Educação Jurídica e sua crise: reflexões sobre os papéis dos atores da Escola de Direito  

14/02/2019

 

Passaram-se cinco anos desde meu ingresso em uma Faculdade de Direito. Foi-se a Graduação. Embora ainda seja um “zigoto de Vade Mecum”, tenho refletido muito sobre o cotidiano deste espaço. Notei que a vida acadêmica de um estudante de Direito, nesta quadra da história, é uma grande falácia. Ele é alvo de uma engenharia institucional cujo principal objetivo é perpetuar recepções teóricas equivocadas de maneira sistemática[1], censurando qualquer pretensão crítica do acadêmico, e, para piorar a situação, a práxis jurisdicional o coopta a seguí-las. Essa conspiração estrutural conduzirá o aluno a um espaço que Luís Alberto Warat cunhou como senso comum teórico dos juristas[2], um local onde impera o controle conceitual figurado na excessiva purificação da razão, apartando, assim, as condições de possibilidade de compreender as peculiaridades do mundo prático. O educando deve fugir deste lugar. Ir para a clareira (lichtung)[3]. Para lá, vislumbrar a emergência do ser e, intersubjetivamente, desvelar as condições de possibilidade para a compreensão deste complexo fenômeno chamado Direito. (Des)construir seus sentidos, iluminar as condições sob as quais há a compreensão do fenômeno[4].

Para isso ocorrer, deve-se projetar uma desconstrução metafórica do fenômeno do processo ensino-aprendizagem tradicional e seus principais atores, os sendo: o professor, o aluno e a instituição universitária. De mais a mais, é possível notar a estandartização do ensino jurídico como aliança da relação entre os referidos agentes.

Essa cultura standard tem um manancial bem profundo, inicia-se a partir do momento em que o professor solicitará ao aluno(a) a aquisição do famigerado Vade Mecum - livro fundamental para qualquer sujeito que queira mergulhar no fenômeno do Direito. No entanto, o busílis torna-se evidente, quando o docente acha que apenas o famigerado Vade responderá a eterna angústia acerca do que é o Direito. Não se percebe que este livro constituído como um compilado de Leis irá, apenas, responder “qual é o Direito?” por intermédio da faceta exercida pela Ciência Jurídica, mas aquela questão fulcral sobre “o que é o Direito?”, somente a Filosofia será quem desvelará o fenômeno do Direito. Esse desvelamento dá-se quando se observa a linguagem como condição de possibilidade para compreender o Direito[5].

No entanto, mesmo assim, há professores que passam os cinco anos da graduação utilizando, como livro-base de suas aulas, somente o Vade mecum. Pressupõe-se que estes docentes sustentam-se no século XIX, no velho Positivismo exegético-legalista, em que se reduzia o Direito à Lei. Assim sendo, retornar-se-á àquele juiz-boca-da-lei do século retrasado, e solucionaremos a crise que a Teoria Geral do Direito no Brasil (con)vive desde-já-sempre. Será que realmente acham que resolverão os incontáveis problemas do Direito só com Vade Mecum?  Para que Filosofia? Qual o propósito em ler obras de Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Jürgen Habermas, Ronald Dworkin, Jean Grondin, Ernildo Stein, Ludwig Wittgenstein, Herbert Hart, Scott Shapiro, Joseph Raz, Hans Kelsen, Alf Ross, Andrei Marmor, Jeremy Waldron, Roscoe Pound, Wil Waluchow, dentre outros (jus)filósofos? Afinal, o que importa é “estar na ponta da língua” o que diz o artigo X ou o parágrafo Y! E cobrar, à base da chicotada, dos alunos, pois é isto que os concursos públicos e o exame da OAB, em geral, demandam.

Para superar este cenário escatológico de educação fabril, deve-se promover, na consciência dos corpos discente e docente, um trabalho que tenha como objetivo a afirmação e concretização dos Direito Fundamentais Sociais e das promessas da modernidade (STRECK, 2014, p. 576), trabalho este delineado a partir de uma capacidade de realização de uma ética dos desejos (WARAT, 1997, p. 32) nas Escolas de Direito. Tornando, assim, estes espaços educacionais condição de possibilidade para a transformação social, uma vez que essa ética dos desejos propõe-se para constituir uma consciência existencial transformadora que pretende salvar a condição humana (WARAT, 1997, p. 32).

Entretanto, a comunidade jurídica transita, assim como a sociedade pós-moderna, em um espaço embebido pela cultura informacional, ou seja, o fator que se coloca, semiologicamente, em destaque não é a condição humana, mas sim a informação. Observando este contexto, é possível visualizar que a educação jurídica aproveita essa espécie de big data dogmática para implementar um canal de catalisação de informações conceituais (pro)vindas da própria razão dogmática (termo utilizado por Tércio Sampaio). Com isso, é possível concluir que o conhecimento jurídico, neste momento histórico, tem como seu horizonte a mera difusão informacional de um rosário infindável de conceitos meramente dogmáticos e que, portanto, se colocam como um meio de alienação do aluno e, também, do professor. Esse dogmatismo jurídico se torna, com o caminhar dos anos, um instrumento para o exercício totalitário de poder (WARAT, 1997, p. 33) e, ao mesmo tempo, asfixia qualquer intento crítico do educando e/ou do agente mediador da educação (professor).

Com o excesso de informações meramente dogmáticas e conceituais, o pensamento jurídico condiciona o educando a vivenciar uma cultura do vazio existencial[6], de sorte que seu papel se reduz a absorção de uma informação dogmática posta. Assim, a missão do aluno é apenas reproduzir dogmas estandardizados que, em certa medida, causam uma indiferença em seu olhar crítico, evidenciando um “autismo informatizado” (WARAT, 1997, p. 33), pois a razão dogmática cria uma esfera abstrata e suspensa da facticidade, causando no acadêmico uma cegueira quando confrontado sobre a sangria da realidade do mundo (Streck), vez que sua compreensão está condicionada a uma mera abstração conceitual.

O resultado desse quadro é a concepção de um aluno que se torna um androide, na medida em que desaparece como local de um intercâmbio ativo com o mundo exterior e com os demais homens (WARAT, 1997, p. 33). O estudante exercerá um papel de reprodução do exercício do controle do poder intermediado pelo dogmaticismo jurídico. Nada obstante a isso, ao mesmo tempo que o conhecimento jurídico porta-se como um mecanismo de controle epistemológico, paralelamente, os professores das Escolas de Direito assemelham-se a um Leviatã que portará os limites dos sentidos do conteúdo a ser lecionado.

Todo este horizonte educacional pautado no controle e submissão do educando, introjeta-o em um estado de anestesia epistemológica, posto que a missão institucional da Escola de Direito tem sido manipular o conhecimento para seguir os preceitos pactuados pela dogmática jurídica e Tribunais e, consequentemente, pelo senso comum teórico dos juristas (WARAT, 2004, p. 42). 

Para implementar o quadro narrado no parágrafo anterior, vê-se que há a clara utilização de um jogo de perversidade pautado em símbolos e rituais contra o corpo discente. Aproximando, de maneira latente e vívida, as metodologias pedagógicas dos cursos jurídicos e uma pulsão (sado)masoquista. Em primeiro plano, aparenta ser uma leitura deveras estranha. Mas ao desvelar casca por casca deste fenômeno, vê-se que há similitudes.

Primeiro, como o objetivo desta relação é propor um olhar metafórico, ou seja, uma suficiência ôntica ao desobinubilar o fenômeno, não se debruçará, amiúde, em pensamentos acerca do sadomasoquismo, porque só sobre este tema há grandes pensadores que discorrem, sendo-os: Lacan, Freud, Laplanche e Deleuze (e inúmeros outros).

A metáfora projetada se pauta na ótica de Deleuze-Freud no que diz respeito ao pulso[7] sadomasoquista[8]. Para tanto, nota-se que ambos assentam-no como uma perversão sexual, na qual se constata, preliminarmente, a presença de uma relação entre dor e prazer. Todavia, Deleuze classifica o pulso para além do alicerce dor-prazer, uma vez que para ele há mais quatro tônicos fundantes desta relação, quais sejam: decência, idealismo, contratualismo e suspense[9].

Quanto ao idealismo, tem-no, mormente, quando a pessoa ingressa na Faculdade de Direito projetando como horizonte de seus estudos, o alcançar da Justiça. Basta entrar em uma sala do 1º ano do curso, e perguntar aos alunos: “por que você escolheu o Direito?”. Grande parcela responderá a esta pergunta vinculando sua afirmação ao conceito de Justiça. Eis aí um baita de um ideal. Correm para chegar neste horizonte, fazem incontáveis provas, debruçam sobre um vasto rol de livros. É instado a correr para vislumbrar um paradigma que se aparenta a uma pieguice.

Já outros alunos têm como idealismo, tão só, passar pela faculdade e obter o diploma. Assim, poderá fazer algum concurso ou algo do gênero. Em síntese, nota-se como os idealismos preponderantes nas faculdades de Direito: I) o semear da Justiça (social) ou, II) obter um diploma para usufruir das benesses propiciadas com o ingresso em uma repartição do Estado.

Cobiçando piamente viver esses idealismos, o aluno acaba se sujeitando ao suspense promovido pelo carrasco (sendo nesta metáfora, o professor). Vários momentos são marcados pelo sopro deste silêncio eloquente que violenta o acadêmico. A situação que evidencia o estado da arte é a utilização de certames como “avaliação de aprendizagem” do estudante. Eis a roupagem sadomasoquista em forma fenomenológica, pois os alunos lutam para gozar daquele idealismo e, aproveitando essa situação, o carrasco constrói, no imaginário da vítima, uma cobrança pela perfeição, porque somente com a perfeição o submisso conseguirá alcançar o ideal projetado por ele mesmo. E além disso, essa perfeição é aferida por números que, usualmente, vão de 0 à 10. Tal parâmetro exerce um papel até de maneira simbólica, uma vez que o portador da melhor “avaliação” ganhará um título diferenciado.

Imagine a seguinte cena: é dia de prova daquele professor que todos temem. Minutos antes do início da avaliação a sala de aula assemelha-se a um formigueiro em chamas. Todos estão inquietos e com medo, pois não sabem o que os espera. Está aí o suspense.

Feita a prova, aparece a segunda cena de suspense: sendo-a o aguardar silencioso da nota obtida na avaliação. Neste segundo take, o ato de avaliação exercido pelo professor acaba se figurando em um gozo sádico de superioridade epistemológica. Ele ocupa a cadeira de avaliador. Observa com nariz empinado o aluno. Ele ocupa a cadeira de quem passa e não passa para o próximo ano. A cadeira que falará se você é capaz ou não de alçar o seu idealismo.

A relação sadomasoquista, como no Direito, é pactuada por um contrato, o título celebrado regula como será o tratamento entre a vítima e o carrasco, as cláusulas delineadas pelo professor outorgam os mecanismos e ferramentas que serão utilizados durante as sessões. Estas cláusulas são marcadas pela vontade de satisfazer seu libido em controlar o submisso. Libido travestido, retoricamente, na vontade de “ensinar”. Resta à vítima negociar os termos e condições impostos pelo carrasco.

O “conhecimento” exerce, nesse contexto, um establishment perante o estado das coisas, tornando-se um mero instrumento que será utilizado pela vítima como canal de sedução e persuasão em face às vontades e demandas do carrasco. Ao fim, o conhecimento é uma coisa que o aluno terá que usar para agradar o professor, pois a “retenção do conhecimento” demonstra, falaciosamente, que o docente está desempenhando suficientemente bem o seu papel, e, também, está auxiliando retoricamente no manejo do idealismo vivenciado pela vítima.

Ao mesmo tempo em que o contrato constituí um código de postura entre as partes, ele implementa um cenário marcado pela decência ritualística. A peculiaridade é, sobretudo, a presença de um organograma protocolar que força a vítima a proferir a voz de mando ao carrasco, do tipo: “Vamos começar a aula!?”.

Este ambiente é responsável por desenhar uma subversão na ordem de dominação, pois, usualmente, vemos a relação de poder e domínio quando há uma hierarquia moral ou física entre duas pessoas, porém, no sadomasoquismo, tem-se a presença marcante de uma força moral do submisso e, mesmo assim, ele quer se submeter àquela sensação de subjugação. Essa é a facticidade da relação aluno e professor, de modo que, em tese, o papel desempenhado pelo discente é ser o protagonista do processo educacional, ou seja, porta ele a envergadura moral de maior quilate desta relação. Mas, o status quo efetua uma manutenção nesta subversão que, ultimamente, é inerente à metodologia ensino-aprendizagem.

A decência está presente, também, nos procedimentos protocolares realizados em sala de aula. As classes, nesta quadra da história, são uma espécie de STF às avessas. Quando os ministros entram no plenário, todos se levantam, já nas salas, os submissos sentam-se quando o carrasco entra. E se você ousar quebrar o protocolo, será duramente repreendido pelo carrasco e, em certa medida, até pelas outras vítimas.

Em suma, a decência, o contratualismo, o suspense e o idealismo são fatores endógenos que solapam a emancipação do aluno, e, ainda, reformam os alicerces de uma Universidade que trata o protagonista como uma marionete controlada epistemológica e ideologicamente. Não colocam o acadêmico como a condição de possibilidade para o seu ser. Ele será preparado para reproduzir um “conhecimento standard”, e duramente reprimido ao questionar, restando, como uma morte lenta, se alienar em uma epistemologia de conceitos provindas do senso comum teórico dos juristas[10].

Observando a metáfora posta, conclui-se que a educação jurídica tem que superar este paradigma, colocando-se em um estado de comprometimento com a modificação da realidade, avocar-se como subversora da discursividade instituída (WARAT, 1997, p. 44), ou seja, aqueles padrões teóricos (re)produzidos dogmaticamente para o controle conceitual. Perlustrando essa situação, a prática pedagógica do Direito tem que realizar um exercício de resistência a todas as formas de violência simbólica, isto é, como uma prática política dos direitos do homem à sua própria existência (WARAT, 1997, p. 44-45). O controle epistemológico feito por parte da dogmática jurídica (a discursividade instituída) implementa a violência simbólica que, inevitavelmente, colocará as amarras no pensamento jurídico, conduzindo-o ao lócus do senso comum teórico que asfixia o alento crítico do aluno. Ainda sobre o SCT, consoante Warat, esse fenômeno é pautado em um processo semiológico que se coloca como um conjunto de hábitos de referência e de discursos organizados a partir dos ditos hábitos (WARAT, 2004, p. 98) da práxis jurisdicional.  

Para fugir desta alienação dogmática, deve-se ver a Linguagem como o núcleo da prática educacional, é pela palavra que compreendemos os fenômenos complexos que nos circunda. Porém, é pela Linguagem, também, que nos tornamos indiferentes e alienados. Com a alienação, provoca-se uma morte antecipada do sujeito, ele passará no meio de inúmeras palavras, mas elas não o provocarão a angústia. A sua existência foi saqueada em nome de um controle ideológico e conceitual (WARAT, 1997, p. 45-46). A linguagem é o instrumento para o seu rapto. O dogmatismo tampa seu ouvido, olhos e boca. 

Destarte, a Linguagem, na prática pedagógica, apresenta-se em dois caminhos possíveis e opostos entre si. Tais polos são: a Linguagem como compreensão e emancipação epistemológica do sujeito ou; a Linguagem como instrumento para a alienação do educando. A inquietação que se faz necessária é delinear a trilha a ser percorrida pela exploração educacional, em específico, na Escola de Direito.

Caro(a) professor(a) que lê esse texto, você tem auxiliado seu aluno para a sua emancipação epistemológica ou apenas tem sido um professor horrível, uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia[11] (ou melhor dizendo, de sadismo)?

A situação é muito mais sintomática do que aparenta essa metáfora, de modo que se deve perceber a impossibilidade de ensinar, quiçá educar (Freud), pois esta pretensão enseja uma soberba narcisista, explicitada por uma docência pífia e relapsa em seus fundamentos acerca de seu próprio processo pedagógico[12]. Chega a ser algo por demasiado anacrônico sustentar o modelo ensino-aprendizagem vigente, pois ensinar é impor, é invadir, doutrinar, disciplinar, controlar[13] e, mormente, tornar o aluno um ser desumano. A sala de aula é lócus para humanizar, não escolarizar.

Ao ensinar, o professor torna o aluno um ser inumano, implodindo o pilar do senso de alteridade do acadêmico, isto posto, faz-se mister apontar um caminho para encontrarmos um aufklärung[14] para a teratologia narrada até aqui.

É neste ímpeto, que professor Warat nos dá uma luz nesta escuridão, ao sustentar que:

(...) os homens só se educam entre si e mediatizados pelo mundo; que ninguém educa a ninguém, que o que educa é a possibilidade de constituir um diálogo, fazer circular a palavra no “entre nós” do educador e do educando (WARAT, 2002, p. 387).

Observando o pensamento que Warat tem acerca do fenômeno educacional, constata-se que o professor argentino vincula-se por demasiado às projeções de Mikhail Bakhtin. Por sua vez, este filósofo russo inicia seu pensamento a partir da Linguística do Séc. XIX de Humboldt[15], cujo ponto peculiar é a projeção da capacidade comunicativa do homem como condição de possibilidade para sua existência, pois a língua e a linguagem acabam se evidenciando como imanentes ao pensar[16], entretanto, a linguagem, neste momento histórico, apresentará uma importância meramente secundária, uma vez que quem tomará a frente deste pensamento será a própria capacidade dialógica do sujeito. É com o diálogo, que será forjada a compreensão como um caminho a ser percorrido pelos envolvidos. Portanto, compreender será a confecção de um jogo de palavras postas e opostas que, assim, criarão uma circularidade entre o educador e o aluno[17].

Neste processo educacional, a significação adquire uma postura ativa e responsiva a partir da prática comunicativa, sustentada pela participação de todos os sujeitos que criarão e auxiliarão na construção do texto/pensamento do outro[18], convolando, assim, em um processo de cocriação entre os envolvidos. Vê-se que quem compreende nunca poderá afastar a hipótese de mudar sua forma de pensar, uma vez que a compreensão é, por si só, a consequência natural da mudança, da circulação das palavras e do enriquecimento epistemológico.

Ocorrendo a apropriação do processo educacional pelo próprio educando, não haverá a submissão do aluno ao controle dogmático, como é inerente ao contexto da metáfora anteriormente projetada. Eis o primeiro ponto para a mudança copernicana que a Faculdade de Direito reivindica. O protagonista da educação – o aluno -  como dono de sua história e pensamento. Para isso, participação do acadêmico em discussões é fundamental.

Certeza que os professores que estão lendo este texto pensaram o seguinte: “Ah... mas se pergunto para os alunos eles ficam mudos”. Exato! Há grandes motivos para isso, dentre eles: 1º) A inserção pedagógica do aluno, desde o ensino infantil, no contexto educacional que se pauta na teoria ensino-aprendizagem de cariz ambientalista e na corrente newtoniano-cartesiano [19]; 2º) o efeito oblomov.

Para discorrer acerca deste efeito, chama-se a colação a obra literária intitulada Oblomov, escrita por Ivan Gontcharóv, o protagonista desta narrativa, Iliá Ilitch Oblomov, era o proprietário das terras de Oblómovka, de origem russa, dramático, pessimista, rico e residente nesta propriedade que, em tese, gerenciava. Basicamente, Iliá conseguia sua renda a partir da produção das pessoas que trabalham por lá (chamados de mujiques). Durante sua vida, sempre demonstrou um baixíssimo interesse pela educação. Era por demasiado complacente, chegando a um nível de refutar qualquer pretensão de se inquietar com algo que poderia, eventualmente, incomodá-lo. Desta maneira, restava a ele ficar fadado a permanecer em seu divã com seu belo roupão chamando aos berros Zakhar[20] – seu mordomo, que fazia tudo para e por Oblomov.

Em síntese, a vida de Oblomov se passava entre seus profundos sonos e suas refeições diárias. No interstício de ambos, ele recebia visitas: a que mais apreciava era de seu amigo Andrei Stolz.

Andrei era de nacionalidade russo-germânico, aprendeu a língua russa com sua mãe e, também, lendo livros. Ao contrário de Oblomóv, Stolz tinha um instinto pró-ativo, tanto que, desde criança, analisava mapas e métricas de poemas de grandes escritores. Mas ele não era um mar-de-rosas, pois em certa oportunidade fugiu de casa por uma semana, e voltou armado com uma espingarda. Incontinenti com toda essa situação, seu pai o pegou pelo colarinho e lhe deu um forte pontapé nas costas, admoestando-o que somente retornasse a casa ao finalizar a tradução de 2 capítulos de uma obra, de mais a mais, deveria, ainda, decorar a fala dos personagens. Em apenas uma semana, Andrei realizou toda a tarefa e retornou ao lar.

Sempre animado com as ideias de Stolz, Oblomov começou a construir um plano para a instituição do processo de alfabetização para os mujiques, mas no momento da execução desta política, Iliá sucumbia à letargia que lhe era inerente. Assim, tudo que ele planejava acabou ficando largado no canto e esquecido, porque o mais importante, para ele, era se preocupar com nada e apenas desfrutar de seu sono e comer em seu divã[21].

Concluindo, é possível constatar que as características que dão cor ao personagem de Oblomov, são as mesmas peculiaridade que ensejam o silêncio eloquente do aluno na prática dialógica com o educador e os outros educandos, pois há um desinteressado, devido a sua letargia, por se inquietar, ou por procurar provocações que lhe causam uma agitação interna para buscar respostas (eis aquela angústia do Dasein). Nota-se que grande parcela dos acadêmicos colimam alcançar o quantum numérico suficiente para passar de semestre. E tão-somente. A educação como fator de emancipação torna-se algo irrisório frente a esta eterna relação de barganha de notas entre alunos e professores.

Eles – os alunos - foram semeados em um terreno fraco. Contexto fértil, pelo menos na área do Direito, para a difusão de literaturas de cariz simplificado, resumos e coisas deste gênero, de modo que o sujeito não se constituiu como um ser presente no mundo e apto a transformar a realidade. A literatura jurídica cunhada como “facilitada” promove uma espécie de dumping epistemológico no mercado científico, reduzindo por demasiado a qualidade da reflexão[22] (até difícil utilizar a palavra “reflexão” para esse tipo de “livro”).

Para superarmos este paradigma, o aluno deve inserir em sua vida acadêmica o fator Stolz, ou seja, deve percorrer um caminho cuja marca é a pró-atividade e a inquietação. Isso é o que faz a diferença no aluno. Ser inquieto, estar sempre à procura do horizonte de sentido das coisas, a partir de livros, reflexões e questionamentos. Questionar sempre. Promover o debate, esse é o eixo que locomove a emancipação epistemológica do acadêmico e, sobretudo, da academia. Pesquisar como emancipação (coisa que se fala amiúde desde Paulo Freire).

Para encerrar, parece-me que chegamos a um ponto que modificar o estado da arte é condição para a implementação de uma educação jurídica que atenda aos anseios de uma sociedade que (con)clama por concretização de Direitos Fundamentais. A escola de Direito precisa, parafraseando o saudoso Boaventura de Souza Santos, formar rebeldes competentes e não conformistas incompetentes. Temos que encerrar essa missão de estandardização do ensino jurídico, por meio de literatura de natureza epistemológica questionável, bem como solapar esse controle dogmático que é exercido contra o pensamento jurídico e contra o corpo discente. Queremos apenas uma Escola de Direito que forme humanamente o aluno.

 

 

 

Notas e Referências 

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[1] Uma nova Constituição traz novas demandas para resolver velhos problemas, como natural consequência, essas novas demandas avocam novas teorias (que superassem o modelo burguês-legalista de aplicação do Direito predominante aqui no Brasil), como: teoria da fonte, teoria da norma, teoria da hermenêutica, teoria do Direito, teoria da Decisão, teoria da Constituição. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 5a Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 386. O que fizemos para suprir estas novas demandas teóricas? Importamos teorias totalmente descontextualizadas. (Eis o porquê da necessidade de uma aduana epistemológica, posto que nessas importações poderia incidir o IITE (Imposto sobre Importação de Teorias Equivocadas). Fica a sugestão, posto que ao implementar o imposto, poderíamos, com a arrecadação, comprar bons livros que substituíssem as plastificações teóricas presentes nas prateleiras das bibliotecas universitárias, nos sedizentes artigos científicos e nas mesas dos Tribunais brasileiros).

[2] Warat propõe quatro facetas do senso comum teórico dos juristas, quais sejam: a função normativa, senda esta função a responsável por dar significação aos textos normativos, fixando critérios que disciplinam a ação institucional dos juristas. A segunda função do SCT é ideológica, de sorte que ele acaba por assumir uma faceta responsável pelo cumprimento da socialização, ou seja, difundindo valores jurídicos e sociais, e, ao mesmo tempo, retardando o papel social e histórico do Direito. No terceiro turno, o senso comum executa um papel retórico, o qual completa o papel ideológico, utilizando a linguagem como razão instrumental a partir de um “complexo de argumento” para efetivar o discurso ideológico do senso comum teórico. Por fim, o senso comum teórico realiza seu papel político calcando-se na sua respectiva função normativa, ideológica e retórica. A função política vem no afã de assegurar as relações de poder sob a égide do saber adquirido. Cf. WARAT, Luís Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. Ainda chama-se a colação: STRECK, Lenio Luiz. O senso (in)comum das -obviedades- desveladas: um tributo a Luís Alberto Warat. RECHTD. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, v. 4, p. 185-192, 2012.

[3] Para compreender o que é a clareira a partir da filosofia hermenêutica de Martin Heidegger, deve-se chamar a colação a discussão existente entre as correntes teóricas que perpassam a filosofia do conhecimento desde a antiguidade, que são: as cadeiras do atomismo, do processamento, da neutralidade e da monológica. Tais cadeira, constituem duas grandes escolas da metafísica, a clássica de natureza essencialista e a moderna, de cariz voluntarista. Entretanto, Martin Heidegger se aproxima de um espaço que podemos nominar como um “impulso antimonológico”, de modo a concluirmos que a ontologia fundamental heideggeriana promove um ataque ao "subjetivismo", ou seja, pensamentos que tentam observar e compreender as coisas a partir da própria consciência pensante do sujeito. Heidegger vem no afã de elidir esta postura subjetivista e incoerente com o horizonte de sentido da metodologia fenomenológico-hermenêutica. A referida corrente filosófica projeta como um de seus eixos a Lichtung (trazer-à-luz, isto é, simbolicamente, uma clareira). O filosofo alemão tenta alcançar, calcado neste fenômeno (clareira), a possibilidade do desvelamento, que fará exsurgir o modo-de-ser das coisas, assim, aparecerá e será vivenciadas a compreensão da construção histórico-institucional de seu sentido. O manancial deste pensamento está localizado na Grécia antiga, mormente, à luz das ideais epistemológicas de Platão. Este pensamento, por muito tempo, foi compreendido de forma equivocada, pois ao caminhar dos anos surgiram ideias, que colocavam a representação interna da consciência do sujeito pensante como a condição para o “desvelamento”. O paradigma hermenêutico construído por Heidegger sustenta que esses pensamentos equivocados distorcem, igual ou inversamente, o pensamento platônico, de mais a mais, o próprio filosofo alemão colima utilizar o seu impulso antimonológico a partir da compreensão de um prelineamento existencial da finitude do Dasein, explicitando o ser-para-a-morte, assim, ele acaba por preterir novamente o subjetivismo da consciência do sujeito. E o fato de compreender que é ser-para-a-morte, desperta no Ser-aí sua angústia (interessante notar como desde de Kierkegaard a questão da angústia se apresenta como ponto fulcral da existência do ser), que endossa aquele ímpeto pelo descobrimento. A Literatura Filosófica Contemporânea aponta que, em certa medida, Heidegger revisou a tradução de Aletheia do grego, a qual, para muitos, significava não-verdade, mas em Sein und Zeit, traduza-se para des-velamento. Portanto, a Lichtung exsurgirá para o emergir do ser-no-mundo, entretanto, a ótica platônica não vislumbrou a Aletheia a partir deste cariz ontológico. O des-velar não é uma capacidade do Dasein, mas sim seu modo-de-ser. Por conseguinte, a ontologia fundamental, surgida à luz do giro ontológico-linguístico, vem no afã de promover uma revolução copernicana nas teorias do conhecimento, solapando a famigerada vontade de poder arraigada na metafísica moderna que já não irá ocupar o lugar central do conhecimento. Em síntese, a Aletheia é condição de possibilidade para o surgimento da Lichtung. Além disso, há de apontar que, para o pensamento heideggeriano, o pensamento filosófico é um fenômeno que provoca o esquecimento do ser, retornando o homem ao lócus dos entes, melhor dizendo, em um plano de mera existência. Consequentemente, este plano o distanciará do ser que alberga a verdade.  Visualizando este panorama, nota-se que o mundo prático é permeado pelo esquecimento. Para combater esse esquecimento, deve-se realizar um esforço filosófico para o aproximar do ser. Essa aproximação dá-se a partir da Aletheia. Para isso, Heidegger propõe, como olhar metafórico, uma paisagem pastoral na qual os homens estão imbuídos em uma clareira que apresenta uma luminosidade intensa. A referida clareira, ainda, concede uma presença (afecção, o sentimento de presença) provinda do ser, e é condição de possibilidade para o cuidado (ser é cuidado) do ser, tonando, assim, a Linguagem como a morada do ser. Destarte, a Linguagem desempenhará uma papel de proteger o Dasein da luz ofuscante do ser. E, também, a Linguagem é fundamental para a absorção da verdade. Tanto assim, que, ulteriormente, Gadamer trabalhará a ideia que o único ser que se projeta verdadeiramente como ser é a própria Linguagem. Quanto ao ponto do esquecimento do ser, Heidegger apresenta duas facetas possíveis, sendo-as: o Dasein como um ente privilegiado que vivencia seu esquecimento, e necessita enfrentar o ser; ou explicita o Dasein como ente que no afã de preencher essa indeterminação, soçobrar-se-á ao esquecimento e ficando fadado ao esquecimento como seu horizonte ontológico. Porém, salienta-se que não se coloca a problemática do ser a partir do panorama do esquecimento, de modo que, embora o esquecimento influa diretamente no Dasein, o Ser-aí encontra-se na escuridão do ser que se retira. Necessitando este ente privilegiado se apropriar (Das Raub) do sentindo que foge para o esquecimento. Ademais, o pensamento heideggeriano coloca, metaforicamente, o homem como uma espécie de pastor do ser, no qual se encontra imerso em um lugar no qual habita a verdade do ser (lugar este que é a Linguagem), eis a necessidade de ele desempenhar o papel de velar e proteger a verdade do ser. Com isso, o Dasein (oportuno salientar que, embora alguns comentaristas do pensamento de Heidegger relacionam Dasein com o Homem, esta postura teórica é um tanto quanto temerosa, pois ao fazer esta relação está-se, ao mesmo tempo, efetuando uma “antropologização“ de um pesamento filosófico (STEIN, 2014, p. 82))  adquire o exercício de guardar (no aspecto de cuidado, heideggerianamente falando) o sentido do ser. Por isso que este pastor do ser está presente na abertura na qual se encontra o ser, abertura esta que se situa em uma esfera ontológica. O ser aparece na clareira como um modo-de-ser-no-mundo, entretanto, é, ainda, possível que o ser ao lado esteja velado. Devendo o Dasein imergir em uma não-verdade deste ser para explorar, hermeneuticamente, as suas condições de possibilidade que ainda estão inexploradas. Por fim, o Dasein será posto na clareira onde habita o ser, ser este que mora na Linguagem, desta maneira, o Dasein ouvirá a palavra do ser (é fundamental apontar uma divisão silábica feita por Lenio Streck que tem um fim ontológico, diz o jurista que palavra é pá-que-lavra, uma vez que a palavra é quem semeia o sentindo do ser). Cf. HEIDEGGER, Martin. O Fim da Filosofia. In:______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os pensadores). p. 84. TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Trad. Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Edições Loyola. 2000. p. 90-91. STEIN, Ernildo. Da Fenomenologia Hermenêutica à Hermenêutica Filosófica. In. Veritas, vol. 47, n. 1, Porto Alegre, março 2002. SAFRANSKI, Rüdiger. Un maestro de Alemania: Martin Heidegger y su tiempo. Trad. Raúl Gabás. 1ª Ed. Barcelona: Fábula. Marzo. 2003. p. 187-188. HEIDEGGER, Martin. El concepto de tiempo. Trad. Jusús Adrián Escudero. Barcelona: Herder Editorial, 2008. p. 37. STEIN. Ernildo. Às voltas com a Metafísica e a Fenomenologia. 1ª ed. Ijui: Editora Unijui, 2014. p. 82. HOY, David Couzens. Heidegger and the hermeneutic turn. In. GUIGNON, Charles. The Cambridge companion to Heidegger. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. p. 182.

[4] Quando se coloca o iluminar como condição de possibilidade para a compreensão do fenômeno, refere-se à compreensão do fenômeno como uma permanência constante de uma espécie de reconhecimento. Entretanto, o reconhecimento não é uma alusão ao fato de compreender o que outrora já compreendera, mas sim compreender o compreendido constituindo-o, em sua historicidade, eis o exsurgimento da pré-compreensão, como uma ´´iluminação`` na qual se compreende a razão hermenêutica da coisa. Este reconhecimento é sustentado pela Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer, a partir do momento em que o filósofo remete esta questão ao ponto central do platonismo, inserido na corrente da anamnesis. Projeta Gadamer: “Juntamente com sua doutrina da ‘anamnesis’, Platão concebeu a ideia mítica da reminiscência como caminho de sua dialética, que procura na idealidade da linguagem, a verdade do ser. Na realidade, um tal idealismo da essência é posto no fenômeno do reconhecimento. O conhecido alcança seu verdadeiro ser, e mostra-se como o que ele é apenas por meio do reconhecimento. Enquanto reconhecido, é aquilo que se mantém firme em sua essência, liberto da causalidade de seus aspectos.” Para maior informações, vide GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método, Vol. I. Salamanca: Síguime, 1993. p. 119.

[5] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4a Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11a Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 5a Ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

[6] WARAT, Luís Alberto. Introdução Geral ao Direito III: o Direito não estudado pela Teoria Jurídica Moderna.  Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editora. 1997. p. 33.

[7] Entende-se, nos quadros teóricos da psicanálise, o Pulso ou a Pulsão como um “processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de motricidade) que faz tender o organismo para um alvo”. Cf. LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

[8] DELEUZE, Gilles. Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. E ainda: FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p.17-90.

[9] RODRIGUES, Juliana Martins. A leitura de Deleuze sobre o masoquismo e o sadismo na teoria freudiana. Cad. psicanál. Rio de Janeiro, 1980. 303-315. No mesmo sentido vide: HEUSER, Ester Maria Dreher. Deleuze e Masoch: a frieza da pornologia. In. Revista Margens Interdisciplinar. V. 6, n. 7. 2010. p. 67-82.

[10] WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.

[11]  Fica aqui registrada essa bela frase dita nos ares da Suprema Corte.

[12] WARAT, Luís Alberto. Sobre a impossibilidade de ensinar Direito: notas polêmicas para a desescolarização do Direito. In. FAGÚNDEZ, Paulo Ronay Ávila (org.). Retratos dos cursos jurídicos em Santa Catarina: elementos para uma educação jurídica. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2002. p. 345.

[13] WARAT, Luís Alberto. Op. Cit. p. 346.

[14] Kant assenta em sua obra Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? que “Aufklärung” é um espaço para a fuga (Ausgang) do homem, nesta escapatória ele alcançaria o seu estado de maioridade, pois, para Kant, o homem é culpado pela sua menoridade, uma vez que ela é tida como a incapacidade de “fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo” (interessante notar como esta cooptação da direção do sujeito é feita pelo dogmatismo jurídico), isto é, deixar-se, na falta de coragem, de servir a si ou a sua consciência, para servir a direção de outro. Aponta-se, ainda, que a Aufklärung propõe-se como o advento que inaugura, em certa medida, o Iluminismo. Para maiores informações vide: KANT, Imannuel. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? In: Textos seletos. Trad. Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Ed. Vozes, 1974. Recomendo também a leitura dos seguintes textos: TEMPLE, Giovana Carmo. Aufklärung e a crítica kantiana no pensamento de Foucault. Cadernos de Ética e Filosofia Política (USP), v. 14, p. 1-30, 2009. FILHO, José Eduardo Pimentel. Kant e Foucault, da Aufklärung à ontologia crítica. Griot – Revista de Filosofia, v. 5, n. 1, junho/2012. p. 28.

[15] Cumpre apontar, a título de contextualização, que Humboldt juntamente com Karl Vossler foram os precursores dos alicerces que sustentariam o estruturalismo linguístico, inaugurado a partir da primeira reviravolta linguístico-pragmática, que culminou na constituição da filosofia da linguagem e nos estudos linguísticos de Wittgenstein I e Saussure. É neste momento que a Linguagem coloca-se como condição de possibilidade para a compreensão dos fenômenos, chamando a colação uma notória importância para os estudos filosóficos da linguagem. Assim, compreender a linguagem é além de compreender seu modo-de-ser, é compreender que ela é condição de possibilidade para o ser, e, mormente, para seu surgimento no mundo prático, ou seja, é a partir da filosofia hermenêutica de Heidegger que compreendemos que o único ser que ser o é, é a Linguagem. Ademais, é corriqueiro que muitas pessoas (con)fundem a Linguística com a Filosofia da Linguagem, mas são coisas distintas, e para compreendermos o que são ambos, é necessário distinguirmos 3 fenômenos, quais sejam: I) a Filosofia Linguística/Filosofia da Linguagem Ordinária: responsável por delinear um método de investigação de questões e inquietações filosóficas por meio de seus mecanismos de difusão, sendo-o a Linguagem; II) a Filosofia da Linguagem: tem como seu horizonte de sentido a exploração da linguagem a partir de um olhar filosófico, tendo como uma de suas maiores angústias a compreensão de fenômenos como o sentido, a verdade, os planos semióticos de sintaxe e de semântica, o pragmatismo, além disso, pretendia-se a construção de uma teoria do significado como ponto nodal de uma verdadeira teoria da linguagem, eis o momento em que há o aparecimento do estruturalismo linguístico e, em certa medida, da filosofia analítica da linguagem (sendo-a um branch teórico do (neo)positivismo lógico, pois, para alguns analíticos, é um equívoco equiparar integralmente a filosofia analítico com o positivismo lógico), tendo como precursores Carnap, Frege, Russell, Quine, Wittgenstein I e Saussure. Aliás, embora há grandíssimas divergências entre Carnap e Heidegger, os precursores influíram, mutatis mutandis, nos pensamentos que vieram a partir do giro ontológico-linguístico, sobretudo, nos dois teoremas fundamentais do paradigma hermenêutico construído por Heidegger e Gadamer, o círculo hermenêutico e a diferença ontológica. Todavia, ambos os filósofos alemães colocam a linguagem sob a égide de um cariz ontológico, ao passo que os teóricos da filosofia analítica elencados apresentam a Linguagem de forma meramente lógica e racional, pois se preocupavam em colocar a Linguagem de forma tão lógica e descritiva que alçasse a um nível de proposições descritivas aritmeticamente alinhadas a uma razão lógica e desvinculadas a outras áreas das ciências do espírito (Dilthey), elidindo até as plataformas do pragmatismo e da linguagem natural, atendo-se, desta maneira, à linguagem objeto e a metalinguagem, eis um dos pontos de divergência. Com efeito, o paradigma hermenêutico seria a própria superação desta racionalismo lógico. Destarte, a compreensão da Linguagem, no paradigma hermenêutico, adquire um sentido, a partir de Gadamer, como uma questão de autocompreensão (Selbsvertändnisses) descobridora do próprio sujeito, ou seja, a hermenêutica chega a um nível tal de ser filosófica que pode ser nominada como uma filosofia prática, compreendendo uma espécie de esfera linguística. Portanto, a experiência hermenêutica endossa-se em seu cariz ontologicamente linguístico. É importante salientar que os filósofos analíticos e os filósofos do hermeneutic turn seguem pensamentos totalmente distintos, mas é possível ver um elo conteudístico entre ambos, tal ligação seria a Linguagem como eixo fundante dos respectivos paradigmas. Observando o retrovisor histórico-institucional da Filosofia Analítica da Linguagem, tem-se como seu sentido ser uma oposição ferrenha ao psicologismo e ao idealismo vigente no Séc. XIX, à vista disso, será com o pensamento de Gottlob Frege que a filosofia tomará um rumo diferente daquele solipsismo metódico inerente ao idealismo transcendental de fito (neo)kantista de Robert Reininger, direcionando-se para a observação da linguagem como fundamento da matemática e, consequentemente, da própria natureza da linguagem, linguagem esta de jaez formal e colimada a se reduzir como algo aritmético e lógico, para se autofundar como uma metalinguagem (há de salientar que, na mesma corrente da filosofia da linguagem, aparecerá o embate entre linguagem natural, linguagem objeto e metalinguagem, pois a linguagem natural em um primeiro momento demonstrou ser falha nos parâmetros positivistas vigentes, uma vez que a linguagem natural não trará aquele logicismo pretendido, assim, esta corrente de pensamento acabou por influir até na compreensão do positivismo normativista do início do séc. XX, bastar vermos as observações de Warat e Vernengo acerca do pensamento de Kelsen quando este projeta a relação entre Ciência do Direito e o Direito). Derradeiramente, III) Filosofia da Linguística: neste momento, inaugura-se o que se convencionou como “pós-estruturalismo” o qual tem como afã explorar problemas metateóricos a partir da semiologia e das teorias linguísticas, chegando a conceber uma espécie de engenharia da Linguagem, apresenta-se como expoentes desta corrente Jacques Derrida e Roman Jackbson.  Para maiores informações vide: STEGMÜLLER, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea: introdução crítica. Trad. Adaury Fiorotti e Edwino Royer. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. pg. 217-220. MARCONDES, Danilo. Filosofia, Linguagem e Comunicação. 5ª Ed. São Paulo: Cortez, 2012. pg. 52-53. WARAT, Luís Alberto. O Direito e sua Linguagem. 2ª Ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, pg. 42-43. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Loyala, 2001. pg. 103. PALMER, Richard. Hermenêutica. Trad. Maria Luísa Ribeiro Ferreira. 1ª Ed. Lisboa: Edições 70, 2014. pg. 130. PUNTEL, Lorenz Bruno. Estrutura e Ser: um quadro referencial teórico para uma filosofia sistemática. Trad. Nélio Schneider. Editora Unisinos: São Leopoldo, 2008. p. 263. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. José Arthur Giannoti. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. p. 111.

[16] Esta corrente culminará nos estudos de atos de fala de Searle e Austin, sendo que estes pensadores influenciaram sobremaneira as teorias discursivas-procedimentais do século XX, mormente, a Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy. Para maiores informações vide: ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. 3a Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

[17] BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martin Fontes, 1997. p. 378-379.

[18] FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Implicações de ser no mundo e responder aos desafios que a educação nos apresenta. In. _______(Org.). Educação, Arte e Vida em Bakhtin. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. p. 98.

[19] Neste modelo, quem transmite as informações é somente o professor a partir de uma pedagogia diretiva, sendo assim, o horizonte da aula é explorar o “objeto” que será expresso por meio de conceitos, portanto, o professor se portará como um tradutor das representações abstratas, restando ao aluno reproduzir de forma passiva. O educando se submeteu a este modelo durante 15 anos, em média, de sua vida educacional, é inconcebível a uma mudança copernicana no modelo ensino-aprendizagem só pelo fato de ingressar na Universidade. não adianta nada inserir, no processo educacional do ensino superior, as metodologias ativas ou outros meios de participação ativa do discente, se antes de adicionar medidas deste quilate, você não desconstruir o modelo de aprendizagem do aluno, isto é, quem precisa mudar, primeiramente, é o discente (participando de palestras sobre formas diferenciadas de aprendizagem, somado a isso, a própria instituição educacional deve dispor de um quadro de psicopedagogos para auxiliarem neste novo caminho que o acadêmico passará a traçar). Então, depois desta desconstrução, você demonstrará ao docente como proceder, em suas aulas, com o mecanismo de metodologia ativa. Primeiro o aluno, depois o professor. Acerca do construtivismo, para maiores informações vide: MATUÍ, Jiron, Construtivismo: teoria construtivista sócio-histórica aplicada ao ensino. São Paulo: Moderna; 1995.

[20] Em semana de provas os professores se tornam o Zakhar. Os alunos gritam desesperada a procura dos professores querendo que ele faça tudo para e por eles. Ai como a vida é irônica...

[21] GONTCHARÓV, Ivan Aleksándrovitch. Oblómov. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify. 2012. p. 253.

[22] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e Jurisdição: Diálogos com Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017. p. 19.

 

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