Duplo grau de jurisdição: para quem são idealizadas as garantias internacionais de direitos humanos?  

07/12/2018

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

 

Para dar a largada na minha participação nessa coluna, escolhi um daqueles temas que só nos chamam a atenção diante de uma controvérsia prática. No meu caso, essa questão demandou estudo mais aprofundado quando me deparei com o seguinte problema: um cliente foi absolvido de determinada imputação em primeira instância. Em segunda instância, a decisão absolutória deu lugar à uma condenação.

Concretamente, contra a decisão proferida pela segunda instância seriam cabíveis recursos para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF), a depender da posição no ordenamento jurídico da norma violada – dispositivo de lei federal ou constitucional.

O problema, todavia, surge no fato que, nos recursos interpostos perante Tribunais Superiores, é vedada a discussão de matéria fática, restringindo-se o conteúdo da irresignação ao conteúdo de direito.

Nesse sentido, o STJ publicou a Súmula 07, segundo a qual “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”, e também o STF editou a Súmula 279, dispondo que “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”.

Na prática, diferenciar questões de fato e de direito nem sempre é tarefa fácil. A aplicação da matéria jurídica depende, necessariamente, do plano de fundo fático.

Todavia, se os Tribunais Superiores vedam o reexame de prova em sede recursal, como garantir o duplo grau de jurisdição em face da sentença condenatória proferida apenas em segunda instância, diante da necessidade real de reexaminar a prova que conduziu à condenação?

Consagrado como princípio pela doutrina, o duplo grau de jurisdição se baseia na possibilidade de revisão, por meio da interposição de recurso, de causas já decididas por instância inferior.

Apesar da ausência de previsão expressa na Constituição da República de 1988, a garantia ao duplo grau de jurisdição está inserida no contexto internacional de proteção aos direitos humanos e expressa em tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, considerado um avanço ao garantir o acesso à justiça com base na pessoa humana concreta, de acordo com as condições individuais e dificuldades específicas[i], prevê que “Toda pessoa declarada culpada por um delito terá direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei”.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos assegura o duplo grau de jurisdição de forma mais abrangente, na medida em que não limita o direito de recorrer ao condenado, estendendo ao sujeito absolvido a possibilidade de interpor recurso visando a reforma da fundamentação utilizada pelo Juízo na decisão absolutória (art. 8º, n. 2, h).

Ambos os documentos internacionais foram assinados pelo Brasil e postos em vigor no início da década de 1990, após a promulgação da Constituição da República de 1988, em consonância com as normas constitucionais de proteção da pessoa humana e em integração ao compromisso de respeito aos direitos e garantias fundamentais firmado com a comunidade internacional.

A partir do equilíbrio com os preceitos já expressos na Constituição de 1988 e da integração internacional, as garantias previstas nos tratados ratificados passaram a complementar os enunciados positivados no Direito Interno e, consequentemente, a orientar a prática jurídica brasileira.

Como observa Gustavo Badaró[ii], as garantias dos tratados internacionais de direitos humanos não são, efetivamente, declarações de direitos do Estado, que na esfera penal é representado pelo órgão acusador. Essas garantias servem ao indivíduo acusado, que ocupa posição mais fraca na relação processual e, por isso, necessita de garantias mínimas.

Exatamente por isso, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (art. 14, n. 5) consagra o princípio do duplo grau de jurisdição como uma garantia exclusiva do acusado (repita-se: “Toda pessoa declarada culpada por um delito...”) sem vislumbrar a mesma faculdade ao órgão da acusação.

Nesse caso, diante de uma sentença absolutória, o Ministério Público ou o assistente de acusação careceriam de legitimidade recursal. Geraldo Prado sintetiza o ideal de unilateralidade recursal:

“Por que somente a Defesa pode recorrer da decisão de mérito? Porque realmente devemos nos acautelar dos julgamentos injustos que causem prejuízo ao acusado, impondo-lhe sanção penal que às vezes ele não deveria receber. À acusação, por seu turno, é dado o direito de, no espaço do processo penal, provar os fundamentos de sua pretensão, de demonstrar os fatos sobre os quais sustenta seu pedido de condenação. Se não o consegue, se o acusador não convence o juiz, não há porque supor que o tribunal que normalmente não terá contato com as mesmas provas e com os mesmos argumentos, e que se limitará a uma atividade de interpretação de textos, fará justiça modificando a sentença absolutória”.[iii]

Importante ressaltar que, assim como a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, o Pacto é dotado de status supralegal, estando localizado no ordenamento jurídico brasileiro acima da legislação interna e abaixo da Constituição da República.

Apesar disso, a hipótese de unilateralidade dos recursos penais, isto é, da legitimidade exclusiva da defesa para recorrer da decisão de mérito, não encontra nenhum obstáculo no texto constitucional.

Pelo contrário: o artigo 5º, LV, da Constituição de 1988 atribui aos acusados em geral o direito ao contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Já o artigo 129, ao prever as funções privativas do Ministério Público, elenca a promoção da ação penal pública, sem mencionar qualquer atividade em sede recursal.

Com efeito, cabe ao Ministério Público ingressar com a Ação Penal e fundamentar a pretensão condenatória com base em provas suficientes de autoria e materialidade. Nos dizeres de Prado[iv], “que se organize e se prepare para estar em juízo em condições de convencer o juiz, para estar em juízo em condições de demonstrar a existência do fato, a responsabilidade do acusado”. Se assim não o fizer, há que se contentar com a efetivação da decisão absolutória.

Essa tese também é objeto de análise de Luigi Ferrajoli. Em Principia iuris, o autor sustenta que em um ordenamento como o italiano, onde existe a previsão ao duplo grau de jurisdição decorrente da ratificação de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, é inadmissível a pretensão recursal da acusação depois de injustamente perturbar a vida de um cidadão, arrastando-o para o tribunal e forçando-o a se defender contra uma acusação revelada infundada pela decisão absolutória.

A possibilidade de a acusação continuar perseguindo o cidadão com vistas à uma condenação equivaleria, nesse sentido, a um assédio judiciário[v].

É sob esse duplo risco de condenação que se fundamenta a 5ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América e a vedação ao “double jeopardy”. De acordo com esse princípio, as decisões absolutórias não podem ser revogadas em sede recursal porque, “pelo mesmo crime, ninguém pode ser colado em risco de ser condenado duas vezes”[vi].

Nessa hipótese, ainda que o processo em curso seja o mesmo, a vedação à múltipla persecução também deveria ser aplicada no sentido de renovação da situação processual[vii].  Se o órgão acusador estatal, cujo poder investigativo é infinitamente superior ao do acusado, não logrou comprovar a culpa durante o processo penal, o indivíduo absolvido não pode ser submetido a um duplo julgamento, com um segundo risco de condenação.

Em um dos mais celebrados precedentes acerca do “double jeopardy”, Green vs. United States (1957), a Suprema Corte consignou que o Estado, com todos seus recursos e poder, não deve ter permissão para tentar, por repetidas vezes, condenar um indivíduo por uma suposta infração, submetendo-o a constrangimento, despesa e provação e obrigando-o a viver em um estado contínuo de ansiedade e insegurança, bem como aumentar a possibilidade de que, apesar de inocente, ele possa ser considerado culpado.

Atualmente, a jurisprudência da Suprema Corte admite, em caráter de exceção, a interposição de recurso pela acusação quando a irresignação se restringe a matéria de direito[viii].

A se pensar em uma adequação do sistema recursal brasileiro ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, e partindo do exemplo norte-americano de processo penal, a admissibilidade de recursos interpostos pela acusação fundamentados apenas em matéria de direito parece ser a opção adequada para uma reforma que demanda cautela.

Como explica Penteado, até se atingir o estágio ideal do sistema judiciário, que dispensaria em absoluto a atuação acusatória no duplo grau de jurisdição para o reexame de questões de fato, “pode-se lograr um avanço com a limitação desse acesso ao juízo superior, alterando-se a legislação infraconstitucional, pois o acusador não tem a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição”[ix].

Essa opção é adequada quando analisada em consonância com as Súmulas 07 do STJ e 279 do STF e também com o texto constitucional e a função institucional do Ministério Público de fiscalizar a execução da Lei prevista no artigo 257, II do Código de Processo Penal.

Nesse aspecto, ao zelar pelo cumprimento da lei em defesa dos interesses da sociedade, o Ministério Público, na condição de custos legis, teria garantido o acesso ao duplo grau de jurisdição em face de questões exclusivamente jurídicas.

Também se equilibra essa hipótese com pretensa imparcialidade do Ministério Público a partir de uma perspectiva acusatória de processo penal. Se, como leciona Pacelli, “ao Estado (e, aqui, ao Ministério Público) deve interessar, na mesma medida, tanto a condenação do culpado quanto a absolvição do inocente”[x], o papel do órgão acusatório não é o de obter uma condenação a qualquer custo, mas tão somente de garantir a correta aplicação da lei.

Não lhe cabe, diante de uma decisão absolutória, devolver à segunda instância o reexame de fato da questão penal, na tentativa de finalmente atingir o objetivo condenatório. Até porque, diante de uma atuação imparcial, o único objetivo do Ministério Público deve ser correta aplicação da lei a todos os casos, independente do resultado.

Portanto, enquanto o Brasil não atinge o ideal de justiça e democracia, limitar a atuação recursal do Ministério Público em processos cujo resultado em primeira instância consiste em decisão absolutória é uma forma ponderada de cumprir a garantia prevista no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, assegurando o direito absoluto da defesa ao duplo grau de jurisdição, sem gerar em contrapartida qualquer confronto reflexo à Constituição da República, ao Código de Processo Penal ou à atribuição institucional do órgão.

 

Notas e Referências

[i] PENTEADO, Jaques de Camargo. Duplo Grau de Jurisdição no Processo Penal: garantismo e efetividade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 64.

[ii] BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos Recursos Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p 44.

[iii] PRADO, Geraldo. Em torno da Jurisdição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 43.

[iv] PRADO, Geraldo. Em torno da Jurisdição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 44.

[v] FERRAJOLI, Luigi. Principia Iuris II: teoría de la democracia. Madrid: Trotta, 2011, p. 452.

[vi] RAMOS, João Gualberto Garez. Curso de Processo Penal norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 134.

[vii] MAIER, Julio Bastos Juan. Derecho Procesal Penal: fundamentos. 2ª Ed. Buenos Aires: Del Puerto, 1996. p. 720.

[viii] ALOGNA, Forrest G. Double Jeopardy, Acquittal Appeals, and the Law-Fact Distinction, 86 Cornell L. Rev. 1131, 2001. p. 1.138.

[ix] PENTEADO, Jaques de Camargo. Duplo Grau de Jurisdição no Processo Penal: garantismo e efetividade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 175-176.

[x] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 470.

 

 

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