O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
Não há dúvida que vivemos um novo momento. O ser humano, às vezes em busca de segurança, às vezes em busca de desafios – eis um binário inafastável –, se vê, agora, diante de um admirável mundo novo[2] (nem tão novo, nem tão admirável assim), diante de forte desafio que se acelerou pela pandemia avassaladora: a assimilação da disrupção provocada pelo desenvolvimento tecnológico.
Termos que não conhecíamos – big data, machine learning, deep learning e outras palavras ou expressões em inglês - invadiram nossas vidas, ainda que muitos ainda não tenham percebido. Sociedade em rede – Castells[3] - enredada por um emaranhado de códigos, símbolos e signos que sustentam uma base operacional de programas de computador que nos levam a fazer coisas que nem sempre queremos fazer – às favas com a autonomia, com a autodeterminação! Que o querer computacional me leve; deixem o computador me levar!
A tranquilidade do lasseiz-faire digital, a fácil navegação na ponta dos dedos – há se os portugueses e suas caravelas me ouvissem agora. Que reprimenda eu receberia. Navegação fácil?, indagariam eles! – nos induzem a sermos, inadvertidamente, consumidoras e consumidores; consumidoras e consumidores por acaso e ao acaso. Pedimos, compramos, pagamos, recebemos sem que saiamos de casa – até por segurança sanitária, pois o Coronavírus, o lobo mau pós-moderno, está à espreita, protegido em sua invisibilidade e pelo negacionismo de tantos. Deixo de lado o nós e vou para o eu: o eu sozinho diante de uma janela amplíssima. Será que estou seguro, no recesso de meu lar, eu e minha máquina quase pensante a explorar um universo de possibilidades?
Num momento de disrupção, nada nem ninguém está a salvo. Disrupção é rompimento, é o novo, é o diferente, é o indomável – ao menos num primeiro momento. O novo amedronta, justamente pelo fato de ser novo. Vivemos um presente tão fugaz que mais parece que ser passado. Passado, presente e futuro se misturam, numa simbiose que não nos permite dar conta do tempo – como não lembrar de Bergson[4] e sua reflexão sobre o tempo: o tempo passa e nós somos criaturas que vivemos para desaparecer; somos um processo de existir. Mas não só nós: tudo existe para desaparecer; e agora, falo por mim: tudo se consome no tempo e pelo tempo.
Franklin Leopoldo e Silva[5] nos adverte, inspirado na obra de Bergson, que o tempo, apesar de ser uma das coisas mais importantes, é aquilo sobre o que menos pensamos, daí porque as filosofias e as religiões preferem pensar na eternidade. Caetano Veloso nos diz que o tempo é um dos deuses mais lindos[6].
Mas que tempo é o tempo depois – ou no meio – da disrupção tecnológica? Em que tempo vivemos? Um modo de vida dá lugar a outro, nesse processo que o tempo é. Estamos vivendo um novo modo de vida. A realidade é constituída por transformações. Eis mais uma.
O homem moderno, o homo sapiens sapiens, hoje, ao que parece, sabe menos que deveria saber. Afirmo isso pois não sabemos para onde vão, onde ficam e quem cuida ou deveria cuidar de nossos dados pessoais, incluídos em cada compra virtual que fazemos. Aquele formulário, repleto de campos obrigatórios, é precioso: forma um dossiê de dar inveja aos mais esmerados detetives do mundo analógico, com seus indefectíveis caderninhos de bolso. Num clique tudo está à disposição do desconhecido. Nossos dados voam pelos ares, em nuvens virtuais carregadas. Desde um simples código de endereço postal (o antigo CEP), passando por CPFs, RGs, dados bancários e chegando às mais íntimas informações biológicas, tudo vai compactado às nuvens, dando sentido à expressão Big Data.
Uma simples pesquisa de preços pode se transformar numa dor de cabeça infindável. Quem nunca, por necessidade ou mera curiosidade, pesquisou preços de diárias de hotel na internet. Aquilo que se fazia com o telefone fixo no colo e com o auxílio das páginas amarelas das listas telefônicas, faz-se hoje com o mouse. O pescoço torcido, a modo de segurar o fone entre a cabeça e o ombro de outrora, deu lugar à tendinite da mão mouseniana ou à dor nos dedos polegares celularianos[7]. Se antes, com o telefone fixo pré-bina, a pesquisa se encerrava quando púnhamos o fone no gancho – e aqui, me perdoem os novos: não há tempo para explicar a dinâmica da nossa vida de neanderthal! – hoje, a pesquisa nos persegue por meses a fio. Não desgruda, não descola. Incomoda. Ronda. Some e reaparece no meio de outra pesquisa, seja por banners insistentes, seja por mensagens no rodapé das novas páginas amarelas do Google ou outro buscador.
O e-consumidor compõe uma e-relação jurídica que na outra ponta encontra o e-fornecedor. A sociedade de consumo vem ressignificada pela virtualização. A realidade virtual, que antes se podia pensar paralela, hoje se confunde com a realidade analógica. A vida virtual, dos avatares e das representações, que antes era mera extensão da vida real, hoje é maior e mais real que a realidade de carne e osso, de cimento e tijolo, de madeira e prego. Nesta mistura de sensações e prazeres, encontra-se o homo sapiens sapiens, navegando por nuvens e mares desconhecidos, mas aparentemente amigáveis.
O homo sapiens sapiens não se deu conta de que o e-comércio é operado por algoritmos manipulados e enviesados por donos de sistemas computacionais, sistemas que trabalham com uma inteligência simulada que rapidamente nos oferece um cardápio individualizado. Pensa-se que o computador leu nossos pensamentos. Não, leitoras e leitores, fomos nós que oferecemos nossos dados, demos os inputs que as máquinas precisam para gerar os outputs que nos agradam e nos fazem sentir únicos, personalizados, individualizados.
A armadilha do e-consumo deve ser desarmada. Para tanto, é de se perguntar: há suficiência jurídica na proteção do e-consumidor? Uma nova vulnerabilidade se nos apresenta. Sobre o e-consumidor agora se abate a, digamos, vulnerabilidade tecnológica. Como dito, a enorme quantidade de dados pessoais absorvida pelos sistemas computacionais - e seu tratamento - pode significar um tiro fatal na privacidade. O e-consumidor, em verdade, está nu diante da vitrine virtual. Seus dados pessoais lhe são tomados de assalto, no estilo “ou cede ou não compra”. Dados armazenados e tratados se transformam em informação, o novo petróleo. Nossas informações são monetizadas, uma vez que são criados grupos de consumidores, separados em verdadeiras castas, oferecidos a empresas que anseiam ou por novos nichos de consumidores ou por aumentar a amplitude dos nichos que já dominam.
Os buscadores oferecem espaços certeiros de publicidade – a mim, oferecem perucas, vitaminas e outros elixires de longa vida, afinal estou careca e cheguei aos 50 anos de vida e, para contrariar ainda mais o atual ministro da economia, quero chegar aos 150 e ele que dê um jeito de pagar a conta. Esses espaços publicitários feitos sob medida valem muito, e o muito quando se está a falar de internet, é muito mesmo. Esqueçam os valores que conhecemos dos velhos espaços de publicidade da obsoleta televisão aberta; tais valores não passam de verdadeiros trocados perto do que se pode negociar na web.
E no meio dessa torrente de informações que vão e vem, está o frágil e-consumidor. Quem nos protegerá da bondade dos bons, daqueles que querem nos ver felizes com novas aquisições que talvez nem usufruiremos, mas que nos bastam pelo prazer indescritível da compra? Sociedade de consumo, sociedade de informação, sociedade em rede, sociedade de vigilância, todas nos cercam e nos invadem num avanço de sinal sem multa. Mas não nos enganemos: a bondade dos bons pode ser perniciosa. Os nossos dados pessoais, que vão como extra nas compras que fazemos, podem valer muito mais que a mercadoria que adquirimos – e nem recebemos desconto por isso.
Nosso poder de escolha se encolheu e se encolhe a cada dia, pois os outputs que nos saltam das telas do computador nos põem em xeque – é comprar ou comprar. Por que pesquisar mais, se já achei o quero? Por que perder tempo, se no meio de uma leitura gratuita, surgiu uma oferta imperdível? Não nos apercebemos que somos conduzidos por novas e fortes empresas de tecnologia que controlam nossos dados e os transformam em preciosas informações precificadas, colocando em risco nossa privacidade, tolhendo nossa liberdade de escolha.
O Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (esta que após tantas discussões e confusões – o que me fez pensar que não conheço o conceito de vacatio legis – enfim entrou em vigor) são leis que surgem da necessidade de proteção de nossos dados pessoais da bondade dos bons. Importante lembrar que a LGPD seguiu, ainda que não à risca, o roteiro do RGPD europeu (legislação que se mostra suficiente), e nos encheu de esperança – esperança que fica diminuída pelo fato da Autoridade Nacional de Proteção de Dados estar ligada ao Poder Executivo.
Afora o mínimo que se precisa ter em relação à proteção de dados, qual seja, dar ao e-consumidor ciência de como os seus dados serão armazenados e trabalhados, até para que se possa exercer a autodeterminação informacional, ambas as legislações nos dão a impressão de grande potencial na obstrução de práticas que tendem a reduzir a capacidade do e-consumidor, como o geopricing – que permite a precificação de diárias de hotéis, por exemplo, a partir da localização geográfica do futuro hóspede, que leva em conta os dados fornecidos ao sistema que, apreendidos por ele e processados por algoritmos, podem indicar preços diferentes para consumidores que deveriam ser igualmente tratados.
Também podem ser fortes ferramentas no combate ao geoblocking, que consiste no bloqueio de conteúdos ou redirecionamento de usuários por conta, também, de sua localização geográfica. Não há dúvida em se afirmar que tanto o geoblocking como o geopricing são práticas que violam o princípio da neutralidade da Internet (art. 9º do Marco Civil da Internet)[8].
Ainda, parece claro que ambas as práticas, por serem discriminatórias, ferem a diretriz de igualdade de tratamento a todos os consumidores e, portanto, devem ser eliminadas. Mais uma vez, para que não nos esqueçamos: essas práticas discriminatórias só são possíveis por conta da exigência de fornecimento de nossos dados pessoais.
Em modo de conclusão, mais um desafio nos é imposto: levar a sério a proteção e dados na seara consumerista, em proteção à privacidade do e-consumidor, fragilizado por mais uma vulnerabilidade: a vulnerabilidade tecnológica. É preciso estar atento e forte![9]
Notas e Referências
[1] Texto originalmente apresentado no Seminário A disrupção tecnológica e seus impactos no direito do consumidor, promovido pela Universidade La Salle – Unilasalle e organizado pelo Prof. Marcos Jorge Catalan, em 28.04.2021.
[2] Referência ao livro de HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano. 22. ed. São Paulo: Globo, 2014.
[3] CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: a era da informação – economia, sociedade e cultura. Volume 01. Tradução de Roneide Venancio Majer. 17. ed., rev. e ampl. São Paulo: Paz e Terra, 2016.
[4] BERGSON, Henri. A evolução criadora. Tradução de Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Ed. UNESP, 2010.
[5] SILVA, Franklin Leopoldo e. Bergson e a reflexão sobre o tempo. Canal Casa do Saber. YouTube, 17 set. 2015. Disponível em: <https://bit.ly/2R3DsTs>. Acesso em: 26 maio 2021.
[6] ORAÇÃO AO TEMPO. Compositor: Caetano Veloso.
[7] Sobre o tema, recomendo o texto de HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Tradução de Lucas Machado. Rio de Janeiro: Vozes, 2018.
[8] Sobre geopricing e geoblocking, recomendo o texto de MARTINS, Guilherme Magalhães. O geopricing e geoblocking e seus efeitos nas relações de consumo. In: FRAZÃO, Ana; MULHOLLAND, Caitlin (Coords.). Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 633-650.
[9] DIVINO MARAVILHOSO. Compositor: Caetano Veloso.
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