E agora, você?

10/11/2024

José vai ser julgado hoje. Não é a primeira vez.

Há 17 anos, José matou alguém. Ele sabe que errou, se arrepende, mas não há o que possa ser feito, não dá para apagar.

José, em um dia de fúria, matou alguém com uma faca. Neste dia, estava em um bar bebendo para tentar esquecer o que acontecia em sua vida.

Na época, José estava desempregado e acabara de perder sua família. Sua esposa o largou e levou consigo o filho do casal. Havia meses que José procurava emprego e não encontrava.

José fazia todos os bicos que podia, mas não conseguia levar quase nenhum dinheiro para o barraco onde morava com a sua família.

José estava ciente de que não estava fácil suportar tudo aquilo. A vida da família nunca foi fácil, mas, naquele momento, diante do desemprego e do desespero de passar fome, tudo estava pior, como nunca.

Um mês antes do fatídico dia do homicídio, José voltou para casa e não encontrou ninguém. Vagou à procura de respostas, mas jamais as encontrou.

José pensou em tudo. Todas as possibilidades passaram por sua cabeça. Sentiu-se traído e enraiveceu, achando que era corno.

No dia em que cometeu o assassinato, José conseguiu alguns trocados mendigando na rua. Foi, então, para o bar que se arrepende até hoje de ter ido.

Lá chegando, tomou algumas doses de pinga e logo avistou um casal que parecia muito feliz.

José nunca encontrou os motivos, mas aquela cena o machucou profundamente. Ele queria ser aquele homem e se perguntava onde estariam sua esposa e filho.

Em um dado momento, José pensou que a mulher da mesa era a sua esposa e estava com outro. Em um ato de raiva contra o mundo, José pegou uma faca, mas voltou a si e recuou. Parou por instantes, não se lembra mais do que pensou naquele momento, mas acabou prosseguindo e golpeando a mulher diretamente no peito, que era onde mais lhe doía.

A vítima morreu poucos minutos depois.

José não fugiu e foi preso em flagrante no local. Estava arrependido e não conseguia explicar o motivo de ter feito o que fez. Ele simplesmente fez e sabia o que estava fazendo.

José ficou preso preventivamente por um tempo e foi solto para aguardar o seu julgamento em liberdade, pela lentidão da justiça em julgá-lo definitivamente.

Diante da repercussão do caso, José apareceu na mídia algumas vezes, mas logo o caso foi esquecido e substituído por outro.

Na cadeia, chegou a trocar algumas cartas com o seu filho, porque a criança descobriu pela mídia que seu pai havia sido preso e decidiu contatá-lo.

A razão de a esposa tê-lo abandonado e levado consigo o filho nunca foi explicada. Nas cartas, José só dizia que amava o filho e queria vê-lo, e recebia de volta xingamentos da criança.

Um dia, as cartas pararam de chegar.

Tempos depois, José recebeu uma carta da mãe de seu filho, amaldiçoando-o e informando que a criança havia tirado a própria vida, porque não aguentava saber que seu pai era um assassino.

Aquilo acabou com o pouco de energia vital que ainda restava. José está vivo, mas é como se não estivesse.

Um pouco antes de ser solto para aguardar o julgamento em liberdade, José descobriu que havia contraído HIV na cadeia.

Logo após ser posto em liberdade, passou a viver em situação de rua, como está até hoje.

José só não morreu porque faz o tratamento da doença fornecido pelo governo. Ele só faz o tratamento porque entende que tem que sofrer ao máximo para pagar todos os seus pecados. Para ele, não basta ir para o inferno, que é para onde acha que vai, ele quer sofrer ao máximo aqui na terra.

José já foi julgado antes. E, naquela oportunidade, o aguerrido Defensor Público que o representava contou a sua história ao Júri.

Naquele dia, José foi absolvido por clemência e achou que o Defensor havia feito um poema para ele. Nunca saiu da cabeça de José aquela conversa com o Defensor antes do julgamento.

A história de José fez o Defensor lembrar do poema de Carlos Drummond de Andrade e o ler para ele.

José, homem de pouco estudo, não entendeu e achou que o Defensor havia escrito para ele aquelas palavras que não saíram da sua mente:

E agora, José? (...)

Está sem mulher (...)

e tudo acabou (...)

e agora, José? (...)

seu ódio – e agora? (...)

se você morresse...

Mas você não morre,

você é duro, José! (...)

José, para onde?

 

José será submetido a um novo julgamento hoje, porque o anterior foi anulado. A Suprema Corte de seu país passou a entender que deveria ser marcado um novo Júri, caso a clemência fosse concedida a crimes que, por ordem constitucional, são insuscetíveis de graça ou anistia, como o homicídio qualificado de que é acusado José.

Hoje, José será julgado de novo por outras pessoas, o que não faz diferença para ele, considerando que já julgou e condenou a si próprio em todos os instantes desses longos 17 anos.

O Defensor de hoje não leu aquelas palavras. José pensa que não teria como, porque o anterior tinha inventado e falado para ele na hora. Lamenta não se lembrar de tudo.

O atual Defensor disse que não poderia pedir clemência, porque está proibido. Parece que, depois da mudança de entendimento da Suprema Corte de seu país, foi retirada da lei a possibilidade de os jurados absolverem alguém por clemência. Hoje, então, não é mais possível e José, se for condenado, sairá de lá preso, porque, segundo o entendimento atual da Suprema Corte de seu país, os condenados no Tribunal de Júri devem ser imediatamente presos.

José não se importa com nada disso. Nem sabe o que significa essa tal de clemência. Nunca entendeu o porquê de ter sido solto, o porquê de ter sido absolvido e o porquê de ter que ser julgado hoje de novo.

José não aguenta mais reviver tudo que aconteceu nos últimos 17 anos, mas considera bom reviver, porque assim sofre mais.

José gostaria, mas não consegue falar nem para confessar o crime que cometeu. Ele só quer ficar de cabeça baixa e sofrendo dentro daquelas vestes sujas e esfarrapadas que está usando.

Para José, não faz diferença ficar na rua ou na penitenciária. Aliás, ele até prefere ficar na rua, porque na rua ele considera que sofre mais.

José será julgado em instantes. E agora, você?

 

Imagem Ilustrativa do Post: VERSAILLES_AOUT_2015_0087.JPG // Foto de: domidoba // Sem alterações

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