E quando as leis de trânsito não valem para o Estado?

12/02/2015

 Por Eduardo Januário Newton - 12/02/2015

A ofensa ao outro pode ser, também, explicada pela própria incapacidade de lidar consigo mesmo. A existência de alguns estereótipos, que existem aos milhares, pode passar por essa linha de raciocínio. Afinal, será que toda loira é desprovida de inteligência? Todo carioca é um malandro que quer obter vantagem alheia? E o baiano será que sempre nasce com a marca do cansaço? Essas assertivas não possuem qualquer fundamentação e denotam tão-somente os preconceitos ainda existentes em uma sociedade vigiada pelo discurso do politicamente correto.

A censura aos hábitos lusitanos também se encontra inserida nessa lógica de ataque ao outro como um puro mecanismo de defesa. Quiçá, ao voltarmos nossos olhares críticos para a antiga metrópole conseguimos esconder a nossa realidade letárgica e sem sentido que marca a atuação da burocracia estatal.

O caso aqui narrado não se trata de ficção ou delírio de um escriba de uma distopia, é um claro e triste exemplo da realidade fluminense em que a legalidade é marcada por uma perversa seletividade: ao cidadão, o rigor da lei impera e com ela todo o peso da máquina burocrática; por outro lado, ao Estado, restam as artimanhas e os atalhos retóricos para descaradamente praticar impunemente a ilegalidade.

Anualmente, os veículos particulares com placas do estado do RJ, para obterem o documento do licenciamento anual e, assim, poderem rodar pelas vias sem qualquer ameaça de apreensão, necessitam ser submetidos a vistoria no DETRAN, conforme determina os artigos 22 e 104, Código de Trânsito Brasileiro e Resolução CONATRAN nº 84, de 19 de Novembro de 1998. Deve-se, portanto, pagar o IPVA, a taxa da vistoria, realizar o agendamento e submeter o veículo ao crivo estatal. Caso todos os itens avaliados (pneus em bom estado, luzes de freio e ré, setas, limpadores de para-brisas, extintores, limites de poluentes respeitados, entre tantos outros) sejam aprovados, o proprietário poderá circular livremente com seu veículo no ano da vistoria. Caso contrário, restará o convívio com a ilegalidade, o que em tempos de waze, twitter e outros tantos aplicativos, permitirá a fuga dos caminhos que tiverem cercos policiais, as conhecidas “blitz”.

Diga-se, desde logo, que não se está a realizar a apologia ao descumprimento da lei; todavia, é de se estranhar o fato de que o próprio Poder Público que exige a realização da vistoria dos carros particulares, não adota o mesmo cuidado com a sua frota.

No já distante ano de 2011, após a devida provocação da sociedade civil, o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro instaurou procedimento administrativo para apurar as condições das viaturas que realizavam o transporte de pessoas privadas de liberdade por ordem judicial. Inicialmente, a questão a ser examinada se restringia à possível ausência de cinto de segurança. No curso da instrução pré-processual, descobriu-se o absurdo, qual seja, nenhuma viatura do estado do Rio de Janeiro, após o seu emplacamento, realizava qualquer vistoria anual, o que justificou o ajuizamento de ação civil pública - autos do processo 00477089-12.2012.8.19.0001 – que questionava a ausência da atuação preventiva do DETRAN, o que colocava em risco não só os transportados, mas toda a coletividade.

Além das normas de trânsito já citadas, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), emitiu, em 1º de Junho de 2012, a Resolução nº 02[i], que aponta para a necessidade de vistoria periódica dos veículos que transportam pessoas privadas de liberdade.

Ora, se para o particular o desconhecimento da lei é inescusável, deve(ria) vigorar a mesma lógica para a atuação estatal, até mesmo porque o seu agir somente pode se realizar nos quadrantes da lei.

Mas, nem tudo que se encontra na realidade deontológica possui reflexo no mundo do ser. O estado do Rio de Janeiro, dentre outros argumentos defensivos, afirmou, e de maneira textual, que não realizou o licenciamento anual dos porque “[nos] veículos atuais, que estão efetuando o transporte de presos, há um número excessivo de multas sobre ele incidentes, as quais estão impedindo a realização da vistoria anual até que a questão seja solucionada.”

Diante dessa verdadeira confissão de ilicitude, que poderia ser tida como cômica se não representasse o descumprimento da lei pelo próprio Poder Público, alguns questionamentos se mostram apropriados e, por essa razão, são apresentados a seguir.

Que Estado Constitucional é esse, cuja legalidade somente serve para tolher a liberdade do cidadão?

Até quando o processo de construção da cidadania brasileira terá que conviver com a ameaça daquele que deveria servir de exemplo do cumprimento da lei?

A existência do Estado Infrator, e o caso aqui narrado foi somente um dentre os vários possíveis de serem destacados (os corretamente criticados auxílios pecuniários que, por meio de “dribles hermenêuticos” ferem a lógica remuneratória prevista na Constituição[ii], a forma como se desenvolve um processo penal pautado na inversão do ônus da prova[iii] foram exemplos recentemente destacados por Lênio Streck), demonstra que o caminho da superação de uma sociedade com nítida dificuldade em conviver a experiência democrática é longo, mas não podemos desistir.

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Sem título-2Eduardo Januário Newton é Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direitos Fundamentais e Novos Direitos pela UNESA.

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Refrências:

[i] Art. 3º - Os veículos de transporte de pessoas presas ou internadas devem ser periodicamente vistoriados pelo respectivo órgão de trânsito, bem como contar com todos os dispositivos de segurança previstos em regulamentação do órgão competente, notadamente cinto de segurança para todos os passageiros.

[ii] Artigo disponível em http://emporiododireito.com.br/?s=moradia

[iii] Artigo disponível em http://www.conjur.com.br/2015-fev-05/senso-incomum-tj-mg-mp-nao-provar-acusacao-la-invertem-onus-prova.

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