E se você não tivesse que escolher entre abolicionismo e feminismo? – Por Patrícia Cordeiro e Guilherme Moreira Pires

21/01/2016

“É preciso buscar instrumentos mais eficazes e menos nocivos do que o fácil simplista e meramente simbólico apelo à intervenção do sistema penal, que, além de não realizar suas funções explícitas de proteção de bens jurídicos e evitação de condutas danosas, além de não solucionar conflitos, ainda produz, paralelamente a injustiça decorrente da seletividade inerente à sua operacionalidade, um grande volume de sofrimento e de dor, estigmatizando, privando da liberdade e alimentando diversas formas de violência”.

Maria Lúcia Karam

E se você não tivesse que escolher entre abolicionismo e feminismo? Este é o questionamento proposto pela página “Mulheres Abolicionistas”.

A linguagem punitiva presente nas diversas relações, induz a acreditar que quando se duvida das “soluções” propostas pelo Direito penal para supostamente proteger a mulher, o faz por não compreender ou se importar com a gravidade do problema. É um discurso que não admite dúvidas e posicionamentos contrários.

Fortemente embasada e legitimada entre viciadas simbologias e ficções, essa linguagem de captura mostra-se responsável pelo instituir de artificialidades responsáveis por um distanciamento do que inteligentemente fazer ante as situações problemáticas (e concretudes da vida em geral), colonizando nossos mundos com suas categorias (a exemplo de "crime") estanques, estáticas, congeladas e congeladoras, incapazes de lidar com a complexidade e fluidez das relações humanas; pautando-se em sujeitos e desejos universais (inclusive na determinação da prisão como elemento central desse fluxo retilíneo associado ao crime e à pena) ignorando, exemplificativamente, que nem todos desejam, nem todos anseiam por uma hierarquizada tomada de decisão política, genericamente construída discursivamente (com tantas premissas equivocadas, dinâmica e pautas totalizantes, tautologias) e verticalmente incutida por uma aparelhagem burocrática sequestradora de pessoas envolvidas em situações problemáticas.

Há mundo para além da linguagem punitiva, Direito Penal e poder punitivo, cujos conjuradores insistem e impõem que a proteção à mulher precisa passar pelo recrudescimento das penas, castigos e punições, novamente ancorando-se em problemáticas simbologias legitimantes, mescladas com concretudes melancólicas.

Nessa arena, deixam de emergir movimentações, potencialidades, possibilidades atreladas a uma imaginação não punitiva,  com efetivo potencial de reduzir danos, dores e sofrimentos (ao invés de amplificá-los!).

Discursos dispostos a trilhar para além (e fora) do fluxo pré-estabelecido do poder punitivo, e que nele não apostem em suas múltiplas capturas e controles incidentes sobre o mundo, são vistos com desconfiança e repúdio, inclusive por alguns movimentos feministas.

Nesse jogo, em que as regras não podem ser questionadas, e as “soluções” somente são aceitas quando partem da punição, as mulheres pouco importam. Dessa forma, o sistema penal às usa para ampliar, legitimar e endurecer técnicas de controle, que recairão sobre estas mesmas mulheres, que alimentaram o “Deus da Punição”, os deuses. Aliar-se ao poder punitivo, buscar direcioná-lo ao alvo escolhido, é subestimar o poder de captura dos tentáculos desse sistema, que, longe de emancipar a mulher, a torna mais refém do paternalismo legal e mais vulnerável ao julgamento moral.

“Essa problematização é tanto mais urgente quanto mais se pensa que a cada denúncia ou sessão de tribunal sobre feminicídio, correrá simultâneo um juízo moral sobre a vida de uma mulher que foi exterminada, atualizando exatamente as relações autoritárias que produzirão o extermínio de outras tantas mulheres – donas de casa, prostitutas, traficantes, companheiras de traficantes, turistas, operárias, usuárias de drogas, freiras, empregadas domésticas, universitárias.” (PASSOS, Aline, 2015)

Por existirem diversos feminismos (interseccional, radical, liberal, libertário e outros), é importante situar o discurso: o feminismo do qual partimos é o libertário, que traz dentre suas singularidades a desconfiança ao poder punitivo, bem como a recusa e descrença no Estado como fonte de proteção e igualdade.

Cabe aos movimentos feministas atentar-se que a linguagem gira em torno do dito e do calado, e que a lei repressiva é um ocultar mostrando. Oculta que a punição serve de engodo, que em última instância representa um “cale-se”, inclusive – e principalmente – para a mulher. Mostra uma proteção que é simbólica, uma resposta que é vazia de sentido e estéril. Nesse ocultar mostrando, medidas que efetivamente poderiam servir à mulher, são postas na categoria do invisível, do impensável, inimaginável, indiscutível, tragadas, engolidas, encarceradas e limitadas aos contornos e sombras das demandas do sistema; demanda também pelo sistema, cuja tendência não é mover-se desconstruindo-se, mas energizando-se, no sentido de sua manutenção e perpetuação, amoldando-se em cada situação no sentido de se preservar, expandir, sedimentar.

“Essa demanda pelo sistema acaba por reunir o movimento de mulheres, que é um dos movimentos mais progressistas do país, com um dos movimentos mais conservadores e reacionários, que é o movimento de Lei e Ordem. Ambos acabam paradoxalmente unidos por um elo, que é mais repressão, mais castigo, mais punição [...]” (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. p.46, 1999).

Todavia, se o máximo que o sistema repressivo pode fazer (supostamente) em benefício de uma mulher – que teria sofrido (com) uma violência – é infligir dor e sofrimento estéril em alguém julgado responsável por sua produção, afinal, o que de positivo esse sistema teria a oferecer?

Willian Godwin, anarquista, no escrito “dos crimes e punições” questionou o princípio da punição, afirmando que para que haja justiça é imprescindível a existência de benefício para os envolvidos, e questionou: “Por que inflijo o sofrimento a outro? Se não for para seu próprio benefício nem para o benefício de outros, posso estar correto? O ressentimento, a mera indignação e o horror que senti em relação à vileza justificam-me em submeter um ser à tortura inútil?”

Talvez uma pergunta ainda mais importante: o que, de positivo, o sistema penal não oferece? Daí, deparamo-nos com movimentações próximas de respostas reais para problemas, para situações, por vezes tão complexas. Não buscar nesse sistema estéril de respostas reais, pensando confinados pelas capturas da linguagem criminal, mas apesar dela, para além dela, fora dela.

Como disse Aline Passos: “É urgente que os movimentos e demais interlocutores deste debate, humanista e/ou feminista, social e/ ou acadêmico, encarem de frente os efeitos de suas próprias demandas contra a cômoda solicitude do sistema de justiça criminal em abraçá-las. Deslocar-se desse lugar comum pode ser a diferença entre o último suspiro e o respiro ofegante da batalha.”

Atentamos à violência que o sistema penal institui e institucionaliza, perpetua e amplia; o abolicionismo penal e o feminismo libertário (do qual partimos), situam-se fora da ótica punitiva e das pautas criminalizantes, não (re)alimentando e energizando culturas repressivas. Como destacou Hulsman, é importante diante de uma situação-problema questionar o que pode ser feito e por quem pode ser feito, no lugar de buscar culpados e asseverar punições. Dessa forma, não se abastece os desejos que sustentam a justiça criminal e que para a mulher representa mais um controle, desta vez da subjetividade. A resposta punitiva esgota respostas; mascara-se que o direito penal é também fonte de dor, exclusão e sofrimento estéril, e a criminalização é inversamente proporcional à proteção. Mulheres, não confiem no poder punitivo, o que ele tem a oferecer é um sonoro: cale a boca.

Se o que caracteriza os diversos tipos de feminismos é a preocupação com a mulher, o abolicionismo do qual falamos não é incompatível com os desejos feministas, pois representa precisamente a desestabilização de sistemas, fluxos e dinâmicas totalizantes brutalmente destrutivos e arbitrários, essenciais à construção e perpetuação de mundos regidos por controles, os quais mostramo-nos contrários.

Abolicionismos rasgam e desestabilizam a hegemonia e pretensão de absoluto de controles e capturas; são dilaceradores de hierarquias e controles.

Oferecem controles a menos e muitas possibilidades libertárias a mais. Caminhos, percursos, questionamentos, desvelamentos, experimentações, movimentos, novas linguagens e aprendizados que evidenciam a máscara de “obviedade” contida na linguagem criminal, expandindo nossos horizontes; expandindo nossos mundos.


Notas e Referências:

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999.

GODWIN, Willian. “de crimes e punições”. Texto extraído de An inquiry concerning political justice and its influence on moral and happiness, Livro VII., 1795. Publicado in Verve, n° 9, São Paulo, Nu-Sol, pp. 83-84.

HULSMAN, Louk. Temas e conceitos numa abordagem abolicionista da justiça criminal. In Verve, São Paulo, Nu-Sol/PEPG-Ciências Sociais PUC/SP, n. 03, 2003, pp. 190-209.

KARAM, Maria Lúcia. Violência de gênero: o  paradoxal  entusiasmo  pelo  rigor penal. Boletim IBCCRIM, n. 198, nov. 2006.

PIRES, Guilherme Moreira. Os amigos do Poder: ensaios sobre o Estado e o Delito a partir da Filosofia da Linguagem. Buenos Aires: Libertaria, 2014.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos entre disputas, controles, capturas e cruzadas: militantes ou militares?. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/abolicionismos-entre-disputas-controles-capturas-e-cruzadas/ ISSN 2446-7405. Acesso em: 16/01/2015.

PASSETTI, Edson. AUGUSTO, Acácio. Anarquismos & Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

PASSOS, Aline. O feminicídio nas fronteiras da América Latina: um consenso? In ecopolítica, n° 12, São Paulo, pp. 70-92. 2015. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/article/view/24624> Acesso em: 14/01/2016.


 

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