Economia compartilhada e a precarização do trabalho: possibilidades de organização dos usuários-trabalhadores e o grau de influência de usuários-consumidores

09/08/2019

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Na esteira de nossa última publicação em nossa coluna, daremos continuidade ao tema da economia compartilhada, uberização, sociedade do consumo e sociedade do trabalho. Pelo que pode se depreender da atual conformação do capitalismo global, considerando os períodos recentes de crise, o avanço do neoliberalismo, o desenvolvimento da tecnologia e informação, empresas com negócios baseados na internet e aplicativos de smartphones possuem um amplo, lucrativo e duradouro horizonte.

Parte dessas empresas, por exemplo, Uber, Airbnb, Rappi, iFood, estão inseridas no âmbito da economia compartilhada e hoje representam uma fatia bastante significativa dos serviços contratados via aplicativos e internet, envolvendo grande número de usuários (sejam eles usuários-consumidores ou usuários-trabalhadores). Para fins de exemplificação, no Brasil, atualmente, os aplicativos de serviço formam, em conjunto, o maior empregador do país [1]. Uma força de trabalho de cerca de 4 milhões de pessoas estaria prestando serviços a essas empresas.

Em linhas gerais, podemos nos valer da definição de economia compartilhada apresentada por Tom Slee em seu livro What’s Your Is Mine: Against The Sharing Economy: “The Sharing Economy is a wave of new businesses that use the Internet to match customers with service providers for real-world exchanges such as short-term apartment rentals, car rides, or household tasks.” [2] Adiante, Slee apresenta ressalvas sobre a utilização do termo “economia compartilhada”, indicando que muitos outros também podem ser usados, como consumo colaborativo, plataformas peer-to-peer, GIG economy (economia de “bicos”), ou, ainda, “economia sob demanda”.

Trata-se de um modelo que já redefiniu o modo que se estrutura a sociedade de trabalho e a maneira como as pessoas acessam e consumem serviços e produtos. Como dito acima, as empresas de economia compartilhada e aplicativos de serviços ocupam uma fatia cada vez mais significativa da produção de riqueza e circulação de valores a nível mundial. A partir desse contexto, pode ser produtivo indagar a respeito das condições de trabalho dos usuários-trabalhadores envolvidos em serviços de economia compartilhada, assim como sobre as possibilidades organizativas destes perante às empresas para as quais prestam serviços.

Nesse sentido, no dia 10 de maio de 2019, a Uber oferta inicial de capital na Bolsa de Valores de Nova York. Na mesma semana, os motoristas parceiros da Uber ao redor do mundo realizaram a primeira paralisação em escala global de motoristas de aplicativos [3]. O protesto ocorreu nas principais cidades do mundo e no Brasil concentrou-se nas capitais. O ato unificado representa uma das primeiras iniciativas dos motoristas parceiros dos aplicativos de transporte urbano e demonstra tensão existente dentro desse sistema.

Ricardo Antunes, sociólogo do trabalho brasileiro, adverte desde longa data sobre as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores nas últimas décadas no tocando à organização e luta por direitos: “A fragmentação, heterogeneização e complexificação da classe-que-vive-do-trabalho questiona na raiz o sindicalismo tradicional e dificulta também a organização sindical de outros segmentos que compreendem a classe trabalhadora” [4].

Por outro lado, um fato trágico ocorrido recentemente no país envolvendo trabalhadores da economia compartilhada pode ser acrescentado à exposição: a morte de Thiago Dias, entregador do aplicativo Rappi, no dia 06 de julho de 2019, após sofrer um AVC durante uma entrega que realizava [5]. O acontecimento foi amplamente divulgado e relatado em razão de ter causado grande comoção, explicitando o descaso do aplicativo e, também, a fragilidade do sistema de saúde que não foi capaz de prestar socorro, não cabendo efetuar descrições detalhadas. Apesar da repercussão midiática, impressiona no ocorrido a ausência de desdobramentos junto aos demais trabalhadores do aplicativo (e de aplicativos semelhantes), aos usuários-consumidores do aplicativo em questão e até mesmo das próprias empresas envolvidas no caso.

Algumas questões importantes surgem dos episódios citados: os motoristas-parceiros da Uber já possuem um nível de coesão maduro, uma vez que foram capazes de organizar uma paralisação ao redor do globo? Tais paralisações ocorrerão com maior frequência a partir de agora? São capazes de forças as empresas de economia compartilhada a cederem e propiciarem uma reformulação no modo de contratação dos serviços? Qual o papel dos usuários consumidores perante precarização dos trabalhadores dos aplicativos de serviço?

Encerramos esse breve ensaio seguindo a linha dessa última indagação. O atual momento vivenciado pela classe-que-vive-do-trabalho (seguindo Ricardo Antunes) não apresenta um horizonte positivo, especialmente para os trabalhadores inseridos no contexto da economia compartilhada e aplicativos de serviços. Melhores condições de trabalho, incluindo segurança e remuneração, dificilmente serão alcançadas pelos trabalhadores se buscadas por estes exclusivamente. Faz-se necessário uma atuação conjunta de toda a sociedade, sendo que os consumidores dos aplicativos possuem peso maior nessa “negociação”. Vivenciamos uma época em que atitudes preconceituosas de todas as espécies estão sendo abolidas pelas empresas e veementemente combatidas pelo público consumidor quando por ventura ocorram. Por qual motivo tolerar o desrespeito aos direitos dos trabalhadores de aplicativos de serviços e economia compartilhada?

 

Notas e Referências

[1] APLICATIVOS COMO UBER E IFOOD SÃO FONTE DE RENDA DE QUASE 4 MILHÕES DE AUTÔNOMOS. Estadão. Disponível em: <https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,aplicativos-como-uber-e-ifood-sao-fonte-de-renda-de-quase-4-milhoes-de-autonomos,70002807079>. Acesso em: 07 ago. 2019.

[2] SLEE, Tom. What’s Your Is Mine: Against The Sharing Economy. 1ª Ed. OR Books: New York. 2015. P. 15.

[3] UBER: ASSIM COMEÇAM AS GREVES DO FUTURO. Outras Palavras. Disponível em: <https://outraspalavras.net/direitosouprivilegios/uber-assim-comecam-as-greves-do-futuro/>. Acesso em: 07 ago. 2019.

[4] ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 4ª Ed. Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1997. P. 62.

[5] ENTREGADOR DO RAPPI PASSA MAL, É IGNORADO POR EMPRESA, UBER E SAMU E MORRE EM SP. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/07/entregador-do-rappi-passa-mal-e-ignorado-por-empresa-uber-e-samu-e-morre-em-sp.shtml. Acesso em: 07 ago. 2019.

 

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