Desde a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, se criou grande alvoroço nos meios jurídicos a possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica por crimes ambientais prevista expressamente no § 3º do seu artigo 225: “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
Em atenção ao mandamento constitucional, a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que trata dos crimes ambientais, dispõe em seu artigo 3º:
“Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.”
Apesar de os dispositivos constitucional e legal preverem expressamente a possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica, por quase 3 décadas vigorou o entendimento de que tal responsabilização somente seria possível em atenção à Teoria da Dupla Imputação, ou seja, somente se admitiria a responsabilização penal da pessoa jurídica em crimes ambientais casohouvesse a imputação simultânea do ente moral e da pessoa natural que atua em seu nome ou em seu benefício, já que não se podia compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa natural, a qual agiria com o elemento subjetivo próprio.
Tal entendimento gerou, na prática, uma série de denúncias com a imputação de suposto crime ambiental a pessoas naturais apenas para cumprir o requisito da dupla imputação, simplesmente por serem administradores da pessoa jurídica. Estas denúncias, na grande maioria dos casos, com mera descrição genérica e abstrata de condutas, apesar de não cumpriremefetivamente as exigências do artigo 41 do Código de Processo Penal: “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”, acabavam tramitando e gerando efeitos práticos.
Numa minoria dos casos as referidas denúncias eram consideradas ineptas, especialmente pelas Cortes Especiais como o Superior Tribunal de Justiça, o que, apesar o Poder Judiciário, inviabilizava a responsabilização criminal pelos danos ambientais e passava para a sociedade em geral uma impressão de impunidade.
Porém, na maioria absoluta das vezes, as denúncias eram recebidas e a ação penal tinha seguimento,funcionando como verdadeira coação para que, principalmente, as pessoas naturais, ante o caráter estigmatizante da ação penal e o medo das possíveis consequências de uma eventual condenação, acabassem por aceitar propostas de suspensão condicional do processo, renunciando aos direitos fundamentos ao devido processo legal, ampla defesa e contraditório, apenas para “se livrar do problema”.
É público e notório o incremento que tais “acordos” geram para os órgãos de fiscalização de crimes ambientais, como a Polícia Militar Ambiental, no caso de Santa Catarina, órgãos estatais ambientais e mesmo para o Ministério Público, já que, regra geral, a suspensão condicional dos processos envolve o pagamento de sanção pecuniária por meio da transferência de recursos para algum(ns) destes órgãos.
Entretanto, no ano de 2014, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 548.181/PR, entendeu que “O art. 225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona aresponsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais àsimultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável noâmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária duplaimputação”.
A partir de junho de 2015, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o RMS 39.173/BA, reviu o seu entendimento anterior, e passou a aceitar a responsabilização criminal exclusiva da pessoa jurídica, dizendo, basicamente, que: “(...).2. Tem-se, assim, que é possível a responsabilização penal da pessoa jurídica por delitos ambientais independentemente da responsabilização concomitante da pessoa física que agia em seu nome. Precedentes desta Corte. 3. A personalidade fictícia atribuída à pessoa jurídica não pode servir de artifício para a prática de condutas espúrias por parte das pessoas naturais responsáveis pela sua condução. (...)”.
Pois bem! Com a exclusão das pessoas naturas do rol de denunciados, evidentemente, os “acordos” nas ações penais para apuração de crimes ambientais ficariam muito mais difíceis. Talvez por isso mesmo, persiste no Ministério Público, a prática da dupla imputação.
Ocorre que, como o próprio STF reconheceu no julgamento do RE 548.181/PR, “As organizações corporativas complexas da atualidade secaracterizam pela descentralização e distribuição de atribuições eresponsabilidades, sendo inerentes, a esta realidade, as dificuldades paraimputar o fato ilícito a uma pessoa concreta”.
Então parece claro que serão buscados pelo Ministério Público meios para imputar responsabilidade criminal às pessoas naturais dirigentes de pessoas jurídica e, com certeza, uma das tentativas se dará na égide da “teoria do domínio da organização”, uma das concretizações da “teoria do domínio do fato”, como esclarece Luiz Greco[1].
Pelo conceito original da “teoria do domínio da organização”, ainda de acordo com o que ensina Luiz Greco, não seria possível responsabilizar criminalmente a pessoa natural pelos danos ambientais causados pela pessoa jurídica.
Luiz Greco esclarece que, segundo a teoria do domínio da organização, seria autor mediato “Aquele que, servindo-se de uma organização verticalmente estruturada e apartada, dissociada da ordem jurídica, emite uma ordem cujo cumprimento é entregue a executores fungíveis, que funcionam como meras engrenagens de uma estrutura automática, ...”.
Em suma, somente seria possível a imputação de autoria a pessoa natural, pelo crime praticado por outra pessoa (a jurídica), caso o fato típico tivesse sido praticado por organização “dissociada da ordem jurídica”, isto é, não se admitiria tal imputação em caso de crime cometido por sociedade empresária constituída e organizada segundo as leis vigentes.
Deixa claro Luiz Greco que tal discussão já foi levantada no direito alemão, sendo rechaçada pelos criadores da teoria, notadamente Roxin e Schunermann, justamente por defenderem que o principal fundamento da autoria medida por domínio da organização não decorrida do poder de mando, mas sim do funcionamento clandestino da pessoa jurídica, na conformação completamente afastada do ordenamento jurídico.
Portanto, adotando-se a ideia original por trás da teoria do domínio da organização, a resposta à pergunta formulada no título do presente artigo é negativa, isto é, não é possível a responsabilização da pessoa natural, com cargo de administração, segundo a teoria do domínio da organização, por crime ambiental praticado pela pessoa jurídica.
Notas e Referências
[1]Greco, Luís ... (et alii). Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. 1. ed. Marcial Pons: São Paulo, 2014.
Imagem Ilustrativa do Post: Nature. // Foto de: Vivian Farinazzo // Sem alterações
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