Por Charles M. Machado – 14/02/2016
Com o deferimento pela Justiça Federal, de Rondônia, que concedeu a liminar favorável à Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rondônia (OAB/RO) determinando a suspensão da eficácia e aplicação da Instrução Normativa da Receita Federal nº 1571, por entender que a mesma viola o sigilo fiscal dos contribuintes, muitas discussões passaram a ser suscitadas. O fato é que o ano começa e a Receita Federal, passou a ter por meio da e-financeira um considerável instrumento para fiscalizar, mais e melhor, as movimentações financeiras dos contribuintes.
Agora, planos de saúde, seguradoras e operadoras de fundo de aposentadoria programadas, por exemplo, terão que apresentar ao Fisco dados sobre as movimentações de seus clientes. Até então, essa obrigação era exigida apenas paras as instituições financeiras, a norma é clara quanto aos obrigados:
Art. 4º Ficam obrigadas a apresentar a e-Financeira:
I - as pessoas jurídicas:
a) autorizadas a estruturar e comercializar planos de benefícios de previdência complementar;
b) autorizadas a instituir e administrar Fundos de Aposentadoria Programada Individual (Fapi); ou
c) que tenham como atividade principal ou acessória a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, incluídas as operações de consórcio, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia de valor de propriedade de terceiros; e
II - as sociedades seguradoras autorizadas a estruturar e comercializar planos de seguros de pessoas.
§ 1º A obrigatoriedade de que trata o caput alcança entidades supervisionadas pelo Banco Central do Brasil (Bacen), pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), pela Superintendência de Seguros Privados (Susep) e pela Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc).
§ 2º Para fins de aplicação do disposto no caput, são considerados serviços de custódia de valor de terceiros aqueles prestados diretamente ao investidor, conforme definição adotada pelo Bacen e pela CVM, em relação a ativos financeiros, títulos e valores mobiliários, inclusive no que se refere à manutenção de posições em contratos derivativos.
Sendo que a responsabilidade pela transferência das informações, está assim prevista:
§ 3º Fica responsável pela prestação de informações:
I - a instituição financeira depositária de contas de depósito, inclusive de poupança, em relação às informações de que trata o inciso I do caput do art. 5º;
II - a instituição custodiante das contas de custódia de ativos financeiros vinculadas às aplicações financeiras de que tratam os incisos II e III do caput do art. 5º;
III - o administrador, no caso de fundos e clubes de investimento cujas cotas estejam vinculadas às aplicações financeiras de que tratam os incisos II e III do caput do art. 5º, exceto:
a) fundos de investimento especialmente constituídos, destinados exclusivamente a acolher recursos de planos de benefícios de previdência complementar ou de planos de seguros de pessoas; e
b) fundos cujas cotas sejam negociadas em bolsa ou devam ser ou sejam registradas em balcão organizado;
IV - o distribuidor de cotas de fundos de investimento distribuídos a terceiros por conta e ordem vinculadas às aplicações financeiras de que tratam os incisos II e III do caput do art. 5º;
V - a instituição intermediária, no caso de ações, derivativos, ou cotas de fundos de investimento negociadas em bolsa ou que devam ser ou sejam registradas em balcão organizado vinculadas às aplicações financeiras de que tratam os incisos II e III do caput do art. 5º;
VI - a instituição autorizada a realizar operações no mercado de câmbio para as operações de que tratam os incisos VIII a X do caput do art. 5º;
VII - as pessoas jurídicas de que tratam as alíneas “a” e “b” do inciso I e o inciso II do caput, em relação às informações referidas nos incisos IV a VI do caput do art. 5º;
VIII - a pessoa jurídica administradora de consórcios, conforme art. 5º da Lei nº 11.795, de 8 de outubro de 2008, para as informações de que tratam os incisos XI e XII do caput do art. 5º; e
IX - a instituição que detenha o relacionamento final com o cliente, nos demais casos, em relação às informações de que trata o art. 5º.
Com a ampliação da base a declaração, acabou por provocar um ajustamento na malha fina sobre as movimentações financeiras, agora essas entidades deverão prestar informações relativas a saldos de qualquer conta de depósito, inclusive de poupança, saldo de cada aplicação financeira e aquisições de moeda estrangeira, quando o montante global movimentado ou o saldo, em cada mês, por tipo de operação financeira, for superior a R$ 2 mil para as pessoas físicas e R$ 6 mil, no caso das pessoas jurídicas. Já as operadoras de planos de saúde, deverão informar os gastos dos clientes periodicamente.
Um dos argumentos, para a implementação da nova obrigação pela Receita Federal é a assinatura do Acordo Intergovernamental (IGA), entre o Brasil e os Estados Unidos para aplicação do Foreign Account Tax Compliance Act (FATCA). O objetivo da medida é coibir a evasão de divisas. A troca de informações será plena, pois com o FATCA, o Brasil enviará informações de todos os americanos que fizeram transações no Brasil e os EUA também passará, diretamente à Receita Federal informações dos brasileiros que tenham promovido movimentações financeiras nos Estados Unidos, o que ao nosso ver é um argumento simplista e desnecessário, pois a obrigatoriedade é de toda movimentação e não apenas de não residentes, muito menos exigindo a identificação de contribuintes pelo seu passaporte de origem.
É de se notar que as instituições financeiras e seguradoras já estão obrigadas a transmitir as informações de movimentações ocorridas a partir de 1º de dezembro do ano passado. Sendo que os dados deverão ser transmitidos até o último dia útil de maio. Depois disso, as informações terão que ser enviadas semestralmente: até o último dia útil do mês de agosto, contendo os dados relativos ao primeiro semestre do ano em curso e até o último dia útil do mês de fevereiro, com as informações financeiras relacionadas ao segundo semestre do ano anterior.
É bom lembrar, que para as informações sobre estrangeiros para o acordo entre o Brasil e os Estados Unidos, o módulo de operações financeiras da e-Financeira já é obrigatório para fatos referentes aos meses de julho a dezembro do ano-calendário de 2014.
De fato, a e-Financeira é uma ampliação da Declaração de Informações sobre Movimentação Financeira (Dimof), que desde 2008 obrigava as instituições financeiras a informar as operações que ultrapassassem R$ 5 mil para pessoas físicas e R$ 10 mil para pessoas jurídicas, por semestre. Com o novo mecanismo, porém, ampliou-se os setores que devem enviar essas informações e reduziu-se os limites das transações.
A base legal, para sustentar a ampliação dessas informações está prevista na nossa Magna Carta:
“ Art. 145. .......
I -......;
II - ......;
III - ......
§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
E aí inicia-se um conflito de quais são os limites para aplicação do supracitado dispositivo, fazendo com que façamos o sopesamento entre a garantia constitucional do sigilo de dados e a necessidade de identificação da base tributável.
Lembro que no momento que você iniciou a leitura deste artigo, fez uma escolha privativa, de dedicar alguns minutos do seu dia para a obtenção de informações que sejam do seu interesse. Ao mesmo tempo, diversas outras pessoas iniciam a mesma leitura por razões próprias, que podem ou não ser comuns e iguais as suas, mas se você não externa esses motivos, eles permanecem sendo propriedade do seu íntimo. A proteção a essas razões é garantida na Constituição Federal no artigo 5°, X. Naquele inciso protege-se a intimidade, como um valor inalienável, cuja disponibilidade permissiva só você pode autorizar. Na sala ao lado o colega atestou o recebimento do jornal, mas no momento não faz ideia se você o está lendo ou não, afinal a portas fechadas à leitura é um ato privativo seu, e somente passa a ser disponibilizado, se você resolve deixar a porta aberta. No momento em que se abre a porta, disponibiliza-se mais um direito previsto no texto constitucional, o da inviolabilidade da privatividade, artigo 5°, X da Constituição. Nota-se que a simples leitura desse jornal implica no perfeito delineamento das duas esferas circundantes da personalidade garantida na nossa Carta.
A abertura da porta fez com que o ato de ler o artigo, fosse por você retirado da esfera da privatividade, mas as razões que motivam a leitura permanecem na esfera da intimidade, dela só saindo com a sua autorização. Seu colega ao ver você lendo o artigo pode ter diversas conclusões, sobre as razões que motivam a sua leitura, que certamente não saíram do campo quase que especulativo das presunções. As conclusões por ele tiradas podem por certo, serem as mais estapafúrdias, ou até mesmo, correr-se o risco de estarem corretas. O fato é que qualquer que seja a presunção especulativa, não terá força alguma para dela se extrair a verdade, como um valor que permitisse construir qualquer proposição, apenas a de que você passa os olhos sobre um artigo no jornal, afinal concluir pela leitura, seria mais um elemento de presunção. Afinal infinita é a distância entre ver e ler.
O delineamento do íntimo e do privado ganha valores absurdos, quando uma lei, L.C. 105 de 2001, passa a permitir a quebra do sigilo bancário, com mera solicitação a instituição financeira, ou a ela equiparada pela lei, por autoridade administrativa, com a finalidade da apuração de ilícitos, de natureza fiscal e financeira, e se evidencia com o alargamento da base de responsáveis através da instrução normativa.
É sempre importante lembrar, que a inviolabilidade do sigilo garante uma sociedade democrática - e é evidente que não entendemos que o sigilo bancário seja uma garantia absoluta -, o que entendemos é que a bem do Estado de Direito, a disponibilização das informações à autoridade fiscal seja dada, após requerimento ao judiciário, que, como poder independente, tem a possibilidade de mensurar, objetivamente e de forma neutra a necessidade da quebra dessa garantia.
Afinal, as exceções estão previstas no artigo 136, § 1°, I, b , que regula o Estado de Defesa, e no Estado de Sítio, artigo 139, III, onde se admite possíveis restrições ao sigilo de correspondência e das comunicações.
A privacidade é um direito fundamental. Privacidade não pode ser confundida com privativo, nem tudo que é privativo está no campo da privacidade, ou melhor, privatividade. A mesma é um direito subjetivo fundamental, apresentando em sua estrutura básica três elementos: sujeito, conteúdo e objeto, sendo sujeito o titular do direito. O conteúdo da privatividade, como direito, a faculdade de constranger os outros ou de resistir-lhes (caso dos direitos pessoais), ou de dispor, usufruir. O objeto é o bem protegido, que pode ser uma coisa ou um interesse. No direito a privatividade, o objeto, é a integridade moral do sujeito.
Dentro da privatividade encontramos a intimidade, a mais preciosa joia do conjunto valorativo da pessoa, seja ela física ou jurídica. Nem sempre o interesse da autoridade pode ser confundido com o interesse público, e quem pode sopesar esses valores constitucionais, é o neutro poder judiciário, guardião do princípio mater da isonomia, formador e norteador de uma sociedade justa e igualitária no Estado de Direito.
Para quebra do sigilo se faz necessário a abertura do processo administrativo, e que o contribuinte depois de solicitadas não preste informações dentro de 20 dias, sendo que a Receita precisa encontrar pelo menos 1 dos 11 indícios considerados indispensáveis para provar as irregularidades tributárias, como subfaturamento de operações em comércio exterior com limite acima de 10%, obtenção de empréstimos de pessoas jurídicas não financeiras ou pessoas físicas sem comprovação, remessas de recursos para paraísos fiscais, omissões de rendimentos em aplicações financeiras e gastos e investimentos em valores superiores à renda disponível e declarada.
Cabe ao Fisco demonstrar que há um nexo no seu pedido, explicando desta forma o que alimenta o pedido, afinal a quebra do sigilo não pode ser o ponto de partida, deve haver outros indícios. Logo é sempre necessário que o receio procedimental esteja fundado em outros elementos que sejam bons indícios e que se demonstre a necessidade da medida.
Até 2010, haviam cinco ações diretas de inconstitucionalidade (Adin) que tramitavam no Supremo Tribunal Federal, que discutem a Constitucionalidade da Lei Complementar 105. Enquanto não são julgadas, a sociedade assiste o crescimento assustador da quebra de garantias constitucionais, e a tributação injusta através do arbitramento, afinal o resultado investigativo muitas vezes pode ser uma grande massa de informações nem sempre conclusivas, principalmente se não é descoberto a origem e o destino dos recursos.
No momento, o contribuinte se vê como personagem do reality show, Big Brother, em que o estado encarna o personagem de George Orwell, como o grande irmão, e o contribuinte refém das presunções e muitas vezes ficções do agente fiscal. O combate à sonegação e a lavagem de dinheiro é uma necessidade imperial, mas não pode ser feita às custas das garantias constitucionais.
No MS, já citado aqui a OAB/RO “protestou pela declaração do direito dos advogados e sociedade de advogados de não sofrer os efeitos da instrução normativa e pela suspensão do envio de informações protegidas pelo sigilo bancário desses profissionais e empresas e pelo impedimento da aplicação da Lei Complementar 105/2001, a fim de evitar a quebra de sigilo bancário. O juiz ordenou na liminar a suspensão da eficácia e a aplicação as Instrução Normativa 1571/2015 no que se refere aos advogados e sociedade de advogados com registro na OAB/RO. Com a decisão, o dispositivo da Receita deixa de ser aplicado em Rondônia, garantindo aos advogados e sociedades o direito ao sigilo bancário, como determina a Constituição”.
No entender da Receita Federal, conforme expões em seu site, entende que “a nova regra não representa uma invasão de privacidade. Isso porque o Fisco não pode ter acesso nem à origem e nem ao destino dos recursos. De acordo com o artigo 5º, parágrafo 11, da IN, “é vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a origem ou o destino dos recursos utilizados nas operações financeiras”.
A CPMF, enquanto esteve em vigor, permitia esse acompanhamento. Ao ser extinta, em dezembro de 2007, foi criada a Declaração de Informações sobre Movimentação Financeira (Dimof), que obrigava os bancos a informarem operações de R$ 5 mil por semestre para pessoas físicas e de R$ 10 mil para as jurídicas, logo o que temos é uma ampliação da base de informações.
Os argumentos e esclarecimentos da matéria por parte da Receita Federal, estão disponíveis em seu site, onde de forma plausível destaca 11 pontos.
É importante reforçar que desde a promulgação da lei Complementar 105, diversas ações diretas de inconstitucionalidades foram propostas, porém o Supremo Tribunal Federal permanece em silêncio quanto a constitucionalidade do referido diploma.
Durante todo esse período de silêncio do STF o País assistiu a sucessivos recordes de arrecadação, muitos deles alimentados pela mera movimentação financeira levada a tributação, o que faz com que as ferramentas de arbitramento na tributação precisem ser atualizadas.
Sem a atualização e aperfeiçoamento das medidas legais, de apuração e tributação por arbitramento, não atingiremos de forma qualificada uma tributação justa e legal.
Seria curioso, depois de quase quinze anos de silencio, o STF se manifestar contrário a legalidade da norma, ainda que em muitos casos ela tenha sido aplicada preteritamente em detrimento a inúmeras garantias individuais.
Quando se utilizam dos meios noticiosos para justificar a sonegação sem documento de origem, é bom lembrar que para o fato gerador do Imposto de Renda, basta a titularidade ou disponibilidade de bem ou direito, logo beneficiário é titular de Direito, e Direito não declarado é sonegação.
Se existe ausência de documentos que comprovem a origem dos mesmos, dinheiro é equiparado à mercadoria, adquirida no caso a custo zero, logo arbitrado pela movimentação.
No meu entender a Instrução Normativa, é legal sim, devendo o uso das informações advindas delas ser tratado com acuidade, protegendo-se por dever funcional, o sigilo fiscal e bancário.
Por tudo que assistimos no mundo atual é evidente que as formas de apuração da receita devem ser aperfeiçoadas, e os acordos internacionais funcionam como catalizadores dessas medidas.
Outras liminares deverão surgir, mas penso que dificilmente o Supremo Tribunal Federal, no exame do mérito entenderá pela inconstitucionalidade, visto que a Magna Carta dá ao nosso tribunal a saída normativa para decisão, leia-se o artigo 145, § 1°.
Dessa maneira, tudo caminha pela legalidade do nosso Big Brother Fiscal, e que Deus nos salve.
Charles M. Machado é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também é palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito. Email: charles@dantinoadvogados.com.br
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