É cobra mandada querendo picar o calcanhar da juventude trabalhadora: notas sobre uma criminalização que se territorializa.

15/11/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Um dos golpes mais dolorosos, para mim, nessas eleições de 2022 foi quando Jair Bolsonaro, candidato derrotado, chamou os moradores do Complexo (CPX) do Alemão de traficantes. Nessa afirmação, em que fica bem evidente algumas das estratégias clássicas e neoliberais do controle do povo, ele não só atribuiu a todos os moradores da favela a etiqueta de criminoso, como também desumanizou os sujeitos criminalizados e inseridos nesse comércio ilícito. Desde adultos sem oportunidades de trabalho formal, a quem o Estado viola os direitos fundamentais, até crianças que são exploradas por uma das piores formas de trabalho infantil. Todos matáveis.

“Traficantes!”, apunhala suas palavras novamente. Em resposta a fala de Bolsonaro, moradores do CPX destacam a heterogeneidade e complexidade das favelas, “Aqui tem é trabalhador que acorda às 5h da manhã para ir ao trabalho”, “Crianças e mães, se ele estava vendo bandidos, precisa de óculos”, “Se estamos na situação que estamos, a culpa é deles!”. De estômago embrulhado, mas acolhida pela memória do samba da voz nordestina do morro Bezerra da Silva: "Olha aí o que eles estão dizendo: que eu sou violento e não falo de amor, que o meu repertório é só crime e até de bandido virei defensor (…) A elite selvagem é que gera miséria em toda nação (…)”,.

Também me veio à mente o trabalho “Irmãos: uma historia do PCC” do pesquisador Gabriel Feltran. “Miséria e violência não têm ligação direta (…) Miséria sozinha não causa violência, mas é, sem duvidas explosiva quando a ela somam-se três fatores: desigualdade abissal e visível a olho nu; mercados ilegais pujantes e não regulados; encarceramento massivo dos pequenos operadores desses mercados”.

Definitivamente, isso é cobra mandada querendo picar o calcanhar da juventude e de toda classe trabalhadora brasileira. A respeito da compreensão bastante violenta e perversa que relaciona, inerentemente, a pobreza ao crime e à violência, é necessário pontuar que esta está ancorada na seletividade dos aparatos de justiça e estatais, no classismo e no racismo, bem como nos processos de criminalização da classe trabalhadora. Aparatos que sofrem determinações das diversas relações sociais concretas e econômicas.

Em outras palavras, as formas de punição se relacionam ao modo de produção de maneira bastante estreita. De modo que o capitalismo vai construir formas punitivas e, em uma sociedade classista, racista e sexista, estas serão fundadas na neutralização e opressão de grupos específicos. A construção desses grupos e sujeitos previamente estabelecidos como criminosos se dá a partir da disputa e defesa do entendimento de que esses são os responsáveis por todos os problemas da sociedade. Diferentes e dissemelhantes, a esses sujeitos é negado direitos fundamentais e o caráter de “humano”, reduzidos a alvos que merecem ser eliminados, indignos de luto, indivíduos matáveis.

A seleção histórica dos sujeitos-alvo também, como já apontado, está intrinsecamente relacionada ao racismo. Lélia Gonzalez vai definir o racismo enquanto uma construção ideológica e um conjunto de práticas, em que, a partir desse, uma divisão racial do trabalho será estabelecida selecionando, hierarquicamente, as posições sociais e suas classes. Desse modo, embora todos os trabalhadores sejam explorados ao criarem a mais-valia que será transferida para outros, alguns serão mais explorados que outros, e consequentemente, mais criminalizados. É a população negra, em sua maioria, que vai ocupar os setores mais pauperizados e explorados da classe trabalhadora brasileira, bem como são os corpos negros que constituem o chamado exército industrial de reserva e a massa incluída perversamente à margem da sociedade.

Ainda, a promoção do medo e da insegurança parecem ser fundamentais na organização da sociedade, de sua economia e dos comportamentos de seus pertencentes. É nesse sentido que, também deve ser destacado o papel da mídia e até de parte da cinematografia brasileira hegemônica no fortalecimento dessa insegurança e na construção da figura do criminoso. Essa discussão se assemelha àquela construção perversa do homem negro como um homem violento, biologicamente incapaz de pensar e produzir conhecimento, biologicamente propenso a cometer crimes.

A questão ainda é a mesma: luta de classes. Violento e letal, o controle da juventude trabalhadora se dá, desde o início de suas vidas, a partir de práticas classistas e racistas, fundadas nos processos históricos de colonização e escravidão. Violência é a norma e a desumanização de determinados sujeitos é instrumento fundamental para garantir a manutenção do capital. Municiando as armas dessa guerra aos trabalhadores, sobretudo à juventude trabalhadora, Bolsonaro, em rede nacional, desumaniza não só trabalhadores ilegais e em mercados ilícitos, mas também todos aqueles moradores das periferias, CPXs e favelas.

O fato é que essa criminalização é estendida e territorializada, adquirindo contornos geográficos bem delimitados. Territórios complexos e heterogêneos ocupados pelos setores mais papuperizados da classe trabalhadora, são relacionados em uma figuração dominante a territórios de bandidos, de somente e bastante violência criminal. Trabalhadores precarizados e informais, jovens sem acesso à educação, crianças sem escola, escolas com letreiros “Não atirem! Escola!”, filhos da classe trabalhadora embalados ao som de tiros, operações policiais em nome da “Guerra às drogas” realizando verdadeiras chacinas quase que cotidianamente, uma guerra sobre a criminalização da classe trabalhadora contra todos os que pertecem a um território, a uma classe, a uma cor. Ou como canta o rapper cearense Don L: "Nos consideravam drogas e guerra às drogas não era sobre os entorpecentes”. 

De um lado, o Estado pune e controla a juventude, selecionando os que serão mortos e encarcerados, e do outro, se omite na garantia mínima dos direitos desse mesmo segmento. Produzindo territórios e toda uma população sem acesso às políticas sociais e não digna de direitos, ocupando-os apenas armados até os dentes de armas letais e arbitrariedade. Aos pobres, a culpa da própria pobreza, e a pena mais letal justificada (pelo próprio Estado). Isso é cobra mandada dando o bote na juventude trabalhadora.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: 2015-09-29 03.26.01 1~01 // Foto de: Susana Santana // Sem alterações

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