Como saber se prova é suficiente para levar a condenação penal? Esse ainda é questionamento que persiste e encontra certa dificuldade em ser respondido com exatidão em tempos atuais, onde o punitivíssimo e autoritarismo ganham espaço e não proporciona segurança jurídica.
A sutileza com que o tema de provas e sua regulamentação no ordenamento brasileiro vêm sendo tratado é assunto de extrema importância e relevância temática, pois é por meio da atividade probatória que se chega uma absolvição ou condenação, que encontra respaldo democrático e que se conduzida dentro dos parâmetros do devido processo legal, pode ser considerada justa.
O processo penal, enquanto instrumento de verificação de hipótese probatória, atribui à prática de um fato criminoso a determinada pessoa e, em caso de conclusão positiva, necessária é a imposição de uma sanção, demonstrando exercício do poder estatal. Contudo, essa conclusão apenas poderá ser possível desde que respeitados limites probatórios de um sistema acusatório e democrático.
Vale dizer, somente poderá ser utilizada prova desde que seja produzida e valorada de maneira lícita, respeitando criação e interpretação dentro dos limites da legalidade do ordenamento jurídico.
As provas, portanto, servem, em um só tempo para a função de reconstituição de um fato passado, mas também possui a função de persuasão, na medida em que permite a construção do convencimento que será utilizado como motivação na decisão penal, conforme demonstra Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa.[1]
No que diz respeito à valoração probatória, iremos partir do ponto da –não- atual legislação processual, a livre apreciação ou persuasão racional para valoração da prova. Livre é no sentindo de não existir critérios determinados de valoração, o que não quer dizer que o juiz está dispensando de justificar suas conclusões – em que pese termos ciência do total subjetivismo encontrado nas decisões por meio de manipulações linguísticas[2].
Sobre a motivação das decisões, na prática do Judiciário brasileiro é comum ver que diversos magistrados confundem íntima convicção com persuasão racional, demonstrando a falta de clareza e o caminho percorrido para se chegar à decisão, o que caminha em desencontro com processo penal democrático. Em que pese à exigência da não surpresa da decisão e necessidade de fundamentar todos os pontos defensivos levantados, por vezes ainda paira certa nebulosidade sobre o que foi ou não analisado naquela decisão e qual caminho percorrido para a construção da motivação.
Talvez, em razão da imprecisão dos critérios e institutos utilizados para a decisão, o que fragiliza o princípio orientador do processo penal, a presunção de inocência, vem surgindo à necessidade de se estabelecer ou fixar parâmetros para a decisão penal, evitando assim uma injusta.
Logo, sem o objetivo de esgotar o tema, pretende-se apenas traçar e fixar alguns conceitos iniciais sobre esses possíveis critérios partindo do instituto conhecido como standards of proof, utilizados em países da common law para o processo penal brasileiro e algumas inquietudes.
Cabe esclarecer também que não se trata de possível exportação de conceitos sem análise do contexto no qual estamos inseridos, inclusive o cultural, mais sim, uma breve exposição do tema e o início de reflexão sobre a possibilidade de aplicação como limite da decisão e efetivador da presunção de inocência, ao invés de ser analisado somente como destruição das garantias do acusado.
Os Standards probatórios são limites, critérios ou parâmetros importantes que tem por objetivo permitir o controle da valoração probatória para construção da decisão judicial.
De acordo com Daniel Lima[3], bem como o estudo de modelos de standards em direito comparado realizado por Danilo Knijnik[4], os mais relevantes standards para o processo no direito norte-americano são: preponderance of evidence, clear and convincing evidence e beyond a reasonable doubt. De acordo o autor mencionado, os dois primeiros standards, em virtude do baixo grau de convicção exigidos, são usualmente utilizados no processo civil, já o último, por exigir uma quase certeza, é o que se aplica em sede de processo penal e o que nos interessa.
Sendo assim, no processo penal americano prevalece que a condenação apenas poderá existir quando não houver qualquer dúvida razoável da existência ou autoria do fato. Essa dúvida seria um questionamento que qualquer pessoa razoável possui após analisar as provas. É uma dúvida que leva uma pessoa hesitar em determinado momento. Ou seja, havendo uma dúvida razoável, a condenação não pode subsistir. Ótimo exemplo é o do filme Doze homens e uma sentença, quando Davis ou Jurado nº 8, vota pela absolvição por falta de provas que pudessem incriminar e cria uma nova análise por parte dos outros jurados.
Pela história, a dúvida para além do razoável passou por diversas conceituações, inicialmente era caracterizada como certeza imutável, proibindo condenações não demonstradas, que permaneceu até o iluminismo onde teve o início dos questionamentos sobre a possibilidade se alcançar a certeza absoluta, através da filosofia, atualmente trabalhada na perspectiva da verdade real. Posteriormente, a mudança de conceito aconteceu por meio de decisões judiciais, trazendo lado mais humano e suas falibilidades, fixando elementos mínimos para a superação da dúvida, quais sejam: a dúvida deveria ter caráter convincente que uma pessoa razoável não hesitaria se confiasse nela e agisse em função exclusivamente dela, perdurável e altamente provável, mas nunca houve um consenso sobre a definição do conceito do que seria dúvida razoável.[5]
Percebe-se que são critérios vagos e imprecisos, que não foram consolidados, o que levou os tribunais norte-americanos encontrarem problemas em todas essas definições. Algumas versões que alguns tribunais consideraram admissíveis, inclusive exemplares, foram descartadas por outros tribunais por violarem os direitos constitucionais do acusado. Essa situação levou a indicação que a dúvida razoável não fosse explicada aos jurados, de maneira a evitar uma decisão injusta.[6]
Sendo assim, percebe-se que a dúvida para além do razoável no processo norte-americano inicialmente foi criada para proteger o acusado da febre condenatória, reafirmando o significado da presunção de inocência do acusado no direito positivo. Contudo, com passar do tempo, foi sendo revestida de injustiça, o que desviou da sua criação. Atualmente a dúvida para além do razoável é considerada como uma possível certeza que desestabiliza toda a presunção de inocência do réu, levando a crer sobre sua responsabilidade penal.
No Brasil diversas críticas surgiram em razão da utilização da dúvida razoável e decisões penais condenatórias, em especial as utilizadas nas decisões de Sérgio Moro e da obra sobre provas do procurador Deltan Dallagnol [7], em especial na utilização de provas indiretas e crime de lavagem de dinheiro e a presunção de inocência.
Contudo, questionável ou não a imprecisão e a importação de conceitos, fato é que a utilização do instituto está acontecendo e precisamos nós adequar, não podemos fechar os olhos para as situações que estão postas no mundo, necessário é uma limitação constitucionalmente adequada sobre o tema.
Poderíamos pensar na utilização de standards e a dúvida para além do razoável como critério para aumentar e fortalecer o princípio da presunção de inocência, criando métodos específicos ou parâmetros para que as decisões judiciais sejam de fato motivadas, por meio de critérios racionais e objetivos, limitando o subjetivismo dos magistrados, tendo em vista que sua origem teve o fundamento de garantia e seu conceito é maleável.
Procedendo assim, o magistrado permite que as partes conheçam como e quais provas foram valoradas, como os argumentos foram utilizados na motivação, possibilitando entender com mais clareza como e qual critério foi utilizado para julgar, permitindo a avaliação da qualidade do argumento e as dúvidas que eles podem suscitar.
Em resumo, a dúvida para além do razoável pode ser vista como uma é garantia ao acusado justamente por ter de superar todos os pontos apresentados pela defesa e não demonstrada a hipótese acusatória e, somente se, ultrapassado e refutado todos esses pontos é que será possível admitir uma condenação. Caberá ao magistrado demonstrar que todas as teses defensivas estão superadas e o fundamento da hipótese acusatória, efetivando a regra de tratamento quanto à dúvida.
Logo, em que pese a breve consideração e mais inquietudes, percebe-se ser inegável utilização do instituto atualmente, e, portanto necessária sua adequação ao sistema de garantias previsto constitucionalmente, bem como sua origem, de modo que não seja utilizado para suprimir direitos e causar injustiças, mas sim como maneira de efetivar a presunção de inocência, orientando quais são os critérios, ainda que mínimos para elaboração de motivação adequada ao modelo democrático de processo penal, sendo ainda um método de controle do poder punitivo.
Notas e Referências
BEGUELIN, José R. É razoável a dúvida razoável?. Versão original em inglês publicada em “Legal Theory”, vol. 9, p. 295 ss., 2003. [Tradução do espanhol ao português de CRISTINA GRILO MARTORELLI].
KNIJNIK, Danilo. Os standards do convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle. Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 353, p. 15-52, jan.-fev.2001. Disponível em: < http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Danilo%20Knijnik%20-%20formatado.pdf>. Acesso em 26 set. 2018
LIMA, Daniel. O caso O. J. Simpson à luz dos standards probatórios do direito norte-americano. Disponivel em:< https://canalcienciascriminais.com.br/simpson-standards-probatorios/> . Acesso em: 26 set. 2018.
LOPES JR, Aury. e MORAIS DA ROSA, Alexandre. A importância da cadeia de custódia para preservar a prova penal . https://www.conjur.com.br/2015-jan-16/limite-penal-importancia-cadeia-custodia-prova-penal. Acesso em 26 set. 2018
MORAIS DA ROSA, Alexandre. Como flutua o valor probatório no processo penal?. Disponivel em:< https://www.conjur.com.br/2017-set-01/limite-penal-flutua-valor-probatorio-processo-penal>. Acesso em: 26 set. 2018.
MORAIS DA ROSA, Alexandre e KHALED JR, Salah. O standard de prova de moro e o enfraquecimento das garantias do acusado: uma provocação. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/o-standard-de-prova-de-moro-e-o-enfraquecimento-das-garantias-do-acusado-uma-provocacao. Acesso em 26 set. 2018
Notícias:
[1] LOPES JR, Aury. e MORAIS DA ROSA, Alexandre. A importância da cadeia de custódia para preservar a prova penal . Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-jan-16/limite-penal-importancia-cadeia-custodia-prova-penal. Acesso em 26 set. 2018
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre e KHALED JR, Salah. O standard de prova de Moro e o enfraquecimento das garantias do acusado: uma provocação. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/o-standard-de-prova-de-moro-e-o-enfraquecimento-das-garantias-do-acusado-uma-provocacao. Acesso em 26 set. 2018
[3] LIMA, Daniel. O caso O. J. Simpson à luz dos standards probatórios do direito norte-americano. Disponivel em:< https://canalcienciascriminais.com.br/simpson-standards-probatorios/> . Acesso em: 26 set. 2018
[4] KNIJNIK, Danilo. Os standards do convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle. Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 353, p. 15-52, jan.-fev.2001. Disponível em: < http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Danilo%20Knijnik%20-%20formatado.pdf>. Acesso em 26 set. 2018
[5] BEGUELIN ,José R. Versão original em inglês publicada em “Legal Theory”, vol. 9, p. 295 ss., 2003. [Tradução do espanhol ao português de CRISTINA GRILO MARTORELLI].
[6] https://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-socio/na-condenacao-de-lula-uma-201cduvida-alem-do-razoavel201d-paira-no-ar e https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,analise-prova-acima-dequalquer-duvidarazoavel-e-do-direito-anglo-americano,70002167155
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