Por Roberto Bona Junior – 22/11/2016
Criada pela Suprema Corte Americana e muito utilizada em países como Espanha e Alemanha, a Teoria da Cegueira Deliberada (Willful Blindness Doctrine), também conhecida como a Teoria das Instruções do Avestruz (Ostrich Instructions), começa a ganhar força no Brasil.
A teoria tem como objetivo punir por dolo àquele que voluntariamente se coloca em estado de desconhecimento, ignorando fatos suspeitos para optar por uma situação que lhe é mais vantajosa. Por isso a analogia com o avestruz, que sempre enterra a cabeça para não enxergar o que esta acontecendo diante de seus olhos.
Nesta seara, assim como o avestruz vê e finge que não viu, o agente também vê, desconfia, mas ignora a suspeita de que a conduta que está praticando é ilícita, com o objetivo de tirar proveito disso.
O agente sabe, ou pelo menos tem forte suspeita, de que está diante de um negócio ilícito e caminha em sentido contrário àquele que se espera, para auferir lucro, escolhendo deliberadamente por não suspeitar das transações que tenham indícios de crime.
A teoria surgiu para suprir a falha do Estado na produção de provas acerca do real conhecimento do réu em situações fáticas duvidosas. Apesar do acusado não ter conhecimento dos fatos, essa falta de conhecimento deve-se a prática de atos afirmativos de sua parte para evitar a descoberta de uma situação suspeita.[1]
Presume-se assim, o conhecimento do acusado em casos onde não há prova concreta de seu envolvimento, para que ele possa ser condenado.
No Brasil, a teoria começou a ser aplicada em dois casos emblemáticos.
O primeiro foi o furto dos 175 milhões de reais do Banco Central de Fortaleza, em 2005. Após o crime, membros da quadrilha teriam se deslocado a uma concessionária e comprado 11 automóveis, totalizando aproximadamente um milhão de reais, pagos em espécie. O juiz do caso aplicou a teoria tendo em vista que, pelas circunstâncias – alta quantia de dinheiro em espécie - os responsáveis pela concessionária teriam ignorado esse fato bastante incomum para não saber a origem do dinheiro. Foram então condenados com base no art. 1º, § 2º, inc. I da Lei de lavagem de dinheiro (Lei 9.613/98). Porém, foram absolvidos ao recorrerem ao Tribunal, que entendeu não haver dolo direto na conduta.
O segundo foi a Ação Penal 470, popularmente conhecida como Mensalão.
Neste, o Ministro Celso de Mello admitiu a possibilidade do dolo eventual em crimes de lavagem de capitais com suporte na teoria da cegueira deliberada.
Considerou que, pelo critério da cegueira deliberada - “em que o agente fingiria não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem prometida” - poder-se-ia caracterizar a conduta de alguns réus da ação penal 470 como delituosas nos termos da Lei de Lavagem de Capitais. Em outras palavras, houve, para o Min. Celso de Mello, pelo menos, dolo eventual em suas respectivas condutas, de modo a autorizar-se a punição pela figura delitiva prevista no art. 1º, caput, da Lei 9.613/98 (popularmente chamada de “lavagem de dinheiro”).[2]
Em 2012, houve significativa mudança na sobre crimes de lavagem de capitais (Lei 12.683/12), que trouxe outra redação para o tipo penal estabelecido no art. 1º, § 2º, inc. I.
Vamos à análise da alteração:
Lei 9.613/98:
Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:
(...) § 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem:
I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo;
Lei nº 12.683/12:
Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal:
(...)§ 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem:
I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal;
Note-se que houve importante alteração legislativa no plano subjetivo, visto que foi suprimido o termo “saber da procedência”. A partir daí, o legislador passa a permitir a punição por dolo eventual.
Ou seja, aquele que suspeitar da origem ilícita na esfera a qual atua e evitar apurar os fatos propositalmente, para justificar a atividade econômica ou financeira, assumirá o risco de praticar o crime lavagem de capitais.[3]
Essa alteração da lei fez com que fosse permitida a aplicação da teoria da cegueira deliberada.
E essa aplicação já vem ocorrendo na operação lava a jato. O juiz federal Sergio Moro utilizou a teoria para fundamentar a condenação de Ivan Vernon Gomes Torres Junior no crime de lavagem de dinheiro.[4]
A tendência é que mais condenações surjam. Para isso, é necessário um maior debate a respeito do tema, de suma relevância na neocriminalização do agente e na relativização dogmática.
É importante destacar que, para que haja correlação entre a teoria da cegueira deliberada e o dolo eventual, é necessária consciência voluntária de criar obstáculos que impeçam o conhecimento sobre a origem ilícita da atividade.[5]
Deve se reconhecer o perigo de agir e assumir o risco de contribuir para tal atividade. A mera imprudência, negligência ou desídia na formação dos obstáculos não é aceitável, por se tratar de culpa consciente.
É imprescindível o dolo, a vontade de o agente se colocar em condição de ignorante para se beneficiar. E que a criação dos filtros de cegueira seja direcionada a evitar o conhecimento de ilícitos penais. Caso contrário, estaríamos falando de culpa e nosso ordenamento rechaça qualquer hipótese de responsabilidade penal objetiva.
Aí é que está o problema e a grande crítica à aplicação da teoria sem um amplo debate pela comunidade jurídica. A linha entre os conceitos de dolo eventual e culpa consciente é muito tênue. Além disso, existem várias correntes que definem o conceito de dolo eventual, e muitas delas são bastante divergentes entre si. Seria necessário definir qual das correntes se encaixaria melhor ao tema, para evitar o surgimento de abusos de autoridade, ilegalidades e decisões arbitrárias ou teratológicas.
Notas e Referências:
[1] CABRAL, Bruno Fontenele. Breves comentários sobre a teoria da cegueira deliberada (willful blindness doctrine): Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3193, 29 mar.2012.
[2] Informativo 677 do STF
[3] BLANCO CORDERO, El delito de blanqueo de capitales, 3ª ed. Cap.VII, 3.3, PRADO, Dos crimes: aspectos subjetivos, 237.
[4] Ação Penal nº 5023135-31.2015.4.04.7000
[5] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: Aspectos Penais e Processuais Penais. São Paulo: Editos Revista dos Tribunais, 2012. p. 94 e ss.
. Roberto Bona Junior é Advogado criminalista. Graduado pela PUC/PR e pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade Positivo. Membro da Comissão de Direito Criminal e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PR.. . .
Imagem Ilustrativa do Post: Religious blindfold // Foto de: Sten Dueland // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/stendueland/24637598866
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.