Por Guilherme Wünsch e Wilson Engelmann – 30/08/2016
Discutir a problemática do discurso jurídico na fundamentação das decisões judiciais no contexto atual do ordenamento jurídico implica debater os rumos que a ciência jurídica tem caminhado na modernidade. Kaufmann ensina que toda a filosofia do direito deve, direta ou indiretamente, servir a missão de separar o direito do não direito, da injustiça. Assim, duas perguntas se impõem: o que é o direito correto? Como se reconhece ou realiza o direito correto?[1] Por muito tempo se acreditou que estes questionamentos poderiam ser cindidos e respondidos separadamente, em que o direito correto seria concebido como um objeto substancial, ou seja, um objeto a ser compreendido pelo seu sujeito, na sua pura objetividade, sem a influência de quaisquer elementos subjetivos.
Hodiernamente, entretanto, se reconheceu, através da teoria das ciências, que o mundo não pode ser observado e julgado apenas por critérios e categorias das ciências naturais, porquanto o conhecimento nem sempre é atingido exclusivamente por argumentos livres de subjetividade. Assim, novamente Kaufmann quando afirma que isto aplica-se especialmente às ciências da compreensão (Verstehenswissenchaften), nas quais se inclui a ciência do direito, pois aqui o esquema sujeito-objeto falha logo desde o ponto de partida.[2]
Na ciência jurídica não se pode afirmar da existência de um conhecimento que não esteja marcado pelo seu investigador. Eis assim que o conhecimento de direito origina a própria construção dele, a partir de um processo de realização do direito. Ocorre que a Teoria do Direito, ao menos desde a viagem do século, esteve envolvida em um ponto nodal de discussão que vinculava o juiz às normas prescritivas que orientam como ele deve decidir os seus casos.
Foi no século XX, ao lado de ter proporcionado uma evolução tecnológica, que também se verificou o abalo de valores que sustentaram ética e juridicamente os valores da civilização ocidental. O jurista do novo século não encontra valores consagrados e definidos para ditar os rumos da ordem jurídica contemporânea, nem critérios válidos e permanentes para imprimir-lhe eficácia e coerência. Por tal razão, o direito positivo vai se transformando em uma colcha de retalhos.[3]
Hassemer alerta que são várias as concepções matizadas situadas entre a esperança de que o juiz encontraria na lei a resposta inequívoca e completa para suas dúvidas acerca dos princípios de decisão no caso concreto e a opinião de que o juiz não tem em conta a lei, decidindo segundo a sua sensibilidade jurídica ou segundo os interesses das partes afetadas, tal como ele os entende.[4] Destarte, o reconhecimento de que o direito codificado não pode, pelo menos de fato, determinar inteiramente a decisão judicial não é novo; ele pode ser comprovado, por exemplo, a partir da experiência empírica de que a jurisprudência pode se alterar profundamente, sem que a lei tenha sido modificada. Neste sentido, deve ser possível separar o velho e o novo no direito. Leciona Streck que se não há segurança para apontar as características de uma teoria efetivamente pós-positivista, há, entretanto, condições para que se possa dizer o que não é e o que não serve para a contemporânea teoria do direito, mormente em países com sistemas e ordenamentos jurídicos complexos.[5]
O Direito já não é mais o mesmo, eis que, historicamente, as teorias positivistas do direito recusaram-se a fundar suas epistemologias numa racionalidade que desse conta do agir propriamente dito. Como alternativa, estabeleceram um princípio fundado em uma razão teórica pura, enxergando o direito como um objeto analisado a partir de critérios emanados de uma lógica formal rígida. Ora, a pretensão das teorias positivistas era oferecer à comunidade jurídica um objeto e método seguros para a produção do conhecimento científico, que desconsiderava os fatos sociais, excluindo-os da Teoria do Direito.
O novo constitucionalismo trouxe a preocupação de que o direito deve se ocupar com a construção de uma sociedade justa e solidária, cujo desafio é fazer com que o direito não fique indiferente às injustiças sociais. Por isso é que Streck afirma não haver dúvida de que o novo constitucionalismo é sinônimo de novo paradigma, em que o direito deixa de ser meramente regulador para assumir uma feição de transformação das relações sociais.[6]
Criou-se uma cultura de que o juiz não pode procurar fundamentos para a sua decisão. Ele deve saber tudo, e, quando não encontra fundamentos suficientes para a sua decisão, teria legitimado o espaço para julgar de qualquer forma, afinal de contas, é um ser humano. A sua decisão deve revelar uma certeza teórica, mesmo que o seu discurso seja apenas retórico.
O problema dessa figura criada é a legitimação do papel simbólico da dogmática jurídica e da sua adoção como discurso. O ato da decisão judicial, mais do que uma resposta jurídica deve oferecer uma resposta política, como forma de conter uma pretensa insegurança jurídica que assola a comunidade e, claro, reflete no juiz. Isso nada mais é do que a confirmação de que, na modernidade, autorizou-se um discurso jurídico que seja arbitrário e discricionário, como se sentenças judiciais fossem mercadorias expostas para serem adquiridas conforme a conveniência das partes envolvidas na resolução de algum problema.
No saber jurídico dominante, a maior parte das análises produzidas prefere não assinalar as dimensões sociais dos diferentes discursos do Direito, bem como o seu papel, enquanto um dos elementos constituintes das relações político-sociais. É dizer que o paradigma da ciência jurídica predominante encontra-se fundamentado em mecanismos conceituais que apresentam um âmbito de significação tópico-retórico, que não tem por função primordial a organização sistemática de um discurso do conhecimento, mas, antes, pretendem condicionar as formas de raciocínio dos juristas, assim como estabelecer o consenso em torno de alguns princípios éticos e do monopólio da força assumido pelo Estado.[7]
Não se deve desconsiderar que o progresso científico ocasionou para o legislador dificuldades que se iniciaram com a identificação da inexistência de previsão legal para a solução de diversos conflitos, culminando com a leitura inadequada dos institutos do Direito. Diante disso, os modelos teóricos que consagravam o fenômeno jurídico quedaram-se insuficientes diante da nova realidade, questionando-se os próprios fundamentos do sistema jurídico na contemporaneidade.
A ciência jurídica, respaldada em seus próprios fetiches, massifica, deslocando os conflitos sociais para o lugar instruído da lei, tornando-os menos visíveis. O saber jurídico aposta na racionalidade para garantir o poder e regular o imaginário jurídico-político da experiência cotidiana. Isto produz um campo simbólico que serve para dissimular conflitos e antagonismos desenvolvidos fora da cena lingüística. Assim, a ciência jurídica aparece como um conjunto de técnicas de fazer crer, com as quais se consegue produzir a linguagem oficial do direito que se integra com significados tranquilizadores, representações que têm como efeito impedir uma ampla reflexão sobre a experiência sociopolítica. Eis a capacidade do campo simbólico do direito para ocultar a genealogia e o funcionamento institucional do discurso jurídico.[8]
De um modo geral, os juristas contam com um arsenal de condensações do saber, no sentido de que fragmentos de teorias vagamente identificáveis, elos que formam uma minoria do direito a serviço do poder. No interior da linguagem do direito positivo, produz-se uma linguagem eletrificada e invisível que vaga indefinidamente servindo de poder.[9] A legitimação e o poder do discurso jurídico em nome da verdade se encontra no fato de que ele se apresenta como a revelação de segredos, que reforça a intenção política da unificação dos atores sociais e da produção de uma viagem da sociedade homogênea.[10]
Assim, a lei e o direito se constituem em níveis das relações simbólicas de poder, que se manifestam no discurso jurídico. Logo, que se manifestam nas decisões judiciais tão celebradas pela comunidade jurídica, quando, na verdade, não são mais do que a mais nítida representação desse senso comum teórico, porque se constituem em uma falácia em nome de uma pretensa estabilização dos conflitos.
É a partir desta perspectiva de Warat que se busca compreender a afetividade como um elemento do convívio familiar, pois se percebe que, cada vez mais, é um princípio citado dentro do direito de família brasileiro. Como refere Ricardo Lucas Calderón, parece prudente verificar quais as balizas delimitariam tal princípio, de modo a evitar que sua abertura acabe por inviabilizá-lo ou enfraquecê-lo. Nas suas palavras, “há que se demarcar objetivamente seus limites jurídicos, para que posa ser considerado, efetivamente, uma categoria do direito”.[11]
A questão que se coloca em debate é a necessidade de sustentação de um sentido jurídico para a afetividade, ou seja, o conhecimento acerca das relações sociais de natureza afetiva que moldam condutas suscetíveis de merecerem a incidência da norma jurídica.
Sobre este aspecto, é importante referir, novamente, Calderón, ao destacar a importância da doutrina para uma correta utilização, pelo Direito, da afetividade como categoria jurídica: "Restando possível, portanto, a utilização, pelo Direito, da afetividade como categoria jurídica, a quem caberia estabelecer seu conteúdo? Como corrente na teoria geral do direito, caberá à doutrina, legislação e jurisprudência externarem o que determinando sistema jurídico compreende por aquele significante." [12]
Trata-se, portanto, um caminho a se trilhar com base consistente a oferecer ao tema a salvaguarda jurídica imprescindível, considerando que, hodiernamente, as relações familiares reconhecidas pelo direito são aquelas que se pautam na incidência da ideia de afetividade. Em outras palavras, tal paradigma constitui-se em um dever jurídico para que sofra a incidência do ordenamento.
Notas e Referências:
CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013.
HASSEMER, Winfried. Sistema jurídico e codificação: a vinculação do juiz à lei. In: KAUFMANN, Arthur. HASSEMER, Winfried (orgs.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: KAUFMANN, Arthur. HASSEMER, Winfried (orgs.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
ROCHA, Leonel Severo. A problemática jurídica: uma introdução transdisciplinar. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1985.
STRECK, Lenio Luiz. Diálogos (neo)constitucionais. In: DUARTE, Écio Oto Ramos. POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico: as faces da teoria do direito em tempos de interpretação moral da Constituição. 2.ed. Landy, 2010.
WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito I: interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1994.
WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1995.
[1] KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: KAUFMANN, Arthur. HASSEMER, Winfried (orgs.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p.57.
[2] KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: KAUFMANN, Arthur. HASSEMER, Winfried (orgs.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p.58.
[3] JUNIOR, Humberto Theodoro. A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da segurança jurídica. In: Revista da EMERJ. v. 9, n. 35, 2006. p.15.
[4] HASSEMER, Winfried. Sistema jurídico e codificação: a vinculação do juiz à lei. In: KAUFMANN, Arthur. HASSEMER, Winfried (orgs.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p.283.
[5] STRECK, Lenio Luiz. Diálogos (neo)constitucionais. In: DUARTE, Écio Oto Ramos. POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico: as faces da teoria do direito em tempos de interpretação moral da Constituição. 2.ed. Landy, 2010. p.200.
[6] STRECK, Lenio Luiz. Diálogos (neo)constitucionais. In: DUARTE, Écio Oto Ramos. POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico: as faces da teoria do direito em tempos de interpretação moral da Constituição. 2.ed. Landy, 2010. p.200.
[7] ROCHA, Leonel Severo. A problemática jurídica: uma introdução transdisciplinar. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1985. p.37-44. Explica Leonel que o esquema teórico dos juristas é elaborado numa ideia de autonomia e neutralidade da lei, que possibilitaria a segurança de todos os cidadãos frente a qualquer tentativa de violação de seus direitos legais. Entretanto, estas premissas são infundadas, se contrastadas com análises da lei elaboradas desde um ponto de vista discursivo. Numa análise discursiva, percebe-se como as categorias do discurso jurídico não obedecem as pretensões positivistas da cientificidade, caracterizando-se, ao contrário, por sua pseudo-objetividade e neutralidade ideológica, e sendo, na verdade, dimensões discursivas com evidentes dimensões político-ideológicas.
[8] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1995. p.59.
[9] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito I: interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1994. p.15.Leciona Warat que os juristas contam com um emaranhado de costumes intelectuais que são aceitos como verdades de princípios para ocultar o componente político para investigação de verdades. Por conseguinte, se canonizam certas imagens e crenças para preservar o segredo que escondem as verdades. O senso comum teórico dos juristas é o lugar do secreto. As representações que o integram pulverizam a compreensão do fato de que a história das verdades jurídicas é inseparável da história do poder.
[10] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1995. p.90.
[11] CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p.302.
[12] CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p.307.
Guilherme Wünsch é formado pelo Centro Universitário Metodista IPA, de Porto Alegre, Mestre em Direito pela Unisinos e Doutorando em Direito pela Unisinos. Durante 5 anos (2010-2015) foi assessor jurídico da Procuradoria-Geral do Município de Canoas. Atualmente, é advogado do Programa de Práticas Sociojurídicas – PRASJUR, da Unisinos, em São Leopoldo/RS; professor da UNISINOS e professor convidado dos cursos de especialização da UNISINOS, FADERGS, FACOS, FACENSA, IDC e VERBO JURÍDICO.
Wilson Engelmann é Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2005). Atualmente é professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Coordenador Executivo do Mestrado Profissional em Direito da Empresa e dos Negócios da UNISINOS. Coordenador Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da UNISINOS. Líder do Grupo de Pesquisa JUSNANO (CNPq/Unisinos). Avaliador ad hoc do INEP/DAES. Orientador de bolsista de iniciação científica PIBITI/CNPq, PIBIC/CNPq e FAPERGS. Orientador de Mestrado e Doutorado.
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