pèlerin, dentre os quais destacou-se Milton Friedman, mais tarde estrategicamente (ou por puro acaso do destino, em face da sua história pessoal) situado na Escola de Economia de Chicago, donde saíram os estafetas das novas idéias.

A ousadia, sem embargo, foi a ponto de se propor um câmbio epistemológico, sem o que se não altera nada de essencial. Assim, é nesse espaço que entra a noção de ação eficiente, no lugar daquela de causa-efeito, da falibilidade humana na previsão dos fins. Com isso, combatia-se – e combate-se – o construtivismo, ou seja, as instituições deliberadamente criadas (pense-se, antes de tudo, no processo como objeto cultural), frutos da razão (falha por natureza) e da crença em resultados não raro impossíveis. No seu lugar, ordens naturais espontâneas seriam eleitas, após os erros dos atores sociais, tudo mirado no mercado, a principal delas e sua balizadora. Não foi por outro motivo que o mercado acabou glorificado; e o pensamento em torno dele o supra-sumo da intelectualidade, ao ponto de, para quem tem alguma memória, todos os que se colocaram em seu caminho serem taxados de neoburros  e/ou neobobos.

Sendo impossível a correta previsão dos resultados, os centros das atenções passaram a ser os meios. Eis por que os holofotes voltaram-se às ações, que devem ser eficientes, tudo de modo a projetar os melhores fins. É, sem dúvida, uma guinada sem precedentes, pela qual se pode compreender a desenfreada competitividade, assim como a deificação do mercado que, pelo eficientismo, rende glórias ao consumidor (objeto de disputa) transformado em cliente, homo oeconomicus, acabando por deslocar o eixo da disputa capital/trabalho. Quando em questão está a eficiência (dos meios), não é que o trabalho não importe, mas ele ganha um lugar secundário quando, estrategicamente, tem-se um exército de reserva laboral e degladiam-se todos pelos postos de trabalho que sobram. A velha concepção de homo faber perde, como tal, o seu sentido; e o direito, que antes de tudo o protege, passa a ser um obstáculo, acusado de burocrático, ou melhor, burocratizante.

Nessa dimensão, o tempo ganha uma outra face; basta ver como se coloca quando em jogo estão as reformas do direito processual, resgatando ultrapassados fantasmas e dando vida a novos, plenos de outros sentidos, com novos medos e esperanças desgastadas.

De um momento a outro, então, para alguns com consciência (os velhos catedr’áulicos de Lyra Filho, que servem ao status quo por safadeza) e outros pela mais absoluta ignorância, passou-se a sustentar a eficiência no lugar da efetividade.

Poderia, claro, ser uma mera troca de palavras, mas não é. Aliada ao tempo, eficiência pode ser sinônimo de exclusão, aqui, nas reformas processuais, carimbada pela supressão de direitos e/ou garantias, mormente constitucionais ou, pelo menos, pela redução dos seus raios de alcance, manipuláveis pela força da hermenêutica, desde sempre sem a mínima possibilidade de ser eliminada: sem qualquer dúvida, salvo do leguleio, a lei diz alquilo que o intérprete diz que ela diz (Ruiz/Cárcova).

Sendo o direito um estorvo (ou algo que estorva), natural é o avanço da ideia de flexibilização, a que, em ultima ratio, responde pela precitada supressão. No mesmo sentido, quando o mais submetido é o próprio Estado, na sua concepção tradicional como foi por todos estudado e vinculado até a medula à legalidade, a solução é torná-lo mínimo. Pense-se, por um lado, o que significa o controle rígido da remessa de valores para o exterior (da evasão de divisas à transmissão de lucros), ou, por outra parte, a demora do processo quando em jogo está o cumprimento de um contrato internacional de milhões de dólares.

Ninguém, destarte, em sã consciência, deixa de perceber a necessidade de um ajuste de contas, mas há que ter um limite, um patamar mínimo que se não pode superar, colocando-se em risco os próprios laços sociais primários, já tênues – muito tênues – no espaço de um mundo periférico. E não será, por certo, do mercado e suas leis de regência (a começar daquela essencial, da oferta e da procura), que se terá a solução (ou o limite adequado), dado não comportar ele uma ética ou, se a tem (para os que nisso crêem, pelo lucro, como Gutiérrez), só pode ser aquela do bando de ladrões.

Por isso ser necessário tanto cuidado, tanta cautela, tanta precaução. Mais do que nunca é preciso não embarcar no discurso reformista por simples modismo, seguindo a corrente dominante quiçá pelo prazer da vitória fácil, no caso sempre aparente, imaginária, se diz respeito à destruição da democracia e auxílio da exclusão social.

Eficiência e golpe de cena

Um dos mais claros exemplos, com os quais se convive hoje, de substituição da efetividade pela eficiência diz com os magníficos golpes de cenas montados pelas acusações (em geral a pública), por conta de uma visão distorcida da realidade e da Constituição.

Com efeito, tem a nova ordem um aliado de peso, a mídia, do qual ninguém se livra, mas, mais importante, nem todos se dão conta.

Como quase que profeticamente percebeu McLuhan, vige a narcose de narciso, ou seja, estão todos, em qualquer lugar, metidos na mídia, com uma característica, contudo: não a percebem, como um peixe no aquário que se não dá conta da água na qual está nadando.

O perigo – é fácil observar – não está propriamente na dita constatação, dada ser de uma realidade irretorquível; está – isso sim – na expansão do poder que por ela se faz, como demonstrou Galbraith, chamando-o de poder condicionado, isto é, aquele que se exercita em nome de outrem pensando-se, todavia, estar-se praticando em nome próprio. Incluem-se aqui, naturalmente, algumas personagens um tanto quanto miméticas, mas sempre a serviço da ideologia alheia como v.g. os inocentes úteis, os justiceiros e, entre outros, a grande parcela dos defensores – sem o dizerem, por óbvio – do Movimento de Lei e Ordem.

Representam eles, como se constata, dois grupos freqüentemente ubicados: o primeiro, dos que se pensam conscientes e assim agem porque defendem a verdade desde o momento em que a introjetaram, empunhando a bandeira alheia como se sua fosse. Com esses, é difícil de tratar, dado ser necessário um largo trabalho de dissuasão, embora não seja impossível quando, em jogo, estiverem valores maiores, justo em razão do fato de estarem abertos ao novo, àquilo que, vindo de fora, pode, no cotejo com o assimilado, parecer melhor. A tarefa é complexa, mas não é impossível, pelo menos para o argumento jurídico.

No segundo grupo, sem embargo, a missão é obra de Sísifo, pelo menos no âmbito do direito. Afinal, aqueles que nele estão metidos, no mais das vezes, defendem a verdade alheia da mesma maneira que os do primeiro grupo, mas assim o fazem para dar conta de uma questão inconsciente. Pelo sintoma, deste modo, percebe-se ser o agir uma tentativa de obturar um furo deixado pela (ou na?) constituição do sujeito. É sempre um tal de acertar contas com o passado, com o pai, com a mãe, com as funções (explicadas pela psicanálise), por elementar que sempre incompletas. Não é por outro motivo perseguir o homem o seu desejo, buscando dar-lhe satisfação, embora saiba ex ante ser ela sempre parcial. Não há, porém, nada de anormal nisso; muito pelo contrário: aí está a história de cada um de nós. A anormalidade, todavia, pode aparecer, como de fato aparece, quando alguém quer resolver seu problema pessoal projetando a solução na desgraça alheia, o que não é incomum nos nossos dias.

Para tanto, essa gente, em larga escala sem qualquer consciência disso, tem-se agarrado no discurso da eficiência, tentando dar efetividade antecipada a uma possível/provável condenação.

Ora, tem-se buscado, pela mídia, condenar antes da condenação, em nome da eficiência, mesmo que, para tanto, tenha-se que correr o risco da injustiça (lembre-se sempre daquela gente da Escola de Base, em São Paulo[3]), agora medida em números, por mais absurdos que possam ser.

Está-se, nesse diapasão, muito antes de satisfazer os interesses da sociedade, tentando dar satisfação aos seus, por conta de uma outra cena. Não basta condenar! Parece ser preciso enxovalhar, de preferência publicamente, porque daí sai o prazer supremo. Ademais, se for dentro dos 15 minutos de glória ao que se referiu Andy Warhol, é melhor ainda. Eis a razão, dentre outras, pela qual tem-se convocado com tanta freqüência os meios de comunicação para entrevistas coletivas, ainda sem qualquer prova ou indício. Em suma, em um mundo feito à imagem e semelhança da aldeia global de McLuhan, não tem importado a coisa, mas o que se diz dela; não tem importado a verdade (se existe ou existisse) e os meios para obtê-la, mas o que se diz dela. É um mundo de imagens, pelo qual se desliza esperando um outro golpe de cena do Grande Irmão, de Orwell.

A pergunta que fica, então, é simples: é isso que a sociedade, expressando-se pela Constituição da República, quer? Mas poderia ser: chegando a um ponto onde o indivíduo/cidadão não conte mais nada, como parece estarmos chegando, deve ele (e aqui cada um deve olhar para si mesmo, colocando-se naquele lugar) ser sacrificado, amputando-se-lhe os direitos e garantias?

Resta, enfim, poucos espaços para defenderem o rompimento da ordem constitucional estabelecida; mas é o que se está a fazer, distorcendo-se tudo, diante da apatia generalizada. Têm alguns, por mais incrível que possa parecer, sustentado a quebra de direitos e garantias, ignorando as cláusulas pétreas.

Para quem observa tudo da borda, mas não se satisfaz com espelhinhos discursivos, resta a confiança em uma reforma do processo penal que não seja iludida pela retórica fácil da conversa neoliberal antidemocrática, louca para nos levar a esperança de um mundo melhor para todos.


Notas e Referências:

[1] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. A lide e o conteúdo do Processo Penal. Curitiba: Juruá, 1998.

[2] . CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino : Utet, 1986, p. 31: “... toda causa é política, inútil dizê-lo. Órgão e funções desenvolvem as estruturas. Estava tudo contido na protocélula. Aqui não vingam invenções extravagantes: os institutos destinados a longa duração nascem organicamente do metabolismo político; qualquer sistema subentende  uma cultura, boa, decadente ou perversa. Mas as análises das normas não revela o fenômeno judiciário inteiro. Resta fora a práxis, sobre a qual entenderemos pouco de ignorássemos os mecanismos infralegais do poder: o aparato penal oculta um temível; que seja exercitado de forma mais ou menos assepticamente desinteressada, depende da qualidade das pessoas e do imprinting corporativo. Natural que de tanto em tanto algum político medíocre tente interferências.” (tradução livre).

[3] Caso ocorrido no Brasil em que os responsáveis por um colégio foram acusados e perseguidos, inclusive com violência, por supostas violações a crianças, depois verificadas improcedentes. Cfe. RIBEIRO, Alex. O Caso Escola Base – os abusos da imprensa. São Paulo: Ática, 1995.


Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é Professor Titular de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR), Mestre (UFPR); Doutor (Universidade de Roma “La Sapienza”). Coordenador do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Advogado. Procurador do Estado do Paraná. Membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.


Imagem Ilustrativa do Post: Michelangelo's Pietà // Foto de: John Morton // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/morton/238681962/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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