“E se não fosse o samba?”: de Bezerra da Silva a George Floyd, colonialismo e seletividade penal

04/06/2020

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

O colonialismo deixou as suas marcas na humanidade. Racismo, segundo o Larousse Cultural, seria “um sistema que afirma a superioridade racial de um grupo sobre outro (...)”. De acordo com Dussel[1], quando o europeu, durante a colonização das Américas, dá de cara com o “índio” e assim o nomeia, surge uma das características do sistema colonial: a diferença entre o “homem”, este dotado de razão, e o selvagem, “o outro”.

“Seriam os índios homens?” A esta pergunta, respondeu de forma positiva a Igreja Católica, não o fazendo em relação aos negros, trazidos (à força) de África para as Américas.

No curso de Direito, qualquer currículo de Direitos Humanos informará a sua matriz liberal, dividida em gerações e afirmados, gradualmente, a partir do Iluminismo. Mas, quando a “Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão” da França foi criada, este “homem” era o europeu. Aquele, dotado de “cultura” e razão.

Na “região marginal do globo[2]”, índios e negros tiveram a sua humanidade negada, sendo estes os corpos sujeitados pelo colonialismo. Assim, quando George Floyd, homem negro estadunidense, é asfixiado até a morte, isto representa a continuidade da empresa colonial, na forma de um “racismo estrutural”. Sobre o tema, Samuel Vida e Felipe Milanez[3] sustentam que “racismo, colonialismo e conquista são termos inseparáveis[4]

Bezerra da Silva, homem negro e nordestino, morador do morro carioca, afirmou: “ e se não fosse o samba quem sabe hoje em dia eu seria do bicho?/ não deixou a elite me fazer marginal /e também em seguida me jogar no lixo”. A partir da penúltima frase, pode-se fazer uma ponte, numa desconstrução de sentido, com a obra “Outsiders: a Sociologia do Desvio”, onde Howard S. Becker[5] descreve os mecanismos de criminalização/rotulação realizados por determinadas camadas sociais sobre outras, a chamada “teoria do etiquetamento”.

Na música citada, Bezerra relata que, durante as revistas de rotina[6], após não encontrarem “aquele trezoitão”, os policiais o levavam para a delegacia e, “injuriados”, tinham que liberá-lo, ao descobrirem a sua “ficha limpa”. Era a chamada “prisão para averiguação”.

Outro homem afro-americano, anos antes ao assassinato de George Floyd, também morreu sufocado nos States, a terra da liberdade, enquanto dizia “i can’t breathe”, isto é, “não consigo respirar”. Assim como Bezerra, ele era constantemente “parado” pela polícia, de acordo com o documentário “A 13ª Emenda”.

Paulo Freire, em sua Pedagogia do Oprimido, afirma que o “ser menos” é a condição do oprimido, que ainda não se emancipou, dentro de um sistema de dominação. Ao imaginar que o seu destino era “o jogo do bicho”, isto é, uma contravenção, Bezerra expunha uma expectativa social lançada sobre a população negra: ser menos.

 Afinal, a prática da contravenção seria o seu “caminho natural”. Carla Akotirene, citando Ângela Davis, afirma que “(...) os homens negros sofreram consequências de raça-sexo, mergulhados de estereotipias e linchamentos”.

A prática do linchamento de negros era muito comum nos Estados Unidos pós-independência, de acordo com o (já citado) documentário “A 13ª Emenda”. O racismo estadunidense não se contentava com a criação de estereótipos: era preciso, como no caso de George Floyd, eliminar o perigo, isto é, o negro.

Na Bahia do início do Século XX, Nina Rodrigues, influenciado pela Criminologia Positivista de Lombroso[7], afirmava que negros e índios jamais atingiriam o grau de civilidade do europeu[8] (aquele, dos “direitos humanos” liberais). Por isso, a responsabilidade criminal dos primeiros deveria sofrer uma atenuação, dado o seu “atavismo”.

De acordo como Rodrigues, o negro sempre tenderia ao crime e à violência[9].

Ora, se a violência deve ser contida, e existem, nas ex-colônias, os indivíduos indesejáveis, estes devem ser retirados de circulação, seja via prisão[10], seja através da gestão de suas mortes, a chamada necropolítica (Mbemb).

Bezerra da Silva fazia o seu samba nos morros, onde morrem Joãos Pedros e Ágathas. O tempo passa, mas a tecnologia (neo)colonial não muda: de Bezerra a George Floyd, o Estado tentará tirar de circulação os indesejáveis.

E o Direito de matriz iluminista vai continuar a dizer que “homens e mulheres são iguais”. Mas, Sojourner Truth, mulher negra nascida escrava e vendida em um leilão, aos nove anos de idade, perguntou, em 1851: “eu não sou uma mulher[11]?”

 

Notas e Referências

[1] DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão.

[2] Termo utilizado por Zaffaroni na obra “Em busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal”

[3] hhttps://www.clacso.org/pandemia-racismo-e-genocidio-indigena-e-negro-no-brasil-coronavirus-e-a-politica-de-exterminio/ttps://www.clacso.org/pandemia-racismo-e-genocidio-indigena-e-negro-no-brasil-coronavirus-e-a-politica-de-exterminio/

[4] Dussel, em sua “Filosofia da Libertação”, afirma que o “Penso, logo existo” de Descartes se transformou no “penso, logo conquisto”, como marca da relação do europeu com outros povos

[5] BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 22..

[6] De acordo com o Código de Processo Penal, a busca e apreensão pessoal, o popular “baculejo”, só se justifica quando existirem “fundadas suspeitas”, capazes de legitimar a invasão da privacidade/intimidade de uma pessoa. Mas, de acordo com o relato de Bezerra, o seu estereótipo chamava a atenção “dos federais”, nas palavras do mesmo.  Segundo o CPP: Art. 240 (...) § 2o  Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior.

[7] Cesare Lombroso, médico psiquiatra que escreveu a obra “O Homem Delinquente”, visava identificar, através de características físicas, o “criminoso nato”. De acordo com Luciano Góes, o discurso Lombrosiano identificava o criminoso como um inferior, o que remete às raças “primitivas” (negro) e “selvagens” (índios).GÓES, Luciano. A tradução de Lombroso na obra de Nina Rodrigues: o racismo como base estruturante da criminologia.

[8]Nas palavras do próprio Nina Rodrigues, cujo nome batiza o Instituto Médico-Legal da Polícia Civil da Bahia: “Tanto é verdade que no Brasil o índio extinguiu-se, ou está em via de extinção completa, mas não se civilizou. “(...) O negro crioulo conservou vivaz os instintos brutais do africano: é rixoso, violento nas suas impulsões sexuais, muito dado à embriaguez e esse fundo de caráter imprime o seu cunho na criminalidade colonial atual. RODRIGUES, Raymundo Nina. As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/h53wj/pdf/rodrigues-9788579820755.pdf. pgs.46 e 49).

[9] “(...) Numa obra de fôlego (A escravidão, o clero e o abolicionismo, Bahia, 1887), escreveu o Dr. Anselmo da Fonseca, meu distinto colega nesta faculdade: A raça africana tem um defeito e um crime. O defeito é estar ainda atrasada no desenvolvimento da civilização e em um período em que já esteve a raça branca, que foi outrora canibal, como ainda hoje o são muitas tribos africanas e americanas, e que também já ignorou todas as artes, viveu sem leis e suportou o cativeiro. “ (idem, p.48)

[10] Ver BORGES, Juliana. O Que É Encarceramento em Massa? Belo Horizonte: Letramento Justificando, 2018, p.17.

[11] Extraído do livro Interseccionalidade, de Carla  AKOTIRENE,.

 

Imagem Ilustrativa do Post: BerkeleyDay2-3593 // Foto de:Annette Bernhardt // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mtumesoul/15350986374

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura